Jackie Brown Amo-te Foxy Lady
Por Vasco T. Menezes
Com "Jackie Brown", Quentin Tarantino foi
buscar ao baú dos seus afectos os "blaxploitation movies",
numa homenagem sentida que é também uma carta de amor
à rainha do género, Pam Grier
Jackie Brown, uma hospedeira de meia idade, trabalha
numa companhia aérea miserável que faz a ligação
entre os EUA e o México e transporta dinheiro para Ordell,
um traficante de armas. Até ao dia em que, após ter
sido descoberta pela polícia e cansada de ser mero peão
nas mãos de outros, resolve mudar de vida e engendra (com
a ajuda de Max, um fiador de fianças) um plano para ficar
com o meio milhão de dólares que Ordell tem no México...
Depois do magistral "Cães Danados"
(1992) e de "Pulp Fiction" (que lhe trouxe a consagração
definitiva em 1994, com a Palma de Ouro em Cannes), Quentin Tarantino
regressava ao "thriller", numa adaptação
do romance "Rum Punch", de Elmore Leonard. No entanto,
"Jackie Brown" (1997) demonstra que o cinema do obsessivo
"film buff" - feito de alusões e referências
aos imaginários mais díspares - também tem
coração, através da singela história
de amor entre dois "losers", Jackie e Max, a quem é
dada uma segunda oportunidade na vida.
Com este filme, mais reservado, longe da exuberância
das obras anteriores, Tarantino atingiu a maturidade cinematográfica,
o que não deixa de ser adequado numa história sobre
pessoas maduras, interpretadas por um elenco soberbo. Nele se destaca
a estonteante Pam Grier, "sex symbol" negro dos anos 70
e rainha dos "blaxploitation movies" (género feito
para, e pela, orgulhosa consciência negra, que assim reagia
à marginalidade que o "mainstream" lhe reservava),
homenageados de forma sentida pelo realizador. Tarantino alterou
a personagem principal do romance de Leonard (que era branca e se
chamava Jackie Burke) para poder declarar o seu amor e oferecer
o filme a Pam, a quem já tinha prestado tributo numa cena
de "Cães Danados", cujo argumento lhe era dedicado.
Um caso de fascínio, o mesmo que motivou a recuperação
de outras figuras esquecidas pelo tempo, como Lawrence Tierney (veterano
do "film noir" dos anos 40 e 50) em "Cães
Danados", John Travolta em "Pulp Fiction", Robert
Forster (actor importante do final dos anos 60 tornado "habitué"
da série B), também em "Jackie Brown", ou
David Carradine, no próximo "Kill Bill".
Pam agradeceu e aproveitou para voltar a brilhar,
exibindo o mesmo charme "cool" de sempre. Sem esconder
as marcas dos anos (já tem 53), dá uma lição
de como envelhecer com classe e dignidade e chega a ser comovente
no belíssimo final, quando o rosto se ilumina para acompanhar
com os lábios "Across 110th Street", o tema-título
de Bobby Womack para um dos precursores do movimento "blaxploitation",
e despedir-se do género que fez dela um ícone.
De Meyer a Carpenter
Mas, afinal, quem é Pam Grier? "Actriz de culto",
claro. Se alguém merece de forma inequívoca esse epíteto,
é ela, figura incontornável do cinema "trash"
dos anos 70, cuja história se confunde com a sua própria.
O seu primeiro papel é um prenúncio disso mesmo -
uma participação minúscula na obra-prima do
mítico Russ Meyer, "Beyond the Valley of the Dolls"
(1970). Por essa altura já Pam, filha de um mecânico
da Força Aérea e de uma enfermeira, tinha arranjado
um emprego como telefonista na lendária American International
Pictures (AIP), a companhia para a qual Roger Corman tinha realizado
as suas obras.
No entanto, não foi na AIP que Pam começou
a ganhar notoriedade, mas sim na New World, que o próprio
Corman fundara quando abandonou a realização. Quem
a descobriu foi Jack Hill (um dos ídolos de Tarantino), que
a levou para as Filipinas, onde fizeram os seminais "The Big
Doll House" (1971) e "The Big Bird Cage" (1972),
que inauguraram um dos géneros mais populares de "exploitation",
os "women in prison movies" (os filmes passados em prisões
de mulheres, pejados de violações, torturas e banhos
de chuveiro...) e deram origem a inúmeras imitações.
No primeiro (à data, o maior sucesso independente
de sempre), Pam é uma dura prostituta lésbica e canta
"Long Time Woman" - ouvida em "Jackie Brown",
na cena em que Jackie passa a noite na prisão (mero pretexto
para mais um tributo de Tarantino, cujo sonho era ter podido fazer
um filmes desses para Corman) -, enquanto no segundo é uma
mercenária que lidera uma fuga da prisão.
