Fargo
Parolândia, EUA
Por Vasco T. Menezes
As bizarrias e peculiaridades da América
profunda, segundo os irmãos Coen. É "Fargo",
o DVD de hoje na Série Y."Thriller", comédia
ou tragédia? Um pouco de tudo...
Quando se fala no cinema de Joel e Ethan Coen, "pós-modernista"
é um termo frequente. É dessa forma que tem sido classificada
a sua obra e a desconstrução dos diversos géneros
cinematográficos que nela se opera. "Fargo" segue
essa linha, já que assenta na subversão total das
convenções do "thriller" (porventura o género
preferido da dupla). O filme começa com Jerry Lundegaard
(William H. Macy), um vendedor de carros de Minneapolis em apuros
financeiros, a viajar pelo Minnesota até à pequena
cidade de Fargo, no Dakota do Norte. Objectivo: contratar Carl (Steve
Buscemi) e Gaear (Peter Stormare) para lhe raptar a mulher e assim
poder pedir ao sogro rico o resgate, a ser dividido pelos cúmplices.
É o tradicional crime perfeito, só que concebido e
executado por idiotas (nem sequer conseguiram combinar correctamente
a hora do encontro, o que funciona como um prenúncio do jogo
de enganos que vai acontecer...).
De facto, em "Fargo" não encontramos
os habituais criminosos que se vê no cinema, metódicos
e profissionais, mas apenas dois incompetentes que se comportam
de forma tão desajeitada como as pessoas "normais":
só conseguem executar o rapto porque a mulher de Jerry fica
presa na cortina do chuveiro e cai pelas escadas abaixo (numa sequência
a roçar o burlesco) e o rasto de mortes que vão deixando
atrás não resulta de uma qualquer inevitabilidade,
apenas de uma série de coincidências provocadas pela
sua estupidez. A própria violência com que reagem às
situações mais banais não é mais do
que um sinal da sua impotência. São personagens grotescas:
Carl é um tagarela que mais parece uma criança birrenta,
reagindo com violência às situações mais
banais, enquanto o inexpressivo Gaear quase nunca fala, a não
ser para nos dar a conhecer a sua obsessão por panquecas.
Outra das peculiaridades do filme reside na forma
como os Coen quase fazem sabotar a sua "crime story" com
uma visão hilariante do Minnesota, uma região povoada
de excêntricos descendentes de escandinavos, que falam, com
um sotaque carregado, num bizarro dialecto arrastado - feito de
"yaaahs" e de expressões como "jeez"
ou "gosh" - que não parece permitir a expressão
de qualquer sentimento de surpresa, por mais estranhas que sejam
as situações. São uma espécie de Ned
Flanders (o vizinho de Homer nos "Simpsons") em versão
interior americano, levando a simpatia ao absurdo (o chamado "Minnesota
nice"). Talvez a lentidão com que falam e pensam seja
influenciada pela paisagem que os rodeia - uma imensidão
de neve aparentemente sem fim (passa por aqui uma ideia de pureza,
que vai ser manchada pelo vermelho do sangue que os assassinos derramam),
espaços vazios em que as pessoas parecem perdidas...
mulheres e homens. Os Coen acharam que todas estas
bizarrias (até o título é enganador: depois
dos primeiros minutos, nunca mais voltamos a Fargo) e digressões
na narrativa não seriam aceites pelos espectadores se estes
estivessem mentalizados para ver um "thriller" clássico.
Por isso incluíram no início o aviso - pura mentira
- de que vamos assistir a uma história verídica. "De
que outro modo poderíamos apresentar a heroína quase
a meio do filme?", disseram.
Essa heroína é Marge, a chefe de polícia
de Brainerd, a cidadezinha do Minnesota em que, na verdade, ocorrem
os homicídios. Imperturbável, perspicaz e grávida
(e por isso vulnerável), é o oposto do normal protagonista
de um "thriller": "Quisemos virar o cliché
do polícia 'macho' de pernas para o ar", explicaram
os manos. Marge aparece aqui quase como uma descendente dos heróis
dos "westerns" clássicos, pela capacidade que demonstra
em executar uma tarefa de forma lacónica e profissional (são
as mulheres que fazem as coisas andar, é o que os Coen têm
dito desde sempre).
Já os homens (como quase todas as figuras
masculinas do cinema da dupla) são perfeitos idiotas, com
desejos prosaicos que dão origem a gigantescas catástrofes
(nunca devemos tentar fazer o que não sabemos, nem querer
o que está para lá das nossas capacidades, regras
basilares do universo coeniano). Jerry é o exemplo acabado
disso: a viver eternamente na sombra do sogro e incompetente no
trabalho, sofre humilhação atrás de humilhação.
O plano que concebe é uma tentativa desesperada - e falhada
- de conseguir atingir o sucesso que sempre o iludiu. Nesse sentido,
apesar de ser um bajulador abjecto e desprezível, não
deixa de ser uma figura trágica, cuja queda é tanto
o resultado da sua culpa como de circunstâncias que o ultrapassam.
O filme vive muito dessa dicotomia entre o masculino
e o feminino, entre Jerry e Marge: na família Lundegaard,
quem manda é o sogro, Wade, com uma confiança em si
mesmo tão inabalável quanto ridícula (é
mais um dos "pais" autoritários que preenchem as
ficções dos Coen, desde o Albert Finney de "Histórias
de Gangsters" ao Paul Newman de "O Grande Salto").
É com ele que Jerry, o "outsider" dentro da família,
trava uma disputa constante pelo dinheiro e poder, símbolos
de um estatuto social que desde sempre lhe tem sido negado. Neste
mundo neurótico e patriarcal, a mulher é mero objecto,
uma dona de casa cuja existência é passada à
frente da televisão. Talvez tenha sido por isso que os Coen
lhe reservaram o papel do tradicional "macguffin" hitchcokiano
(afinal, a pós-modernice também tem limites...), funcionando
o seu rapto como um simples pretexto para o desenrolar da intriga
- depois disso, nunca mais a vemos e até a sua morte nos
é vedada, referida apenas "en passant"...
Se o mundo urbano de Jerry é feito de
complexos conflitos que levam ao desastre, o mundo rural de Marge
é simples e harmonioso, com a comida a ocupar um papel importante
no relacionamento entre marido e mulher - por diversas vezes os
vemos a comer juntos e a falar de comida. Aqui, os papéis
invertem-se: é Marge quem sai para ir trabalhar, enquanto
o marido fica em casa e cozinha para ela. São eles que dão
ao filme o seu forte núcleo emocional - quase sempre ausente
do universo cerebral dos Coen - e o chegam a tornar tocante: Joel
e Ethan fizeram de dois habitantes do seu Minnesota natal as personagens
mais simpáticas de todo o seu cinema, pessoas genuinamente
simples e boas que vêem a banalidade do seu dia-a-dia ser
perturbada por acontecimentos extraordinários de um mal,
para eles, insondável.
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