Apátrida
“Que esperança pode ter quem não tem o mínimo de direitos?”

Reside em Portugal há 20 anos, metade da sua vida. A regulamentação do Estatuto do Apátrida traz a possibilidade de ver reconhecidos os seus direitos fundamentais.

Ana Cristina Pereira (texto), Rui Gaudêncio (fotografia) e José Carvalheiro (ilustração)

6 de Dezembro de 2024

Quem dera a Jasmin Ahmetovic assistir ao debate, ainda por agendar, sobre o projecto de lei que regulamenta o Estatuto do Apátrida, o procedimento para a sua determinação e para a obtenção da nacionalidade. “Eu ia gostar muito!” Mas como entrar na Assembleia da República?

Apátrida, pessoa que não é titular de nacionalidade alguma, que não tem pátria. No dizer de Jasmin “ninguém, praticamente”. “Não tens documentos. As pessoas não te ouvem, não te vêem. És uma sombra.”

Há outros apátridas entre os 10,53 milhões de residentes. Nos censos de 2021, identificaram-se como tal 149 pessoas, bem menos do que em 2011 (553), em 2001 (1075), em 1991 (19698) ou em 1981 (1175), muito porque a partir de 1981 levantaram-se barreiras à aquisição de nacionalidade, que só começaram a baixar de forma progressiva em 2006.

Nunca houve uma via directa para resolver estes casos de privação de quase tudo o que está previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos. Em Junho de 2023 o Parlamento aprovou uma lei que consagra o estatuto de apátrida, mas tem tardado em regulamentá-la.

A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias discutirá em breve o parecer sobre o projecto de lei do Livre, também autor do diploma que criou o estatuto. O deputado Paulo Muacho espera que o assunto seja debatido no plenário no início do próximo ano.

Como sempre, quem quiser assistir ao debate terá de entregar um documento de identificação em troca do cartão de visitante. Jasmin não tem documento algum. O deputado só vê uma hipótese: a secretária-geral, que superintende todos os serviços da Assembleia da República e os coordena, abrir uma excepção para ele.

O que ali se vai discutir pode representar uma mudança drástica na vida deste homem de 40 anos. “Eu quero estudar, trabalhar, pagar imposto, fazer desconto para a Segurança Social. Eu quero viver uma vida normal.”

Conheci-o em Abril, na estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Um homem de estatura média, cabelos escuros, barba aparada. Tinha os braços a abanar e uma bagagem oculta, extenuadora, impossível de largar.

Como tinha ficado naquela espécie de não-lugar? Seria por conflito entre leis da nacionalidade ou práticas administrativas, por exemplo, por ter nascido num país que só admite o jus sanguinis (descendência) e os seus pais serem nacionais de um país que só admite o jus soli (local de nascimento)? Fora apanhado na dissolução ou separação de Estados, como a União Soviética ou a Jugoslávia? Ou teria sido discriminado com base na religião, na etnia ou no género? Há tantos países que não reconhecem à mulher direitos de transmissão da nacionalidade aos filhos, ficando estes dependentes do pai.

Da pesada bagagem, tirou primeiro a infância em Tor Bella Monaca, um bairro de má fama nos arredores de Roma. A sua primeira memória é um dia de chuva na barraca construída pela mãe com “madeiras, pedaços de portas, coisas assim”. “Luz, só de vela. Água, só da fonte.”

Na origem da família nuclear está um casamento arranjado lá para os lados de Sanski Most, Noroeste da Bósnia e Herzegovina. “A minha mãe foi obrigada a casar com o meu pai. Então, o meu pai não gostava dela.”

Apesar da pobreza, do desamor, da violência, já tinham uma menina (n. 1980) e um menino (n. 1981) quando migraram para Itália. Poucos anos depois, nasceu Jasmin (n. 1984). A seguir, outra menina (n. 1986), que ele haveria de ver morrer atropelada quando ambos atravessavam a estrada. Os mais velhos adquiriram nacionalidade bósnia, os mais novos não. “O meu pai não nos foi registar. A minha mãe não sabia como fazer isso.”

