Hoje
é o dia eXistenZ
Por Vasco T. Menezes
David Cronenberg continua às voltas com
a criação de uma nova carne. O resultado é
um fulgurante compêndio da obra do realizador, que aqui descobre
uma insuspeitada veia de humor negro.
Num futuro próximo em que os criadores de jogos de realidade
virtual são considerados superestrelas, Allegra Geller (Jennifer
Jason Leigh), a mais famosa de todos esses “designers”,
é uma “deusa da informática”, alvo de
um culto religioso por parte dos seus seguidores, os “existencialistas”.
Durante uma sessão de apresentação da sua mais
recente obra-prima, eXistenZ, Allegra sofre uma tentativa de assassinato
engendrada pelos seus inimigos, os “realistas”, que
a condenaram à morte por considerarem que ela desvirtua a
“realidade”. Allegra vai ser obrigada a fugir para dentro
do seu próprio jogo, na companhia de Ted Pikul (Jude Law),
um atarantado estagiário de “marketing” subitamente
“promovido” à condição de guarda-costas
relutante. À medida que o tempo avança, vai sendo
cada vez mais difícil para as personagens distinguir entre
“realidade” e “jogo”, o que só é
proveitoso para os espectadores de “eXistenZ”, o filme
de David Cronenberg...
Nova carne “Long live the new flesh”.
Era com essas palavras que terminava “Videodrome” (1982),
o último argumento original de Cronenberg antes de “eXistenZ”
e o filme com que este último mais se assemelha na obra do
canadiano. Tal como nessa obra-prima, em que James Woods inseria
cassetes de vídeo dentro de um buraco “vaginal”
no estômago, também em “eXistenZ” a criação
de uma nova carne continua na ordem do dia: desta vez temos, como
exemplos bizarros do interface entre biologia humana e tecnologia,
os “bioports”, buracos perfurados nas costas dos jogadores
que, através de um cordão umbilical, permitem aceder
ao jogo (contido num organismo vivo, esponjoso e táctil –
“o meu bebé”, chama-lhe Allegra – , uma
espécie de rim com mamilos que, quando massajados, o estimulam);
e temos ainda armas feitas de osso e tecido humano, que disparam
dentes... Essa obsessão de Cronenberg pelas combinações
entre natureza e máquina trouxe-lhe já epítetos
inventivos, como “O Barão do Sangue” ou “O
Rei do Horror Venéreo” (“é um campo pequeno,
mas pelo menos sou rei dele”, disse ele, a propósito
deste último). Mas é apenas um dos vários temas
que o realizador tem trabalhado e aos quais regressa com “eXistenZ”,
com destaque para a exploração de diferentes níveis
de “realidade” e de percepção. Para Cronenberg,
toda a realidade é virtual, um conceito em plena mutação.
No filme (em si, todo ele um jogo para o espectador jogar), tal
como as personagens, nunca temos a certeza se estamos perante a
sua “realidade” ou apenas mais um nível do jogo.
Também a questão dos perigos da criação
artística tem sido uma preocupação cara ao
cineasta, a ideia de que aquilo que criamos se pode tornar uma coisa
viva e existir separadamente do criador: em “eXistenZ”,
é o jogo que manda, obrigando Allegra a debitar de certas
frases para que a tortuosa intriga possa avançar e apresentando
à sua criadora estranhas criaturas – como o mutante
anfíbio, mistura entre sapo, salamandra e lagarto e “um
sinal dos tempos” – que não foram produto da
vontade desta. Convém salientar, ainda, mais dois elementos
tipicamente cronenberguianos: por um lado, a divisão da sociedade
em facções dogmáticas antagónicas, “realistas”
versus “existencialistas” (libelo contra o fundamentalismo?
Cronenberg admitiu que a “fatwa” declarada contra Salman
Rushdie inspirou o filme); por outro, a profusão de gigantescas
e misteriosas organizações (Antenna Research, PilgrImage,
Cortical Systematics), à mercê das quais se encontra
o indivíduo. Mas se o filme pode ser visto como um compêndio
de toda a obra de Cronenberg para iniciados, o que ele tem de desarmante
é o que traz de novo a esta, expondo uma até aqui
desconhecida (e refrescante) veia de humor negro. De facto, toda
a relação entre o virginal Pikul e a experiente Allegra,
de óbvias conotações sexuais, assume contornos
paródicos: ele nunca jogou nenhum jogo porque tem fobias
em relação ao seu corpo ser penetrado (“tenho
medo que doa”, diz). E quando isso finalmente acontece –
numa cena de forte carga homo-erótica, com Gas (Willem Dafoe
num saboroso “cameo”) a abrir, com a ajuda de um “enorme”
berbequim”, um buraco na coluna de Pikul, deitado de costas
no sofá – ela prontamente se disponibiliza a enfiar
a língua no orifício, como preliminar de uma experiência
inesquecível... Cronenberg “light”? Talvez (principalmente
se comparado com o genial “Crash”, que o precedeu),
mas nem por isso “eXistenZ” deixa de ser um objecto
fulgurante.
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