"Sangue
por Sangue", de Joel e Ethan Coen
Por Vasco T. Menezes
O clássico triângulo amoroso da
tradição “noir” revisto e deslocado para
o interior do Texas
Inseguro acerca da fidelidade da sua mulher, Julian
Marty (viscoso Dan Hedaya), o dono de um bar de sucesso no Texas,
contrata um hediondo detective privado para espiar Abby (Frances
McDormand). Quando é confrontado com provas reveladoras do
envolvimento de Abby com Ray (o esquecido John Getz), um dos empregados
de Marty, o abastado mas não muito atraente “magnata”
propõe ao detective (magistral M. Emmet Walsh, um dos maiores
actores secundários americanos) a morte de ambos, a troco
de 10 mil dólares. O problema é que o detective sem
nome resolve, depois de ter enganado Marty e recebido a quantia
prometida executar uma inesperada variação do contrato...
O que se segue é uma sucessão alucinante de mal-entendidos
e equívocos, com o medo e a desconfiança a darem origem
a uma espiral crescente de violência e terror.
“Sangue por Sangue” (“Blood Simple”,
1984), a primeira obra de Joel e Ethan Coen, é o terceiro
título da dupla a marcar presença na série
depois de “Fargo” (1996) de “O Grande Lebowski”
1998). Quando fizeram esses filmes, já eram “autores”,
mas foi aqui que se iniciou o culto à volta dos dois irmãos.
“Sangue por Sangue” ficou assim como um dos momentos
de glória do “indie cinema” de inícios
dos anos 80, marco absoluto de uma época em que despontavam
também cineastas tão meritórios (e diferentes)
como John Sayles, Jim Jarmusch e Spike Lee, todos eles vistos como
“salvadores” do cinema americano.
Se os manos (e os outros) “salvaram”
ou não alguma coisa com o seu cinema, não importa
agora discutir. O que interessa aqui é sublinhar algo de
evidente: “Sangue por Sangue” é um dos exemplos
mais felizes da desconstrução revisionista de géneros
que tem pautado toda a carreira dos Coen.
No filme, o “thriller” surge cruzado
com elementos do “western” e do filme de terror (Joel
Coen tinha sido, recorde-se, o montador do clássico de Sam
Raimi, “Evil Dead”). Nesse sentido, os códigos
de toda a tradição “noir” (não
só a cinematográfica, mas também — ou
principalmente — a literária, com Hammett e James M.
Cain à cabeça) são subvertidos e associados
a uma série de mitos e imagens iconográficas da América
(“vide” o caso paradigmático do detective “cowboy”),
transpostos que estão para o espaço insólito
das cidadezinhas e estradas do Texas. O resultado é um objecto
fulgurante e elegante, de uma secura e simplicidade admiráveis. |