O pai era uma presença intermitente. Um dia, esfumou-se “no crime”, levando o filho mais velho. Para matar a fome, a mãe pedia esmola. “Ela bebia muito. Às vezes, nós ficámos dias sem a ver. Havia pessoas boas lá, vizinhos. Às vezes, os vizinhos traziam comida.”

Alguém alertou as autoridades. Jasmim e a irmã foram levados para um centro de acolhimento. A irmã foi adoptada. Jasmim, não. “Eu não tinha documentos.” Uma tia tirou-o de lá. “Acho que ela me roubou.” Pergunta-se que vida teria tido se lá tivesse ficado até ser maior.

A mãe pô-lo a mendigar com ela ou sozinho. Entretanto, eclodira a guerra na Bósnia (1992). Por serem bósnios, o pai viu no fluxo de refugiados que então se formou uma oportunidade. Foi a Roma buscar a mulher e os filhos. Procurou refúgio em Aurich, na Alemanha.

Após curta estadia num centro de refugiados, foram realojados num apartamento. “Foi quando soube o que era uma casa. Demorei muito tempo a dormir num quarto sozinho porque tinha medo. Numa barraca todo o mundo dorme junto.”

Também se estreou na escola. Estava fascinado, embora não falasse alemão. “Eu tinha nove anos. Era para entrar na quarta classe só que eu não sabia ler nem escrever e então tinha de fazer sempre as aulas à parte.”

Os dias traziam, por fim, promessa de futuro. Uma noite, após mais uma cena de violência, o pai e os rapazes adormeceram no sofá a ver um filme. “A minha mãe ferveu água e jogou em cima da gente. Depois agarrou numa faca. Tentou espetar o meu pai, espetou o meu irmão no braço, espetou-se na coxa.”

Jasmin acabou por voltar a Itália com a mãe. “Na Alemanha, como ela fez muitas coisas graves, parece que tiraram o direito de ela ficar lá.” Em Turim, mendigavam. Recolhiam e separavam metal que outros punham no lixo.

Ia fazer 17 anos quando a mãe morreu, com uma infecção. “Para mim foi doloroso, mas foi também um alívio. Eu estava sempre junto dela. Levava-a dos bares quando estava bêbada. Via-a dormir na rua e dormia ao lado dela. Eu nunca abandonei ela, só que eu sofri muito com isso..."

Ficámos horas naquele diálogo entrecortado pelo ruído do rolamento dos comboios. Os minutos passavam e a bagagem daquele homem parecia não ter fundo. Cada instante trazia mais acontecimentos e decorrências e a impossibilidade de alterar o princípio de tudo, a falha inicial.

A família tratou de tudo, mas exigiu-lhe que pagasse pela transladação do corpo e o funeral. Sem documentos, sem eira nem beira, com uma dívida de “oito mil euros”, Jasmin entrou no mundo do crime. “Era muito dinheiro. Eu era jovem. Me encostaram à parede.”

Não se ficavam por Itália e, em Agosto de 2004, foi detido em Lyon, França. Esteve três meses em prisão preventiva em Carcassonne. “Foi um engano. Eu fui preso porque estava num carro que eles tinham usado num assalto.”

Deduz que, em França, as prisões levam a sério os documentos de identificação dos reclusos. “Viram que eu não tinha documentos, pediram asilo. Regularizaram-me antes de me libertar. Não tinham para onde me expulsar.”

Havia um familiar perto. Averiguou saídas num bairro que conhecia. Em Dezembro de 2004, Jasmin estava num carro em direcção a Quarteira, no Algarve. “Antes de Janeiro começaram a trazer carros. Então nós éramos meio obrigados a desmontar carros, trocar matrículas, coisas assim. Comecei a fazer perguntas e vi que ficavam violentos.”

Ao ouvi-lo desfazer esta bagagem toda, perguntava-me quanto daquilo era verificável. Que papéis tinha? Quem poderia testemunhar? Estavam disponíveis para o fazer? Que informação guardavam as autoridades?

