“Sleepers” Confronto de gerações
Por Vasco T. Menezes
Com um elenco excepcional, “Sleepers”,
drama de Barry Levinson sobre o fim prematuro da infância,
possibilita o encontro com várias gerações
de actores americanos. Retrato de dois deles: Robert de Niro e Kevin
Bacon.
LorUma simples brincadeira que corre mal leva quatro
amigos inseparáveis a ter de passar um ano num reformatório.
Dentro do Wilkinson Center, Lorenzo, Michael, Tommy e John são
alvo de constantes espancamentos e violações por parte
dos guardas. Passados 13 anos e já adultos, um acaso fortuito
faz surgir a hipótese de vingança...
É um resumo possível do título
desta semana da série Y, “Sleepers” (1996), drama
assinado por Barry Levinson. Cineasta desigual, a sua coroa de glória
é ter sido um dos criadores de Departamento de Homicídios
— ao lado de Twin Peaks, a melhor série de TV dos anos
90, repetindo para a fórmula estafada dos “cop shows”
o que a criação de David Lynch havia feito em relação
às “soap operas”. No cinema, a sua melhor obra
é ainda a primeira, “Diner/Adeus, Amigos” (1982),
evocação nostálgica da Baltimore natal do realizador,
no final dos anos 50. Se este filme era um retrato de grupo, “Sleepers”,
em parte, também o é: os protagonistas já não
são jovens que se recusam a abandonar a adolescência,
mas sim quatro rapazes prestes a entrar nela. A recriação
do pequeno microcosmos do bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen
em que vivem, em meados dos anos 60, é o que “Sleepers”
tem de mais aliciante. Isso e o facto de, através de um elenco
de luxo, permitir o confronto entre várias gerações
do cinema americano, de Dustin Hoffman a Brad Pitt ou Jason Patric,
sem esquecer o mais novo “enfant terrible” de Hollywood,
Brad Renfro. Razão mais do que suficiente para lançarmos
um olhar mais demorado sobre dois desses representantes —
Robert de Niro, que interpreta o padre, figura paterna para o grupo,
e Kevin Bacon, o guarda que violenta esses rapazes.
O padre
O maior actor da sua geração: uma maneira simples
— e justa — de apresentar Robert de Niro, 60 anos e
a presença mais impressionante no cinema americano (apenas?)
das últimas três décadas. Expoente máximo
do “method acting” ensinado no Actor’s Studio,
a capacidade de entrar dentro das personagens que interpreta é
sinal de uma dedicação e perfeccionismo (ele fala
num “misto de anarquia e disciplina”) dignos de admiração.
Exemplos paradigmáticos disso mesmo são
dois filmes de Martin Scorsese, “New York, New York”
(1976) e “O Touro Enraivecido”: para o primeiro, aprendeu
a tocar saxofone, e no segundo, em que interpretava o pugilista
Jake LaMotta, engordou 30 quilos apenas para as sequências
finais.
