Mundo de silêncio

Violeta volta a ouvir
aos 84 anos

Ana Maia (texto), Mariana Godet (imagem e edição), José Carvalheiro (ilustração e animação), Daniel Rocha e Matilde Fieschi (fotografia)

11 de Julho de 2024

Violeta Barata chegou a julgar-se condenada a viver num mundo de silêncio. “Não oiço a chuva a cair, a música, não oiço nada”, lamentou a octogenária, numa das várias conversas com o PÚBLICO, que a acompanhou durante sete meses, antes e depois de fazer uma cirurgia de colocação de um implante coclear, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em Outubro de 2023.

“Foi um sentimento de alegria muito grande. Lembro-me de que disse ‘Já oiço!’”, descreve, recordando o momento em que voltou a ouvir um som. Sentada no sofá de casa, em Sines, Violeta (que nunca foi de se entregar a queixumes e que também nunca deixou de frequentar a universidade sénior, mesmo quando não era capaz de distinguir uma única sílaba das que se diziam na sala de aula) confirma que a cirurgia que voltou a pô-la em contacto com o mundo sonoro e lhe devolveu as vozes das filhas e do neto também a tornou mais autónoma. “O que seria da minha vida se não tivesse feito a cirurgia?”, questiona. Já recomeçou a ouvir a música dos filmes e das séries que segue. A aparelhagem e a colecção de discos, devidamente encadernada, continuam por enquanto guardadas, à espera que a capacidade de ouvir seja integral.

Violeta tem 84 anos e vive numa aldeia perto de Sines

Violeta tem 84 anos e vive em Sines

Violeta tem 84 anos e vive em Sines

O caso

27 de Outubro de 2023. Subimos as escadas do prédio até à porta de Violeta, num corredor pintado de verde pelas inúmeras plantas em vasos. Cláudia, a filha mais nova, veio dos Açores, onde mora e trabalha, para acompanhar a mãe no dia da cirurgia e nos seguintes, juntamente com a irmã Alda, que vive em Sines. Faz barulho com as chaves a abrir a porta e chama por Violeta. A mãe, que está na sala, só dá conta quando a filha lhe toca num ombro. “Então, mãezinha, como estás?”, pergunta. Violeta compreende pela expressão e o abraço caloroso que recebe. Mas não ouviu uma palavra. Eventualmente, algum tipo de ruído.

Apresentamo-nos com recurso à caneta e ao caderno. “Gosto muito de conversar. Tenho um grupo de amigos com quem me reúno. O que vale é que têm todos muita paciência e usam papel e canetas para eu tomar contacto com o que estão a discutir. Tenho um grupo de autoconhecimento online e é através de mensagens escritas que consigo contactar. Frequento a universidade da terceira idade. Mas só vou para sair de casa e não ficar fechada todo o dia. Vivo num mundo de silêncio. Não ouvi quando abriram a porta, não ouvi nada”, diz Violeta, em modo de introdução.

Foi secretária e trabalhou como contabilista com o marido. Complemente autónoma e a viver sozinha, arrumou de vez o trabalho aos 80 anos, depois de ter ficado viúva. Mas ainda o marido era vivo quando surgiram os primeiros sinais de que estava a perder a audição. “O meu pai começou a dizer que ela ouvia mal, que a chamava e ela não respondia. Nós também começámos a aperceber-nos disso”, recorda Cláudia.

A perda dos sons agudos foi-lhe limitando a compreensão das palavras. Violeta colocou amplificadores auditivos, que foram levando ajustes ao longo do tempo. Mais tarde, trocou-os por outros, mas isso não ajudou. Foi nessa altura que lhe falaram sobre a existência dos implantes cocleares.

“Disse que vive num mundo de silêncio. Como é não ouvir?”, escrevemos no caderno. “É difícil. Cada vez que saio à rua, encontro pessoas conhecidas. Falam comigo naturalmente mas eu não as oiço. Não oiço a chuva a cair, a música, não oiço nada”, responde. E do que mais tem saudades de ouvir? “Tenho saudades de ouvir a voz das filhas, a voz do neto e de ouvir música.” A voz treme-lhe.

Alda acompanhou a mãe durante as várias consultas

Alda acompanhou a mãe durante as várias consultas

É uma mulher de estatura baixa, de olhos castanhos emoldurados por uns óculos de metal dourado e de cabelo curto, pintado de escuro. “No meio das pessoas eu fico isolada”, diz, com a tranquilidade dada pelos seus 84 anos. Mas reflectindo alguma tristeza.

Nas mãos das filhas Alda e Cláudia, ambas de cabelos castanhos pelos ombros e de sorriso tão fácil como a progenitora, há sempre um telemóvel. É através de mensagens escritas que comunicam. As três contam o momento em que Alda recebeu do Hospital de Santa Maria a informação de que a cirurgia estava marcada para 31 de Outubro e a enviou à mãe, no grupo da família. “Até chorei de alegria”, recorda a mãe, de mãos entrelaçadas.