Pedindo, a Procuradoria-Geral da República identificou o número do processo. Requerendo, o juízo Central Criminal de Faro autorizou a consulta. Juntando todos os arguidos, 26 volumes, alguns atados por cordéis.

Dei com uma cópia do documento de requerente de asilo e com informações oficiais sobre o processo que decorrera em França. Dei com uma cópia da falsa carta de condução que tinha quando foi detido em Portugal, o auto dessa detenção e tudo o que se seguiu.

“Foi uma operação muito grande”, recorda. Apareceu nos noticiários a operação do dia 12 de Março de 2005. Deduziu o Ministério Público que os arguidos vieram para Portugal com o “único propósito” de furtar carros, trocar as matrículas e vendê-los. “Havia crianças que estavam lá. Então eles pensaram que era tráfico de crianças, mas não era. Veio a polícia e prendeu todos.”

Como em França, o sistema judicial reconheceu-lhe personalidade jurídica, isto é, a possibilidade de ser titular de direitos e obrigações. Foi-lhe atribuído um advogado oficioso e chamado um tradutor. Aguardou julgamento no Estabelecimento Prisional de Faro.

No processo judicial, os tribunais ignoraram o documento emitido pela república francesa e valem-se sempre dos dados que constavam na carta de condução falsa, com data e local de nascimento errados e nacionalidade bósnia. Jasmin foi condenado a oito anos de prisão por associação criminosa, furto qualificado e falsificação de documentos e transferido para o Estabelecimento Prisional do Linhó, em Cascais. Cumpriu cinco anos e quatro meses. Os serviços prisionais abriram-lhe a porta da rua sem lhe entregar qualquer documento de identificação. Agora, pedindo o seu registo criminal, nada aparece.

Na segunda vez que o vi, já em Junho, Jasmin parecia continuar à espera de um destino, curvado pela bagagem invisível, mas estava acompanhado. Num café lateral da estação, estavam três pessoas que o acompanham há anos, que conhecem o seu esforço para alcançar uma “vida normal” e sabem como a falta de documentos o priva de direitos elementares.

Conheceu a missionária Blanca Velandia, da associação Open Heart, no Linhó. “Fiz um almoço de Natal e convidei as pessoas estrangeiras que não têm família. Entre elas estava Jasmin, sozinho, triste, desolado. Aquele encontro foi o início de muitas coisas na vida dele.”

Além de punir, o sistema prisional deve reabilitar. Estudar, não conseguiu. “Não tinha documentos. Tem de ter um registo na escola.” Trabalhar, sim. “Teve uma greve de presidiários. O director falou: ‘Quem furar a greve tem direito de trabalhar.’ Eu furei a greve. Só por esse facto eu consegui trabalhar. Alguns presidiários queriam me matar.”

Passou o teste. “Tem revelado ser possuidor de hábitos de trabalho (trabalha na padaria do EP onde é considerado um dos elementos com melhor empenho e assiduidade), tem bom comportamento (não praticou quaisquer infracções disciplinares e é cumpridor das regras) e mantém bom relacionamento com companheiros e funcionários”, lê-se na decisão de liberdade condicional do Tribunal de Execução das Penas. “Manifesta capacidade de contenção do seu comportamento perante situações adversas e parece que o tempo de reclusão o fez amadurecer.”

Bianca afeiçoou-se a ele. “Como não tens família, queres ficar connosco?”, perguntou-lhe antes de ele sair da prisão. “Vamos tentar ajudar-te a arranjar um trabalho.” Jasmin respondeu que não, que ia ter com o pai à Alemanha, trabalhar na construção, mas no dia seguinte decidiu aceitar.

Na memória de Jasmin, ficou em casa dela 15 dias. Na memória de Bianca, dois ou três meses. Mudou-se para muito perto dela. “Eu dormia numa oficina de um senhor que me ajudou a ter uma profissão. Trabalhava e dormia no mesmo local.” Aprendeu a desmontar peças, aplicar massa, lixar, pintar. “O senhor não sabia do meu passado. Quando descobriu, ficou com medo, então me mandou embora.”

