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   Série Y
  "Caminhos Perigosos"

Um “film noir” sulista
Por Vasco T. Menezes

Robert Altman, cineasta maldito, a adaptar John Grisham, autor de “bestsellers”? Deste encontro improvável nasceu “Caminhos Perigosos”, “thriller” atmosférico que desloca as coordenadas do filme negro para a paisagem insólita do Sul americano.

Advogado sulista, Rick Magruder (o inglês Kenneth Branagh, a mostrar mais uma vez que o seu lugar de eleição é à frente das câmaras e não atrás...) regressa à cidade natal de Savannah, na Geórgia, depois da última vitória em mais um caso mediático. No entanto, o êxito profissional não encontra correspondência a nível pessoal: separado de Leeanne (a ex-modelo holandesa Famke Janssen), as suas constantes aventuras levaram a mulher a pedir o divórcio. Numa festa surpresa em sua honra, conhece Mallory (a até agora subaproveitada Embeth Davidtz, descoberta por Sam Raimi em “Army of Darkness”), com quem passa a noite. Fascinado pela misteriosa mulher, resolve ajudá-la, quando esta lhe conta que o pai, Dixon (Robert Duvall, magnífico como sempre), líder de um estranho “grupo”, a está a perseguir. Graças aos esforços de Rick e à intimação do ex-marido de Mallory, Pete (o injustamente esquecido Tom Berenger), para testemunhar contra o sogro, Dixon é enviado para um asilo. A sua posterior fuga dará origem a uma complexa série de acontecimentos, que envolve raptos, assassínios e tragédia familiar... Pelo resumo (o possível, para não estragar eventuais surpresas...) de “Caminhos Perigosos/ The Gingerbread Man” (1998), de Robert Altman, facilmente se percebe estarmos no domínio do “thriller”. De facto, o filme não se desvia um milímetro das convenções e códigos do género, das mulheres fatais aos homens manipulados, passando pela intriga labiríntica, onde o desejo e o engano coabitam em doses iguais. No entanto, apesar de as reviravoltas da história não surpreenderem pela sua originalidade, não deixa de ser um “noir” eficaz e escorreito, muito por culpa do talento de Altman.

Irreverente desconstrutor de géneros e um dos expoentes máximos do autorismo americano, o veterano cineasta volta a revelar aqui uma faceta pouco conhecida, a de hábil artesão (fruto dos vários anos de trabalho na TV, em início de carreira, nos anos 50 e 60). Salta à vista a forma admirável como o realizador utiliza a insólita paisagem, desde logo exemplificada no magnífico e prolongado “aerial shot” inicial, captando o -exotismo do Sul americano, com os seus pântanos e bosques. A direcção artística e fotografia superlativas contribuem para a criação de uma atmosfera de ameaça latente (há um furacão, chamado “Geraldo”, a aproximar-se cada vez mais de Savannah...) e permitem a Altman (que escreveu o argumento, sob o pseudónimo de Al Hayes) desenvolver os aspectos efabulatórios implícitos na história original de John Grisham em que o filme se baseia. Com efeito, por alturas da visita à cabana de Dixon na floresta, não será abusivo dizer que o filme (apesar de enveredar depois por outros caminhos) chega mesmo a assemelhar-se a uma versão moderna e distorcida de um qualquer conto de fadas, com o paranóico velhote a servir de “ogre”, de quem a “donzela em apuros” Mallory tem de ser protegida pelo “cavaleiro andante” Magruder. Esta leitura sai reforçada pela referência à história do “homem de gengibre” (daí o título original do filme) que Dixon contava à filha, durante a infância desta, para a aterrorizar... Se as marcas do escritor são evidentes – o cenário sulista, o advogado protagonista e a personagem de Dixon, um louco com inclinações violentas, que é um primo distante dos vários neonazis apanágio das ficções de Grisham –, também estão presentes alguns laivos do estilo de improvisação, inimitável e caótico, tão ao gosto do realizador e exibido de forma gloriosa em obras-primas como “MASH” (1970), “Nashville” (1975) ou “Short Cuts” (1993): Altman dá aos seus actores espaço e tempo suficientes para aprofundar as peculiaridades de uma galeria de excêntricas figuras (de que o mulherengo e bêbado investigador privado do notável “enfant terrible” Robert Downey Jr. – estará a interpretar? – é um óptimo exemplo). Deste encontro de universos aparentemente inconciliáveis resulta um objecto curioso, longe do melhor Altman, mas alguns furos acima da maioria das adaptações de Grisham, como “O Dossier Pelicano” (1993), de Alan J. Pakula, ou “O Cliente” (1994), de Joel Schumacher.