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Um Quebra-cabeças chamado David Fincher
Quinta-feira, 28 de Novembro de 2002
Por V. T .M.

Misoginia, misantropia, violência, bizarria, niilismo, sacrifício e expiação: é uma lista (pouco exaustiva) de algumas das palavras que são invariavelmente utilizadas quando se fala no cinema de David Fincher. No entanto, presume-se (e apenas isso, pois com ele nunca se sabe...) que nada disto estaria na cabeça do futuro cineasta quando, há 40 anos, nasceu em Denver, Colorado. Suposição que ganha mais força quando ficamos a saber, pela boca do próprio David, em entrevista recente, que começou a fazer filmes aos oito anos porque o seu ídolo de infância era George Lucas ("Star Wars").

Viviam na mesma rua e David um dia conseguiu finalmente conhecer George quando o mais rico dos "movie brats" saiu de casa em roupão para ir apanhar o jornal que lhe deitara o carteiro - como acontece sempre nos filmes dos "movie brats". O homem que um dia expressou as suas dúvidas quanto à necessidade de o cinema ser apenas uma forma de entretenimento é (ou foi) fã de um dos maiores cultores do escapismo cinematográfico? Surpreendente... Terá visto apenas o primeiro (e melhor) Lucas, "THX 1138" (1971), negra ficção científica orwelliana?

De qualquer forma, o encontro entre os dois deve ter sido marcante, já que os primeiros passos profissionais de Fincher no cinema foram dados na Industrial Lights and Magic, a empresa do realizador de "Star Wars" (Fincher diz que o filme que mudou a visão que tinha do cinema foi na verdade "O Império Contra-Ataca", o mais negro da série, o que explica muita coisa...). Por aí ficou durante quatro anos, tendo trabalhado em produções como "O Regresso do Jedi" ou "Indiana Jones e o Templo Perdido". Seguiu-se uma carreira de sucesso como director de anúncios de TV e vídeos musicais, passos que o levaram a "Alien 3" (1992), o primeiro filme.

Decadência
Logo aí, abria o jogo e mostrava ao que vinha: a visão de um mundo decadente e deprimente e uma atmosfera claustrofóbica e obsessiva. Se a metáfora da doença sempre esteve presente na série, as alusões à sida eram constantes e o filme evoluía lentamente até ao sacrifício final de Ripley (Sigourney Weaver de cabeça rapada, referência ao Carl Dreyer de "A Paixão de Joana d'Arc"). Fracasso comercial, não foi uma experiência muito feliz para o realizador, que passou por alguns problemas com o estúdio.

Como consequência, regressou aos anúncios e videoclips, com o futuro no cinema aparentemente hipotecado. No entanto, a "força" estava com ele e três anos depois ressurgiu com "Seven", um fenomenal sucesso de estima e bilheteira. Policial apocalíptico, sufocante (com um psicopata a recriar os sete pecados mortais), desenvolvia e elaborava o tema do mundo como local pecaminoso e sujo, que nem a chuva ininterrupta que assolava uma metrópole anónima podia limpar.

Se o projecto seguinte, "O Jogo", pode ser acusado de não ter a mesma profundidade, o mesmo já não se aplica a "Clube de Combate" (1999), adaptação quase literal do brilhante romance homónimo de Chuck Palahniuk. Sátira vertiginosa à sociedade moderna, em que os homens se reúnem em "clubes de pancadaria" para descarregar frustrações incomportáveis e tentar sair da apatia em que se encontram (mais do que isso, uma espécie de emasculação), é um dos projectos mais arrojados a sair de um estúdio americano nos últimos tempos. Acusado de "fascista", está, antes, mais próximo de um feroz anarquismo individualista, à maneira de John Carpenter: a forma jubilatória como encena a destruição final, ao som do "Where is my mind" dos Pixies, não deixa de lembrar o niilismo do final de "Fuga de Los Angeles", com o fósforo que Kurt Russell apaga. A lógica é a mesma: a única forma de ultrapassar o caos da "civilização" é através da destruição, para que seja possível "começar do zero".

Já "Panic Room" (2002) é muito mais linear, quase um Fincher atípico, longe da bizarria de obras anteriores - como se ele quisesse dizer à indústria que também estava disponível. No entanto, na história de uma mãe e filha que se fecham numa espécie de "bunker" dentro de casa para se refugiarem do mal exterior (três assaltantes) encontramos o essencial do universo do cineasta, como o medo e a paranóia. Também o seu estilo visual peculiar está à vista, com a câmara a serpentear, com um rigor maníaco, pelos espaços mais recônditos da casa.

Numa obra que se assemelha a um complexo e cerebral "puzzle", que permite as visões e as leituras mais díspares, não deixa de ser adequado que o futuro de Fincher seja um labirinto emaranhado de projectos possíveis, entre os quais a adaptação de um romance de Arthur C. Clarke, "Rendez-vous With Rama", e uma colaboração com o escritor Chuck Palahniuk. De qualquer modo, o seu projecto seguinte parece ser mesmo "Missão: Impossível 3" (até já se fala em Sly Stallone para o papel de vilão...). Acrobacias em cima de motos e explosões não é propriamente o que se associa ao universo de Fincher. Mas o melhor é esperar para ver...