“Tenho duas filhas que são dois amores. Esta veio de propósito dos Açores para me dar apoio, e a outra, que vive em Sines, está sempre disponível para me acompanhar e levar a qualquer lado”, diz, sentada no sofá de cor rosa pastel, virando-se na direcção de Cláudia e Alda. Uma declaração de amor retribuída.

Na sala, pintada de branco e ponteada com quadros de paisagens e pequenas estatuetas africanas, Alda e Cláudia emocionam-se quando falam na tristeza que sentem na mãe e recordam como já nem a linguagem labial e o falar pausadamente ajudam. “Até isso foi perdendo e temos de recorrer à escrita. Custou um bocado, mas o que custou mais foi dizer às pessoas que ligavam que não o fizessem”, conta Alda. Violeta deixara de as conseguir ouvir.

Implante coclear

Foi a médica de família que encaminhou Violeta para uma consulta no Hospital de Santo André (Litoral Alentejano), que tem um protocolo com a Unidade Local de Saúde de Santa Maria — e que passou a acompanhá-la. Violeta será operada ao ouvido direito, o que está em piores condições.

“Embora consiga ouvir alguns sons graves com volume de 50, 80, 100 decibéis [db] — com volume muito alto —, o que consegue perceber é nada. O máximo de discriminação que tem é de 20%. Do que estamos à espera quando implantarmos este ouvido é que fique a ouvir pelos 30db”, explica Leonel Luís, director do serviço de Otorrinolaringologia da Unidade Local de Saúde de Santa Maria. Ou seja, a expectativa é devolver a Violeta uma audição próxima do que seria normal.

A norma da Direcção-Geral da Saúde, publicada em 2016, define que devem ser incluídos neste tratamento adultos com “surdez profunda pós-lingual bilateral” ou “surdez severa bilateral sem benefício funcional com prótese auditiva (discriminação inferior a 50% no melhor ouvido com prótese auditiva)” e que não tenham "surdez com privação auditiva prolongada", entre outros critérios.

Entre exames e consultas, passou quase um ano até Violeta e as filhas receberem a data da cirurgia. Alda conta que lhes explicaram que o som que Violeta vai ouvir “será mais mecanizado”, que a terapia da fala ajudará a “aprender a relacionar os sons mecanizados com os sons que ouvia antes”. E que voltar a ouvir será um processo gradual que levará pelo menos um ano.

Leonel Luís, director do Serviço de Otorrinolaringologia no Santa Maria

Leonel Luís, director do Serviço de Otorrinolaringologia no Santa Maria

Leonel Luís, director do Serviço de Otorrinolaringologia no Santa Maria

O implante coclear tem duas componentes. Uma, colocada por debaixo da pele, tem um pequeno fio eléctrico que será inserido dentro da cóclea e que irá transmitir ao nervo auditivo o som transformado em sinais eléctricos. Esse som é captado pelo microfone da segunda componente do aparelho, semelhante a uma prótese auditiva e que fica na parte exterior da orelha. O transmissor externo e o receptor implantado contactam-se através de um íman.

“O nosso cérebro não ouve propriamente sons — recebe e entende estímulos eléctricos. O nosso ouvido transforma o som num estímulo eléctrico e é esse estímulo que chega pelo nervo auditivo ao cérebro. No fundo, o implante coclear faz a mesma coisa. Recebe o som, tem um processador que o transforma num código, que é transferido para o aparelho [debaixo da pele], e essa informação eléctrica é depois transmitida ao nervo auditivo”, explica Leonel Luís, enquanto segura um modelo na mão. O som que Violeta vai ouvir “é diferente do som que o ouvido biológico reproduz”, mas o “cérebro vai ser muito rápido a começar a adquirir a linguagem com base naqueles sons”.

Há vários anos que no Hospital de Santa Maria se colocam implantes cocleares em utentes mais idosos. “São resultados absolutamente extraordinários", afirma o médico, que irá liderar a operação. Mas na consulta continua "a ouvir pessoas a dizer ‘Já não tenho idade, já tenho 80 anos, já tenho quase 90’. Não há coisa mais triste do que não ouvir”.

Parte interna do implante coclear

Parte interna do implante coclear

Parte interna do implante coclear

Os processos de aquisição dos equipamentos para o SNS são centralizados. Os preços podem variar entre os 16 mil e os 22 mil euros por implante, explica o director do serviço, fora os custos relacionados com exames e cirurgia. O preço que o Estado, enquanto financiador, pagou em 2023 às instituições hospitalares foi de 20.476 euros para implantes unilaterais e 35.490 para implantes bilaterais, com valores globais estimados de 4,4 milhões e 1,2 milhões de euros, respectivamente, adianta a Direcção Executiva do SNS (DE-SNS)​.

