Génios
e “gangsters”
Por Vasco T. Menezes
A Nova Iorque dos loucos anos 20 e as pretensões
e hipocrisias do mundo do teatro, numa deliciosa sátira de
Woody Allen
As agruras de um artista em apuros.
Segundo David Shayne (John Cusack), o teatro não deve servir
apenas para distrair, mas também para “elevar a alma
das pessoas”. É isso que ele tem tentado fazer com
as suas peças, mas o problema é que ninguém
as vai ver... À terceira tentativa, o jovem dramaturgo resolve
ser também o encenador e jura não comprometer a integridade
artística.
No entanto, depressa é forçado
a mudar de ideias, pois percebe que, para obter o financiamento
necessário, terá de aceitar como actriz a namorada
sem talento (Jennifer Tilly) de Nick Valenti (Joe Viterelli), um
“gangster” que serve de inusitado “mecenas”.
Além disso, há ainda Cheech (Chazz Palminteri), um
guarda-costas brutamontes com ideias muito bem definidas acerca
da escrita de teatro e que vai ensinar David a “escrever como
as pessoas falam”...
Há poucas coisas seguras neste
mundo e Woody Allen (apesar de alguns sinais de cansaço que
começam a ser dados pelos últimos filmes) é
uma delas. Não só pela espantosa cadência da
obra (não há ano que passe sem que um projecto do
realizador veja a luz do dia), mas também pelo elevado nível
médio que os filmes apresentam: numa carreira que se aproxima
dos 40 anos, as obras-primas são muitas e variadas. A sua
obra é uma das mais pessoais e facilmente identificáveis
do cinema americano (e em terras do Tio Sam, a poucos se aplicará
tão bem o epíteto de “autor” quanto a
ele). Ou seja, com Allen não há que enganar –
desde o omnipresente e “despido” genérico inicial
(com as letras brancas a desfilar sobre um fundo negro) à
utilização obsessiva do “Let’s Misbehave”
de Cole Porter, por mais diferenças (e, admitamos, raras
vezes são muitas) que os filmes apresentem, as marcas habituais
do cineasta nunca deixam de estar presentes.
“Balas sobre a Broadway”
(1994), apesar de ter sido escrito em parceria com Douglas McGrath
(uma situação pouco habitual no cinema de Allen),
não foge à regra: estão lá as crises
existenciais da personagem central – o neurótico inseguro
e irrequieto, normalmente interpretado pelo realizador, a que desta
vez Cusack dá corpo –, a sucessão frenética
de “gags” e tiradas irresistíveis e, claro, a
eterna musa inspiradora, Nova Iorque.
Surgindo a seguir a “O Misterioso
Assassínio em Manhattan” (1993), o filme acentuou uma
viragem na obra de Allen, deixando para trás as anteriores
reflexões bergmanianas, uma constante durante os anos 80,
em favor de um registo (mais) abertamente cómico. Nesse sentido,
“Balas sobre a Broadway” – a par dos soberbos
“Toda a Gente Diz Que Te Amo” (1996) e “As Faces
de Harry” (1997) – fica como o melhor exemplo da fase
“pós-Mia Farrow” que perdura até hoje.
Sendo o filme uma (esfuziante) “period
piece”, a Nova Iorque em que decorre a acção
não é a metrópole dos nossos dias, mas sim
a da mítica “Jazz Age”. Com efeito, um dos trunfos
do filme é precisamente a forma perfeita como reproduz, com
precisão assinalável, os detalhes de uma época
e a atmosfera estonteante dos loucos anos 20 nova-iorquinos, desde
as esplanadas de Greenwich Village, poiso da cena “artística”,
às ruelas escuras onde os vários “gangs”
se digladiavam, passando pelo lendário “Cotton Club”.
Para além dessa reconstituição
magnífica de um espaço em permanente ebulição,
Allen assina ainda uma sátira mordaz à gente do teatro,
às suas pretensões e hipocrisias. Um mundo postiço,
de que a Helen Sinclair de Dianne Wiest (fabulosa) funciona como
expoente máximo. Estamos na presença de uma lenda
da Broadway (“nunca faço de farrapo nem de virgem”,
diz ela), uma grande estrela que é na realidade uma bêbada
adúltera. Com a carreira em decadência (nos últimos
três anos, limitou-se a coleccionar “flops” e
ex-maridos), nem por isso abandona, por um minuto sequer, a sua
pose de grande diva, representando 24 horas por dia.
Também a personagem de David
se constrói sob o signo da falsidade: apesar de se considerar
um verdadeiro artista (tem como ídolos Tchekhov e Strindberg),
imune às pressões do grande público, o desejo
de sucesso (e de agradar a Helen) leva-o, a cada passo, a trair
os supostos ideais e a fazer um sem número de concessões,
até que da sua visão inicial (que, por acaso, até
nem era grande coisa...), não reste praticamente nada. A
ironia máxima é que ele nem sequer é capaz
de defender o seu trabalho, pois é Cheech (e aproveite-se
para dizer que a escolha de Palminteri, que para além de
actor também é um reputado dramaturgo, é simplesmente
magistral) quem se vai arriscar pela peça, ao trair o patrão
e assassinar a namorada deste, que estava a destruir os diálogos
que ele havia revisto (tornando a “versão-eunuco”
de David, “sem força e empolada”, numa “obra
cheia de vida, finalmente carnívora”). A partir daí,
tem o destino traçado: irá morrer nos bastidores da
peça a quem deu tanto, com tempo ainda (numa das cenas mais
divertidas do filme) para inventar uma última tirada para
um final em beleza. Isto sim, é dedicação à
arte...
Por tudo o que foi dito se poderia pensar
que o olhar de Allen em relação a estas figuras é
cínico ou cruel, mas tal não acontece (e é
daí que advém grande parte do charme e graça
desta hilariante paródia): o realizador olha com ternura
para as personagens, uma inexcedível galeria de sonhadores
– incapazes de olhar para si mesmo de forma objectiva –,
cujas vulnerabilidades chegam a ser comoventes. Por isso, é
tocante a sequência final, quando David, reconhecendo finalmente
os seus próprios limites e o simples facto de não
ser um “génio” (isso, só mesmo Cheech...),
resolve abandonar a grande cidade e regressar com a namorada (a
luminosa e subaproveitada Mary-Louise Parker, uma delícia
de actriz) que negligenciara à Pittsburgh natal, movido pelo
desejo nada “artístico” de ser pai e marido.
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