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  Zona J


“Zona J” Para onde foi a vida deles?
Por Alexandra Lucas Coelho

Félix Fontoura vende sapatos na Amadora. Há cinco anos protagonizou um dos maiores sucessos de bilheteira do cinema português. O argumento era inspirado na história do Mariana, um rapaz da Zona J de Chelas. Fomos à procura deles, cinco anos depois. Por Alexandra Lucas Coelho

1. MARIANA

Na paragem do 59, frente aos Correios — disse Mariana ao telefone. Oficialmente, Chelas fica em Lisboa. Passe L, no 59, por exemplo, que vem dos Restauradores. Não é campo, nem subúrbio, nem improviso. Foi pensada de raiz para ficar. E ficou assim. Algo que se contorna, dentro da cidade. Ou que se atravessa rapidamente, de carro. Um vale ventoso. Centenas de prédios de um lado e do outro — centenas de prédios são milhares de pessoas, mas as pessoas não se vêem dos carros. A Zona J fica no lado nascente. É lá que Mariana mora. Foi a partir da história dele que se fez o argumento de “Zona J”.
O 59 pára na praça frente aos Correios.
Está um gelo de manhã. Mariana aparece igual ao Filomena do filme, cabelo bem rente, anel de prata, argolas de ouro. Esfrega as mãos para aquecer. Ainda não tomou o pequenoalmoço. O café onde costuma ir fica na fiada de prédios por trás da paragem. Parecem uma construção de legos psicadélica: rosa-choque, verde-eléctrico, roxo, laranja. Pequenos relvados em volta, ecopontos, calçada portuguesa, bancos. —
— Antes não havia calçada nem relva. Pintaram as fachadas... mas é só fachada.
Avançamos pelos patamares. Cores estaladas, cimento à mostra, buracos, poças de água, lixo rodopiando ao vento.
Toda a gente conhece o Mariana, no café. Sentamo-nos. Ele conta que já não vive na casa de há cinco anos, mas numa um pouco maior. Com a mãe (que continua a levantar-se às 4h da manhã para fazer limpezas na Baixa), a companheira e o filho de dois anos e meio. Tem um emprego fixo, na empresa de Tino Navarro, que produziu “Zona J”.
— Envio faxes, arquivo documentos, atendo telefones, faço contactos... entrei num telefilme da SIC, “A Noiva”... Depois do “Zona J” fiquei logo com a ideia de que o pulo do estrelato não aconteceria. Falou- se muito que fomos bons, mas deixou-se essa febre, as pessoas esqueceram-se. Quando um argumentista escreve, a última coisa em que pensa é: “Se calhar para este papel era bacano um actor negro...”
Aaaaaaaah! —– gritam as raparigas ao balcão. Correm para a porta. Correm e gritam e riem-se. Batem com a porta. Ficam contra o vidro, a olhar para fora, para o chão. Mariana (que está sentado de costas para elas) torce o tronco, para espreitar. Sorri. — É um rato. E voltamos ao princípio.
O pai dele nasceu na Cidade da Praia, a mãe em Luanda, e Mariana nunca foi a Cabo Verde nem a Angola. Também nunca viveu com o pai, que tem mais quatro filhas e um filho, e mora na Cova da Moura. Cresceu com a mãe. Vieram para Chelas a meio dos anos 80.
— O meu nome é Carlos Monteiro, sou o único filho dela. As pessoas viam-me e diziam: “É o filho da D. Mariana.” Passaram a chamar-me Mariana.
Aguentou o liceu até completar o 9º ano.
— Tinha um amigo, o Pardal. Éramos unha com carne. A nossa vida era ir à escola, ir ou não ir, fumar umas ganzas, ouvir Bob Marley, UB 40. Saí da escola para ir trabalhar nas obras. Prometeram-me cinco contos ao dia, deram-me 30 contos ao fim do mês. Fora não ter seguro, segurança social, contrato... Se ainda nos roubam é preferível andar na má vida. Burburinho lá fora. Mariana espreita de novo pela janela.
— Mataram o rato. As raparigas abrem a porta. Continua um gelo de manhã. — Queríamos ser como os outros. Se os outros têm umas Levi’s, nós não tínhamos. Na escola, os professores descriminavam- nos... Mas num ambiente em que o pai é alcoólico e a mãe é empregada da limpeza, ninguém apoia o filho para fazer os trabalhos de casa. Mesmo as assistentes sociais trabalhavam com 10 miúdos e 200 ficavam na rua... Tentávamos tudo para não passar dificuldades. Alguns roubos, assaltos aos betos, puxões... A minha mudança na vida, de ter esperança, foi o filme.
O produtor Tino Navarro (“Tentação”, “Adão e Eva”...) encomendara um argumento a Rui Cardoso Martins. Que, depois de umas idas a Chelas, conheceu o Pardal, e, através dele, o Mariana.
— A minha casa era um ponto de encontro do pessoal. Era um cubículo, mais um corredor do que uma sala. Tinha a televisão, o sofá, éramos uns 10 ou 15, tudo a falar. Os únicos brancos eram ele [Cardoso Martins] e o Pardal, o resto era tudo “blacks”. Mas a desconfiança transformou-se em confiança.
Rodou-se o filme. Mariana fez de Filomena, o “black” em casa de quem todos se reúnem, o das “fezadas” que vão dar “big money”.
— O Tino gostou do meu trabalho e convidou-me para assistente de produção.
Cinco anos depois, enquanto os papéis não aparecem, Mariana pensa em voltar a estudar e num projecto.
— Criar um movimento activista para exigir uma cota de representações de outras raças. Para que daqui a 10 anos tenhamos um Samuel L. Jackson, um Denzel Washington, uma Halle Berry... Estamos aqui há 30 anos, já deviam ter surgido pessoas. Há um Eusébio, uma Nayma, um Jamal e é tudo. Aparece um actor de vez em quando, o Ângelo Torres, o Daniel Martinho, o Miguel Hurst... não conheço escritores negros que tenham nascido aqui. Em termos artísticos é um vazio. Quando se fala da comunidade negra é para falar da CREL e das bombas assaltadas. Eu sou um gajo muito esperançoso. Mas não é a estar parado que a gente vai mudar.
Lá fora. Passamos a escola primária, vamos entre os prédios, sob as passagens de cimento. Grades nas janelas, roupa estendida a roçar o chão. Bancos vazios, escadinhas, de repente a paisagem aberta para as hortas, ao fundo o rio.
— Quando éramos miúdos, íamos à chinchada. Aponta para baixo.
— É ir às hortas roubar fruta. Íamos aos pessegueiros, aos marmelos, às figueiras...
Paramos mesmo à beira de uma figueira, que sobra nos baldios, nas traseiras dos prédios.
— Íamos a pé para todo o lado. Não é assim tão mau viver aqui como milhares de pessoas pensam.
Mariana, 26 anos, não se imagina a viver noutro lado.


