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   Série Y
  TENTAÇÃO



Madonna dos descamisados
Por Maria João Guimarães

A diabólica Madonna a fazer de Santa Evita; descubra as semelhanças, com o musical de Alan Parker, o DVD de hoje da série Y.

Madonna enviou uma carta de quatro páginas ao realizador de “Evita”, Alan Parker, explicando-lhe por que só ela podia fazer o papel de Eva Maria Duarte. Não é difícil adivinhar porquê: o percurso e a personagem de Evita têm muito em comum com o percurso e a personagem de Madonna.

Eva era filha de uma mulher pobre e sem pai reconhecido, Madonna de uma família operária sem grandes recursos. Eva Duarte nasceu no interior da Argentina, e sonhava com filmes americanos e com a metrópole, Buenos Aires. Aos 17 anos fugiu para a capital com um cantor de tango. Madonna Louise Ciccone cresceu num subúrbio de Detroit, sonhava em cantar e dançar e aos 20 anos foi tentar a sua sorte para Nova Iorque. Tanto uma como outra teriam levado apenas uma mala para começar as suas novas vidas. De Madonna conta-se que trazia ainda consigo 30 dólares; de Evita que não demorou muito a perder aquela mala.

Ambas pareciam ter uma grande ambição e teimosia, e usaram alguns recursos menos aceites socialmente enquanto não atingiam os seus objectivos: a Eva apontam-se a utilização que fez dos homens (o cantor de tango que a levou para Buenos Aires, por exemplo), a Madonna o ter posado nua para revistas. Aliás, Eva Duarte começou por ser modelo fotográfica e depois então actriz radiofónica, Madonna foi modelo antes de conseguir ser cantora.

Ambas são divas de arrastar multidões. E como todas as figuras fortes, inspiram adoração ou ódio. “Ambas são corajosas, ambiciosas; são ambas, provavelmente, mal entendidas”, disse o realizador do filme.

Para além de tudo isto, há a semelhança física. Diferenças — como os dentes —, foram cuidadosamente corrigidas. Mas o que deu mais dores de cabeça a Madonna foram as lentes castanhas. A actriz contou depois que a faziam sentir-se tonta. Mais um pormenor: os cabelos louros fazem parte da imagem tanto de Evita como de Madonna; mas ambas tinham, originalmente, o cabelo castanho.

Manipuladoras
Talvez não o tenha dito nas quatro páginas de carta a Alan Parker, mas a Madonna (que utilizou muitas vezes o jogo entre o sagrado e o profano na sua própria imagem) apelaria certamente uma personagem que sobe na vida usando os homens e que acaba vista como santa pela sua dedicação aos pobres. E que no filme é mostrada como “a maior trepadora social desde Cinderela”, a rainha das manipuladoras; acaba como uma figura humanizada pela doença que a enfraquece.

O filme começa precisamente pela morte de Evita, a 26 de Julho de 1972. Era uma morte anunciada: o cancro que tinha no útero, sabia-se, ia-a minando. Evita “passa à imortalidade” aos 33 anos. O seu corpo, ainda jovem, foi embalsamado, num processo que demorou cerca de um ano, e protagoniza uma história bizarra que o filme já não conta. O golpe militar de 1955 derrubou Perón e este exilou-se em Espanha. O corpo de Eva Perón ficou nas mãos do novo governo, que o queria destruir, temendo que pudesse instigar algum ressurgimento do peronismo.

A ordem para a sua destruição nunca chegou a ser dada: o cadáver desapareceu durante 16 anos e os contornos exactos do seu percurso nunca foram esclarecidos. Diz-se que enquanto estava em Buenos Aires, foi guardado em casa de um major, Arandia, que aterrorizado com a hipótese de alguma pista levar os peronistas até ao corpo, dormia com uma pistola debaixo da almofada. Conta-se ainda que uma noite, ouvindo passos perto da porta do quarto onde estava escondido o cadáver, levantou-se e disparou contra a sombra. E foi assim que o major Arandia matou a sua mulher.

Quanto ao corpo embalsamado, sabe-se que andou pela Europa e que acabou por regressar ao cemitério Recoleta, em Buenos Aires, onde está enterrado a quatro metros e meio de profundidade, num caixão feito com um cofre forte de um banco.

Mitologia grosseira
Eva Duarte, filha ilegítima de uma mulher humilde, tinha escolhido o seu destino aos 14 anos: queria ser actriz. Fugiu poucos anos mais tarde para Buenos Aires. É fotografada para revistas, grava anúncios e rapidamente se torna uma vedeta da rádio.

Conhece o coronel Juan Perón quando este era um político em trajectória ascendente e secretário de Estado do Trabalho e Assuntos Sociais, em 1944, ano de um violento terramoto, que tinha destruído 90 por cento da cidade de San Juan, nos Andes. Perón convidou algumas celebridades para uma cerimónia de recolha de fundos, e entre as estrelas estava Eva Duarte, que iniciou então a sua relação com o viúvo de 48 anos.

Perón começa a ser uma figura-chave no Executivo militar argentino. Em Outubro de 1945, porém, um sector do Governo consegue a sua demissão. É detido e é Eva que organiza protestos e apela à sua libertação. Quando libertado, Perón casa com Eva.

No ano seguinte o coronel concorre às presidenciais e ganha as eleições. Eva acompanhou-o durante a campanha, numa altura em que as mulheres nem sequer podiam votar. Esta foi, aliás, uma das lutas de Evita — a lei que permitia o sufrágio feminino foi aprovada em Setembro de 1947.

Evita conta na sua autobiografia que pensou bem no papel que queria representar como primeira dama, e escolheu ser a protectora dos pobres, a “ponte entre o povo e o seu líder”, a incansável benfeitora. Ao longo dos anos, Evita, ou a fundação que criou com o seu nome, foi ajudando na construção de lares de idosos, criando programas turísticos para crianças, dando subsídios para criação de hospitais, distribuindo roupa e comida a famílias necessitadas. Consolidava-se a imagem da rainha dos descamisados, “Santa Evita”.

Poderia ter sido vice-presidente, ao lado do marido, mas no auge da sua fama e poder acabou por recusar ser candidata. O cancro já a deixava demasiado fraca. Votou, pela primeira e única vez, enquanto estava internada na clínica, mas ainda conseguiu estar presente na tomada de posse do marido, na última vez que apareceu em público.

Carlos Menem, o Presidente da Argentina na altura da rodagem de “Evita”, acabou por aceitar receber Madonna, mas apenas, segundo disse, depois de se ter certificado que o filme “não passava de ficção”. Uma ficção sobre outra: como escreveu Jorge Luis Borges num texto sobre a morte de Eva Perón intitulado “O simulacro”, “(...) nem Perón era Perón, nem Eva era Eva, eram sim desconhecidos ou anónimos (cujo nome secreto e rosto verdadeiro ignoramos) que ficarão para sempre, para amor dos crédulos, uma mitologia grosseira.”