O Grande Lebowski
A brincar aos detectives
Por Vasco T. Menezes
Como uma paródia/homenagem ao universo de
Raymond Chandler, O Grande Lebowski, de Joel e Ethan Coen,
o DVD de hoje da série Y, é um voo delirante sobre
as idiossincrasias de Los Angeles. Jeff Bridges é notável
como hippie ganzado e ávido jogador de bowling...
A Associação Norueguesa de Bowling recomenda...
O nome dele é Jeffrey Lebowski, mas todos
o tratam por The Dude (ou, se preferirem, Duder, His Dudeness ou
até El Duderino...). É o homem certo para o seu tempo
e lugar, a Los Angeles do início dos anos 90 mais concretamente,
1991, por alturas da eclosão da guerra do Golfo. Pelo menos,
é assim, como se estivéssemos no reino das lendas,
que o narrador apresenta a figura pançuda, de roupão
e chinelos, que vemos no começo de O Grande Lebowski (1998),
a deliciosa história de identidades trocadas com que os irmãos
Joel e Ethan Coen deram seguimento à sua obra, após
o inesperado sucesso de Fargo.
Hippie de meia-idade e pacifista desempregado, seguidor de uma dieta
quase exclusiva de charros e cocktails, Dude (Jeff Bridges) vê
a sua existência tranquila ser abalada quando dois cobradores
de dívidas o confundem com outro Lebowski, um milionário
velhote, e lhe urinam no tapete que compunha muito bem a sala.
Inconsolável, resolve ir falar com o irascível
magnata, à procura de compensação financeira.
No entanto, o máximo que consegue é surripiar-lhe
um tapete. Apesar disso, quando a mulher de Lebowski é raptada
(terá sido?), Dude é escolhido para servir de intermediário
na entrega do resgate. Será apenas uma das muitas peripécias
em que se vai envolver, ao lado de dois companheiros de bowling,
Donny (Steve Buscemi) e Walter (John Goodman).
Paródia
O filme nasceu da vontade que Joel e Ethan tinham de fazer uma versão
moderna das histórias de Raymond Chandler (um dos mestres
da literatura pulp e noir, de que os irmãos são entusiastas)
e de dar à narrativa um aspecto literário. Além
disso, através de um enredo que, à maneira dos romances
de Chandler, se movesse pelas diferentes classes sociais e zonas
da cidade dos anjos de Pasadena a Malibu , os Coen poderiam apresentar
a sua visão da peculiar cultura de Los Angeles, tal como
tinham feito no anterior
Fargo em relação ao Minnesota. Mas, ao contrário
do que acontecia aí, o olhar é o de dois outsiders.
Ainda somos turistas em LA, apesar de lá termos vivido durante
pequenos períodos de tempo, disseram os dois nova-iorquinos
de adopção, que basearam muitas das personagens em
amigos ou pessoas que conheceram nessas estadias.
O Grande Lebowski, com a sua narrativa sinuosa feita
de confusões e que no fundo (ao estilo chandleresco) não
tem importância nenhuma, é uma homenagem parodiante
ao género policial. O modelo é o The Big Sleep de
Chandler, para o qual remete o velhote milionário de cadeira
de rodas, tal como a filha sofisticada, Maude (Julianne Moore),
e a mulher ordinária, Bunny, variações das
irmãs dessa obra.
Os Coen transformam um conjunto de trivialidades,
enganos e desentendimentos em algo semelhante a um enredo, sob a
lógica da coincidência. As sucessivas pistas falsas
e digressões da narrativa têm como único propósito
o desenrolar de uma série de acontecimentos absurdos e a
apresentação de uma inolvidável galeria de
excêntricos. São os típicos idiotas incompetentes
que sobrestimam as suas capacidades e perseguem sonhos irrealizáveis
(aqui, a obtenção do fictício milhão
de dólares de resgate), uma constante no cinema da dupla
ao lado dos raptos e de homens gordos e barulhentos, que também
aqui marcam presença.
As auto-referências, através desta
profusão de obsessões queridas aos Coen, acentuam-se
pelo recurso a habitués como Goodman, Buscemi ou John Turturro
(Jesus, um narcisista pedófilo latino), que nos reenviam
para exemplos anteriores do imaginário dos cineastas (por
exemplo, Buscemi está sempre a ser mandado calar porque em
Fargo não parava de falar). Uma questão de coerência
(para alguns, indulgência...) e uma corajosa vontade de alienar
todos os que haviam conquistado com Fargo.
The Dude
Num filme servido por um elenco de eleição, seria
injusto não destacar Jeff Bridges, presença marcante
no cinema americano dos últimos 30 anos. Um dos actores mais
subestimados da sua geração, o seu admirável
registo de contenção tem sido erradamente caracterizado
como amorfo. O papel de Dude (escrito para ele, que usou muitas
das suas roupas...) é a súmula perfeita da sua persona,
alguém desligado deste mundo. Bridges está sempre
entre a inocência e a ingenuidade: o adolescente a caminho
da idade adulta de A Última Sessão (1971), de Bogdanovich,
o jovem boxeur de Fat City (1972), de John Huston; o ET de Starman
(1984), de Carpenter, ou o utópico construtor de carros de
Tucker (1988), de Coppola, obras notáveis, como notável
e injustamente esquecido é Cutter¹s Way (1981), do checo
Ivan Passer, em que Bridges faz um gigolo letárgico.
O Grande Lebowski acaba por ser também
um filme de época, ao revisitar a LA do início da
década de 90, uma sociedade onde (pelo menos segundo os Coen)
certas pessoas e comportamentos, oriundos de outras épocas,
ainda subsistem, numa espécie de distorção
temporal em que se cruzam os anos 60 e 70. Dude e Walter são,
nesse sentido, exemplares anacronismos ambulantes, incapazes de
sair do passado e lidar com o mundo exterior, refugiando-se num
salão de bowling.
O primeiro talvez o definitivo herói
improvável da obra dos Coen , com a sua banda preferida,
os Creedence Clearwater Revival, e a filosofia take it easy, man,
é o eterno hippie, já com alguns neurónios
queimados e sempre pedrado. O segundo é o protótipo
do veterano do Vietname, ainda obcecado com a guerra. O seu fétiche
por armas ajuda aos rumores de que a personagem se baseia no argumentista-realizador
John Milius, amigo dos Coen. Também a banda dos niilistas
alemães (que incluem Aimee Mann, a quem é cortado
um dedo do pé...), os Autobahn, traz recordações
dos anos 70, óbvia referência
aos Kraftwerk.
Os irmãos convocam ainda as memórias
do western e dos musicais de Busby Berkeley. No primeiro caso, com
a utilização da figura surreal do narrador cowboy,
interpretado por Sam Elliott, presença assídua em
filmes do género e a imagem perfeita do solitário
lacónico. No segundo, através de duas deslumbrantes
sequências oníricas, devaneios feéricos produto
da mente quimicamente alterada de Dude.
Mais próximo da leveza de Arizona Júnior do que do
negrume de Barton Fink, O Grande Lebowski é um objecto estimulante.
São os Coen a brincar aos detectives Dude como versão
hippie de Philip Marlowe? e quem estiver disposto a entrar no jogo
não poderá deixar de reconhecer a sua singularidade
e a perícia de Joel e Ethan na fusão dos materiais
mais heterogéneos. Além disso, um filme recomendado
pela Associação Norueguesa de Bowling não pode
ser de desprezar...
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