Pediu ajuda numa igreja evangélica que começara a frequentar no Estoril. “Eles me deixaram ficar uns dias. Depois fui para um hostel. Às vezes, trabalhava como entregador de panfletos, mas chegou a um ponto em que não conseguia fazer dinheiro suficiente. Dormia na rua.”

Estava nisso quando conheceu a dona de um salão de cabeleireiro, que já não vive cá, mas que lhe ficou na memória como Leo Moreno. “Ela sensibilizou-se com a minha situação e começou a me ajudar, me deixou dormir na sala da casa dela. A partir daí, as coisas começaram a melhorar.”

Aprendeu a cortar cabelo. Serviu nas obras. Trabalhou num bar de praia. “O dono sabia da minha situação. Mesmo assim, ele me deixou trabalhar.” Os tutoriais do YouTube ajudaram-no a aprender Português com sotaque brasileiro, mas aquelas convivências, mais ainda. “Depois, me chamaram para trabalhar numa lavagem de carros. Trabalho nisso até hoje.”

Kleber Marcolino conheceu-o nessa altura. Subalugavam ao mesmo homem o local de serviço de lavagem de automóveis. “Todo o mês ele vinha entregar a factura. Vi que era uma boa pessoa. Viramos amigos.”

Não esconde a admiração. “Ele está a lutar pelo pão dele. Nessa situação, vive se esquivando, não pode ter nada em nome dele, só de terceiros, sendo explorado também, sem poder reivindicar os direitos dele. O parque lá cobrava para ele um valor de renda quase o dobro do da gente.”

Trabalhou muitos anos para o mesmo empresário, mas teve de circular. “As coisas estão apertando agora”, diz Jasmin. “Na loja bateram várias vezes as pessoas da fiscalização e várias vezes fui apanhado.” O patrão já pagou diversas multas. “Não dava mais.”

Além de não ter actividade profissional reconhecida, sem documentos não pode abrir conta bancária, registar ou herdar propriedade, celebrar um contrato de arrendamento, tirar um passe, comprar um bilhete de avião, contrair matrimónio. E registar o nascimento de um filho?

Conheceu Érica Teodolino em 2015. Conta ela que ele lhe pareceu “muito prestável, muito amigo de ajudar”. “Ele tem essa força de tentar sobreviver. Mesmo com todas as dificuldades, ele continua a lutar.”

Moraram juntos em Sintra. De repente, sem esperar, ficaram à espera de um filho. “Depois que o Santiago nasceu, tive uma depressão”, admite Érica. “Eu tinha pânico do futuro, do que que ia ser a vida dele.”

No princípio, tudo parecia bem. Conseguiram registar a criança logo a seguir ao nascimento, no Hospital de Cascais, com duas testemunhas – a mãe e uma tia de Érica atestaram a identidade de Jasmin. O menino já conta oito anos e até agora o pai pensa que foi um engano.

“O problema veio depois”, esclarece Érica. “Para qualquer coisa era preciso assinatura minha e do Jasmin. Não se conseguia comprovar a assinatura do Jasmin, então o Santiago ficou sem documento. Até aos 4 anos, só tinha registo de nascimento.”

Não conseguia registá-lo na Segurança Social, pelo que não recebia abono de família. “Com o passar do tempo, foi dificultando mais por causa da escola, do passe, do centro de saúde.” Teve o pai de abdicar das responsabilidades parentais.

Já não estão juntos. “Ela tentou me ajudar, mas outras pessoas não entendem a situação e ficam com medo”, interpreta ele. “O problema está aí, cansa. Você está com uma pessoa que não consegue viajar, não consegue fazer nada, você está presa. O amor e tal, está bem, mas você está presa.”

Para quase todas as pessoas, a nacionalidade é um bem garantido. “As pessoas nascem e têm documentos.” Jasmin tentou várias vezes obtê-los. “Como era sozinho e não tinha noção de como funciona, o processo nunca foi em frente.”