São apenas duas na longa série de criações
apaixonantes deste actor camaleónico, que já foi,
sempre com a mesma consistência e magnetismo, taxista, produtor,
iletrado, canalizador anarquista, veterano do Vietname e até
o Diabo. O destaque vai, obviamente, para as geniais colaborações
com o amigo Scorsese — que o elevaram ao estatuto de “lenda
viva” —, em figuras icónicas com inclinações
brutais ou a resvalar para o psicótico: foi sempre assim,
desde o irresponsável e volátil primo de Harvey Keitel
em “Mean Streets” (1973), ao “gangster”
de “Casino” (1995), passando pelo “anjo vingador”
de “Taxi Driver” (1976), o patético Rupert Pupkin
do esfuziante “O Rei da Comédia” (1983), ou a
mistura de Lobo Mau e Freddy Krueger de “O Cabo do Medo”
(1991). É dele o melhor momento de “Sleepers”,
quando descobre o que fizeram aos “seus” rapazes, e
o papel de padre pouco ortodoxo que faz está mais próximo
do registo discreto de filmes como “Jacknife” (1989)
do que do glorioso “overacting” de 1987, como o Al Capone
de “Os Intocáveis”, de Brian De Palma —
para quem foi, em início de carreira, um “voyeur”,
nas sátiras “Greetings” (1968) e “Hi, Mom”
(1971), ou o mefistofélico Louis Cypher, de “Angel
Heart”, de Alan Parker. De Niro já disse que adormecia
a ver os seus filmes. Provavelmente, estava a referirse aos mais
recentes — obras dispensáveis como “The Score”
(2001) e “Showtime” (2002) — e não aos
títulos de glória dos anos 70, como a segunda parte
de “O Padrinho” (1974) e “O Caçador”
(1979). Esperemos, por isso, que não demore muito o reencontro
com Scorsese, Coppola ou mesmo Cimino... ~
O guarda
Esguio, desengonçado e com um característico sorriso
largo, Kevin Bacon tem habitado um espaço único, desde
a sua estreia, com 20 anos, no hilariante “Animal House”
(1978) de John Landis, em que fazia um viscoso “betinho”.
Passou despercebido, tal como aconteceria em “Sexta-Feira
13” (1980), onde tinha a felicidade de ser o primeiro a morrer...
O primeiro papel de relevo veio com o já referido
“Diner”, ao lado de outras “descobertas”
(umas agradáveis, como a fascinante Ellen Barkin, outras
nem por isso — o insuportável Steve Guttenberg), e
o solitário amargurado que compunha oferecia já um
cheirinho da loucura que iria demonstrar no futuro.
Dois anos depois, foi a estrela de um sucesso estrondoso,
o inenarrável “Footloose”, como o rapaz rebelde
que trazia o “rock” e a dança para onde estavam
proibidos, uma pequena cidade do interior americano. O filme era
mau, mas Kevin encontrou aí aquela que viria a ser a sua
típica “persona” na primeira fase da carreira
— o rapazola irrequieto e endiabrado, de ar insolente.
Foi assim que se apresentou, cativante e adorável,
numa série de comédias românticas leves, como
“She’s Having a Baby” (1988) — uma das primeiras
tentativas de sair do universo dos filmes de adolescentes por parte
de John Hughes, para quem já tinha feito um “cameo”
no anterior “Antes Só Que Mal Acompanhado”, veículo
para dois grandes cómicos, Steve Martin e John Candy —,
“He Said, She Said” (ao lado de Elizabeth Perkins, em
que os mesmos acontecimentos eram repetidos, sob os pontos de vista
feminino e masculino) e “Pyrates”, ambos de 1991.
Entre 1989 e 1990, participa em três filmes
de culto, “The Big Picture” — divertida sátira
a Hollywood, assinada por um dos Spinal Tap, Christopher Guest —,
“Criminal Law” e “Palpitações”,
uma deliciosa combinação de terror e comédia.
O segundo desses filmes, em que faz de assassino rico e psicopata
defendido por Gary Oldman, marca o início de uma nova fase
como vilão malicioso, que ele cumpre com o mesmo virtuosismo:
além de “Sleepers”, destaque para “O Rio
Selvagem” (1994), de Curtis Hanson, e o último Verhoeven,
“O Homem Transparente” (2000).
Paradoxalmente, as suas maiores criações
— como prostituto homossexual e fascista na teoria da conspiração
de Oliver Stone “JFK” (1991), e o sublime prisioneiro
que reverte a um estado quase animalesco de “O Condenado de
Alcatraz” (1995), de Marc Rocco — fogem a esta lógica
bipolar. Aos 45 anos, falta a Kevin Bacon um grande filme para o
seu talento ser finalmente reconhecido por todos. Talvez “Mystic
River”, que roda actualmente sob as ordens de Clint Eastwood.
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