O Executado esquecido
Por Bárbara Reis
A água já estava morna, no ponto certo,
quando a voz na rádio leu a notícia. ³Roger Coleman
foi executado hoje à noite nos Estados Unidos. Eram quatro
da manhã em Lisboa..."
É impossível continuar a tomar duche como se nada
tivesse acontecido, mas ouvir a confirmação de que
um homem que se conhece foi executado não chega a ser deprimente.
Talvez porque "conhecer" não seja a palavra certa.
Foi só uma entrevista ‹ para a prisão de Greensville,
Virginia, EUA ‹ e por telefone.
Mas as dúvidas em torno do caso eram tantas que todos os
que o entrevistavam na altura ‹ e sobretudo o próprio
Coleman, um mineiro pobre acusado de ter violado e assassinado a
cunhada ‹ viveram os últimos dias de forma entusiasmada.
Havia esperança num possível perdão oficial.
Que não chegou. Dias depois, a 20 de Maio de 1992, Roger
Coleman, 33 anos, foi sentado numa cadeira eléctrica, recebeu
duas descargas de 90 segundos e morreu. Wayne Brown, porta-voz da
prisão, disse a seguir: ³A execução foi
efectuada. Não houve complicações.²
No duche, a notícia ‹ cinco dias depois da entrevista
telefónica ‹ foi um soco violento. Mas o mais surpreendente
veio a seguir.
A seguir, e durante três anos, nunca mais pensei nisso. Só
quando, em 1995, ³A Última Caminhada², de Tim Robbins,
estreou em Nova Iorque, é que a voz de Coleman regressou.
De repente, a conversar com um amigo com quem acabara de ver o filme,
a entrevista reemergiu.
P - Como é que se vive dez anos à
espera da morte?
R - Com autocontrolo. Tenho-me mantido ocupado para evitar morrer.
P - A sua família apoia-o?
R - A minha mulher divorciou-se de mim três ou quatro meses
depois do julgamento. Mas a minha família, a minha mãe,
o meu pai, o meu tio, está comigo.
P - A sua mulher depôs contra si em tribunal?
R - Não, primeiro recusou-se a ir a tribunal, mas disse
à polícia que eu tinha chegado a casa [na noite
do crime] cinco minutos depois das 11 horas. Uma hora que provava
que não podia ter sido eu. Mas mais tarde, em tribunal,
disse que não se lembrava a que horas eu chegara a casa
nessa noite.
Nesta altura, Coleman era um homem ocupado. Antes
de se chegar a ele, e depois das telefonistas, surgia o tal Wayne
Brown, que organizava a sua agenda. De mineiro condenado à
morte, Coleman transformara-se numa estrela mediática.
P - O que vai fazer nos próximos dias?
R - Tenho estado muito, muito ocupado a apresentar o meu caso.
Só para ter uma ideia, às sete e meia da manhã
já estava ao telefone. Depois falei com o meu advogado
e dei mais duas entrevistas por telefone. A seguir dei uma conferência
de imprensa e quatro entrevistas ³non stop² a canais
de televisão. Como vê, os meus dias são muito
preenchidos. Ao todo, hoje já dei 11 entrevistas.
P - O que vai fazer se receber o perdão?
R - A primeira coisa que gostava de fazer era sair de Virgínia
e casar com a minha namorada.
Mas no jornalismo ‹ profissão em vias
de extinção (mais 50 anos?) ‹ a seguir a uma
entrevista com um homem prestes a morrer, é preciso escrever
sobre a fome na Somália onde morrem 500 crianças
por dia (na terça-feira), sobre um funcionário público
seropositivo que processou o chefe por discriminação
(na quarta-feira), sobre um toxicodependente filho de um pai rico
que se tornou ³homeless² (na quinta-feira), e a semana
ainda não acabou.
Roger Coleman foi executado cinco dias depois, e a seguir, durante
três anos, eu esqueci-me.
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