Ainda nas Filipinas, Pam fez mais dois filmes de
mulheres na prisão: "Women in Cages", memorável
como Alabama, a directora sádica de chicote em punho, e "Black
Mama, White Mama", uma versão feminina e "trash"
(escrita por Jonathan Demme) do clássico de Stanley Kramer,
"The Defiant Ones". Pam e a loura Margaret Markov "substituem"
Sidney Poitier e Tony Curtis no papel de duas prisioneiras algemadas
que fogem disfarçadas de freiras (no ano seguinte, em "The
Arena", seriam duas escravas que se tornam gladiadoras na Roma
antiga e iniciam uma revolta). Nessa altura, contraiu uma doença
tropical que quase a matou (ficou sem cabelo e cega durante um mês),
demorando um ano a recuperar.
Regressou em 1973, ano decisivo para a sua carreira.
Primeiro fez de rainha vodu em "Scream, Blacula, Scream!",
a sequela de "Blacula", que apresentava Mamuwalde, um
príncipe africano mordido por Drácula (a seguir, viria
"Blackenstein"!)... Depois, a AIP deu-lhe o seu primeiro
veículo exclusivo, "Coffy", que marcou o reencontro
com Hill. O êxito motivaria uma nova reunião um ano
depois, com "Foxy Brown" (homenageado no título
do filme de Tarantino - até as letras são iguais).
Estes dois clássicos da "blaxploitation" apresentam
versões femininas das fantasias protagonizadas por heróis
como Shaft, figuras individualistas que actuam à margem da
lei e fazem justiça pelas próprias mãos, longe
dos estereótipos racistas até aí habituais
ou dos negros americanos felizes e simpáticos que se viam
nos filmes de Sidney Poitier e Bill Cosby.
Escultural e voluptuosa, Pam Grier é uma presença
formidável de autoridade nessas obras, cuja história
acaba por ser quase a mesma: uma mulher forte e determinada, que
utiliza a sexualidade como arma contra os homens, parte em vingança
dos que lhe magoaram uma pessoa querida (a irmã e o namorado,
respectivamente). Por estes tempos, Pam era, ao lado de Barbra Streisand
e Liza Minnelli, a única actriz capaz de "vender"
um filme simplesmente pela sua presença.
Em 1975, com "Sheba, Baby" e "Friday
Foster", tentou afastar-se dos filmes de sexo e violência
a que estava associada (o segundo era a adaptação
de uma BD, realizada por Arthur Marks, o filho de Groucho Marx),
mas o resultado foram dois "flops". Com a morte da "blaxploitation",
Pam não conseguiu dar o salto para o "mainstream"
e dos filmes que fez até ao fim da década (e que incluem
um ridículo "sexploitation" italiano, "La
Notte Dell'Alta Marea", por onde passava também Hugo
Pratt) destaca-se apenas "Greased Lightning" (1977), onde
contracenou com Richard Pryor, o único cómico americano
dos últimos 30 anos a quem se pode chamar "génio".
Numa cena inesquecível com os dois na banheira, a primeira
que rodaram juntos, Pam canta-lhe ao ouvido "Amazing Grace".
Pryor apaixonou-se de imediato (alguém o pode culpar?) e
chegaram a estar noivos, uma relação que terminou
porque, dos dois, o volátil actor foi o único que
se tornou superestrela (pelo menos, é essa a sua versão,
contada na espantosa autobiografia, "Pryor Convictions").
Nos anos 80, sempre bela e fascinante, Pam Grier
veio a revelar-se uma secundária de talento, como o comprovam
o desempenho de uma agarrada patética em "Forte Apache,
o Bronx" (1981) e a participação na série
"Miami Vice" (a partir de 1984). O resto da década
é preenchido por filmes dispensáveis, como o primeiro
Steven Seagal, "Nico" (1988, onde, por sorte, passa a
maior parte do tempo em coma...). A excepção é
"Class of 1999" (1990), divertida série B em que
faz de professora andróide numa escola do futuro.
Na última década, ressalta o ano de
1996: além de "Original Gangstas", homenagem -
por Larry Cohen, um dos grandes cineastas independentes americanos
- à "blaxploitation" (que, além de Grier,
reunia Richard "Shaft" Roundtree, Ron "Superfly"
O'Neal, Fred "Black Caesar" Williamson e Jim "Slaughter"
Brown), entrou em extravagâncias de John Carpenter e Tim Burton,
"Fuga de Los Angeles" (como transsexual) e "Marte
Ataca!" (como ex-mulher de Jim Brown), que estão entre
as melhores obras dos anos 90.
"Jackie Brown" pode não ter reavivado
a sua carreira, mas nos filmes mais recentes - muito bons ("Fantasmas
de Marte", de Carpenter) ou nem por isso ("Pluto Nash",
em que é mãe de Eddie Murphy) -, Pam Grier continua
a dar mostras de uma graciosidade luminosa (eterna, presume-se),
capaz de elevar a mais banal das cenas.
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