Entregou prova de nascimento de Itália, as autoridades pediram-lhe pronúncia formal de impossibilidade de atribuição de nacionalidade italiana. Entregou uma declaração bósnia a dizer que não é cidadão, pediram-lhe outra. Entregou o registo criminal de Portugal, pediram-lhe o do país de origem. “Estão me pedindo coisas que eu não consigo.”

Dizia isto mostrando cópias. Daquilo e do atestado de residência emitido por uma junta de freguesia, da declaração de um empregador a comprovar que é lavador de carros e remunerado por isso, do testemunho da ex-companheira a afirmar que é pai e paga pensão de alimentos.

Numa das vezes que o encontrei, estava a trocar mensagens com uma pessoa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). A saída seria o artigo 123.º, que prevê um “regime excepcional” de autorização de residência por “razões humanitárias”.

Questionada pelo PÚBLICO, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) respondeu que “não se pronuncia sobre casos concretos”. “No que diz respeito à lei que consagra o estatuto de apátrida, a AIMA aguarda a respectiva regulamentação”, referiu, escusando-se a fornecer dados e esclarecimentos.

Depois de ver Jasmin numa reportagem da TVI, a advogada Catarina Zuccaro decidiu ajudá-lo, pro bono. Representa vários apátridas. Além dele, oito libaneses, um argelino, um marroquino, que “vieram de barco, vieram de carro, vieram andando”. São sobretudo homens, quase todos com menos de 40 anos. “Muitos vivem de biscates e de ajudas em pequenas cidades, onde a fiscalização é menos acentuada.”

Escreveu à AIMA a pedir um agendamento para emissão de passaporte de estrangeiro para Jasmin. Com esse documento, já poderá inscrever-se nas Finanças, na Segurança Social, no Serviço Nacional de Saúde, abrir uma conta bancária, assinar um contrato de trabalho, provar que tem meios de subsistência.

Como a AIMA não respondeu àquele pedido dentro do prazo legal (de dez dias), Catarina Zuccaro decidiu intentar uma acção administrativa. Aguarda que o juiz notifique a agência. Entretanto, requereu uma certidão de tudo o que já foi feito pelas autoridades portuguesas.

O Estatuto do Apátrida também é um passo temporário. A solução definitiva só virá com a nacionalidade. Jasmin preenche os requisitos que constam do projecto de lei do Livre para, por esta via, adquirir a nacionalidade portuguesa por naturalização: “Residir em território português há pelo menos três anos; conhecer suficientemente a língua portuguesa; não constituir um perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em actividades relacionadas com a prática do terrorismo.”

“Será que vou conseguir?”, pergunta uma e outra vez Jasmin. “Para mim, Portugal é o melhor país. Pessoas, cultura, tudo. Só em termos de condição está atrás em alguns aspectos.” Um dos seus maiores sonhos é viajar, conhecer a Bélgica, o Japão, o Brasil…

Está cansado de carregar aquela bagagem que só quem se detém para o ouvir consegue ver. “Nasci num lugar miserável. Vivi num mundo de crime. Dormi na rua. Comi nos contentores de lixo, vi coisas horríveis. Tive de me auto-educar.”

Às vezes, murcha. “Que esperança pode ter quem não tem o mínimo de direitos?” Depois, pensa no filho e reencontra ânimo. “O único tempo bom que eu tive na vida foi quando estive na prisão e quando o meu filho nasceu. Na prisão, não me preocupava com nada. E quando o meu filho nasceu me deu esperança de que eu consigo ser alguém.”

Nunca pertenceu a lugar algum, é como se estivesse sempre em trânsito, à procura do lugar certo para soltar aquela bagagem. “Eu nunca tive chance de me fixar. Eu nunca tive chance de ter uma vida digna. Eu quero ter uma vida digna. Eu quero ser um exemplo para o meu filho.”

FICHA TÉCNICA

Texto
ANA CRISTINA PEREIRA

Ilustração
JOSÉ CARVALHEIRO

Fotografia
RUI GAUDÊNCIO

Coordenação
ANA CRISTINA PEREIRA
JOANA BOURGARD

Direcção de arte
SÓNIA MATOS