2. FÉLIX

Félix Fontoura — o “black” que se apaixona por uma “dama” branca em “Zona J”, protagonista de um dos maiores sucessos de público do cinema português — vive na Brandoa e trabalha numa sapataria da Amadora. Folga às quintas-feiras. Marcámos encontro numa quinta-feira, no extremo de Lisboa que lhe ficava mais perto. Veio com a namorada, tão bonita e gentil como ele. Tem 29 anos e uma filha de cinco. Nasceu e cresceu em Luanda.
— A minha vida sempre foi o mundo artístico. Aos 12 anos ganhei o “Carrossel Especial”, uma espécie de “Chuva de Estrelas”, a cantar e dançar “funk”. Tive dois professores de dança e arranjei o meu próprio grupo, os Jackson Boys. Queria ser um grande bailarino. Entretanto havia a guerra, muitos amigos vinham procurar uma situação melhor a Portugal.
Veio, sozinho, para os Olivais, não longe de Chelas. Trabalhou nas obras meia dúzia de anos. Uma vez ganhou o programa Uma Noite de Sonho, o que lhe deu algum tempo no Big Show Sic e no Labirinto.
— Não deu para continuar, não me chamaram mais.
Voltou às obras. Nunca mais dançou. Em 1998 conseguiu chegar ao “casting” de “Zona J”.
— Éramos muitos, uns 30. Fiz quatro vezes. De cada, era uma falta no trabalho.
Continuou nas obras, à espera do resultado. Não tinha telefone em casa. Os senhores da mercearia do lado é que receberam o recado.
Durante três meses viveu na pele do Tó, na Zona J.
— Quando o filme se estreou foi um impacto muito grande. As pessoas olhavam, apontavam. Até hoje. Reconhecem-me, perguntam-me pelo próximo filme. Até os polícias...
O impacto durou uns fósforos. Apareceu no espectáculo de Filipe La Féria “A Rosa Tatuada”, no filme “Inferno” de Joaquim Leitão, nas séries “Concertos na Cave” e “Uma Casa em Fanicos”, na novela “Todo o Tempo do Mundo”. Depois, nada. —
Fiquei muito tempo parado. A minha namorada é que me ajudou muito.
Há poucos meses, mais um fósforo: três episódios da novela “Lusitânia Paixão”. — — As pessoas dizem que tenho de lutar, mas é o que faço. Dão muito poucas oportunidades a actores de cor. Dá uma revolta muito grande. Temos as pernas cortadas e não vejo sinal de mudança. O que faz falta é um produtor, um argumentista negro, ou que não visse a cor.
Está à beira de desistir de Portugal.
— Gostava de ir para Angola, a família está lá, está a fazer-se teatro, as cassetes do “Zona J” fizeram sucesso... Acredito que para mim seria fácil, estão a abrir-se portas. Aqui, sinto-me tão mal sabendo que as pessoas me conhecem. Já ouvi piadas na sapataria, as pessoas riem, dizem: “Olha o Zona J!”
Nas folgas, à noite, foi escrevendo um guião.
— Já tem 182 páginas. Chama-se “Quero”. É sobre um jovem que tem o sonho de gravar um disco. Vive no gueto, nos arredores da Amadora. Já mostrei ao Leonel [Vieira, o realizador de “Zona J”].
A namorada tenta animá-lo, diz-lhe que tem de reduzir o guião. Ele diz que sim. Fica a apertar o copo de papel na mão. Os grandes olhos melancólicos e o cabelo apanhado, como o Tó do filme.
— Não preciso de ser protagonista, só quero trabalhar. Se era para ficar parado, preferia não ter feito nada.