Para o utente, o custo é o de se submeter a uma operação e o empenho na reabilitação auditiva, porque os financeiros são assumidos pelo SNS, salienta Leonel Luís. A um pedido do PÚBLICO sobre o número de utentes que colocaram implantes cocleares nos últimos nove anos no SNS, a DE-SNS adianta que foram 1424 entre 1 Janeiro de 2015 e 28 de Junho deste ano (dados provisórios). Os utentes mais novos não tinham ainda um ano, o mais velho tinha 90.

Esta intervenção, ainda que com diferente regularidade, realizou-se nas Unidades Locais de Saúde (ULS) Santa Maria, Lisboa Ocidental, São José, São João, Santo António, Almada/Seixal, Amadora-Sintra, Braga, Coimbra, Entre Douro e Vouga, Algarve, Alto Ave, Nordeste, Região de Leiria, Serviço de Saúde da Madeira e Hospital do Espírito Santo nos Açores.

No ano passado, contabilizaram-se 259 utentes operados, dos quais 22 no Hospital de Santa Maria. Os dados ainda não estão fechados, mas, entre Janeiro e 28 de Junho deste ano, já foram operados 75 utentes, dos quais 14 no Santa Maria.

O acesso aos implantes cocleares tem sido evolutivo por todo o mundo. “Começou por estar indicado em surdezes totais e em crianças e, depois, progressivamente, foi passando a ser utilizado também em adultos e em surdezes unilaterais”, explica o cirurgião. “Começámos a perceber o valor acrescentado que traziam aos doentes”, acrescenta.

Os dados da DE-SNS revelam que entre 2015 e o final de Junho deste ano (dados provisórios) foram operados 306 utentes até aos dez anos. No outro extremo da idade, entre os 80 e os 90 anos contabilizam-se 25 utentes alvo de intervenção no mesmo período de tempo. Mas o número cresce para 184 se o intervalo da idade se alargar para os 70 a 90 anos.

Parte interna e externa do implante

Parte interna e externa do implante

Parte interna e externa do implante

Em 2021, as perdas auditivas relacionadas com a idade e outras causas resultaram em 44,5 milhões de anos vividos com incapacidade — foram a quarta causa para doenças não-transmissíveis —, revelam os dados mais recentes do Global Burden Disease (GBD), um estudo internacional que analisa dados fornecidos pelas autoridades de saúde de 204 países (incluindo Portugal). A causa dominante é a perda gradual da audição com a idade.

Um artigo publicado no final de 2023, no portal de artigos científicos ScienceDirect, usando dados do GBD, contabiliza mais de 140 milhões de casos de perda auditiva em todo o mundo em 2019, com 40% dos maiores de 65 anos a registarem vários graus de surdez relacionada com a idade.

A cirurgia

Com a cirurgia, os doentes ganham muito mais do que autonomia auditiva. “Ouvindo melhor, a pessoa consegue dialogar, participar mais activamente na vida social e na vida familiar. Por outro lado, tem o desafio cognitivo ao qual o seu cérebro responde. Fica mais activo e, portanto, mais jovem”, congratula-se o médico.

Violeta, que sempre fez questão de se manter activa, está pronta. É terça-feira, 31 de Outubro de 2023, a caminho das 15h. “Sinto-me muito bem, muito calma”, diz, de sorriso rasgado, deitada na cama do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Santa Maria enquanto espera que seja levada para o bloco operatório, no quarto andar. Na mesa de apoio, uma revista e o telemóvel. “Recebi muitas mensagens de apoio”, conta. Dos amigos e das filhas, com quem tem estado a trocar mensagens ininterruptamente.

Leonel Luís diz que a cirurgia “não tem grandes dores envolvidas”, embora seja preciso fazer uma incisão na pele por detrás da orelha direita e “brocar algum osso” para “acomodar o implante” e fazer passar o fio eléctrico que vai ficar dentro da cóclea.

No bloco, dominam os tons azuis e verdes, das fardas e das batas operatórias. Uma equipa de seis pessoas irá colocar Violeta na mesa operatória. Os exames estão disponíveis e num dos ecrãs visualiza-se mais uma vez o resultado da TAC (tomografia axial computorizada).

Violeta esteve internada no serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Santa Maria

Violeta esteve internada no serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Santa Maria

Violeta já está anestesiada. Coloca-se o pano para delimitar o campo cirúrgico. O cabelo na zona da incisão é rapado. Apagam-se as luzes e acendem-se os focos operatórios. O bip dos sinais vitais, constantemente monitorizados, enche a sala. O bisturi corta a pele e o cirurgião abre espaço para iniciar um trabalho minucioso, que levará mais de duas horas e meia a estar finalizado.

Sempre com os olhos no microscópio cirúrgico, Leonel Luís tem numa mão um aspirador e na outra a broca com que vai desgastar o osso para acomodar o aparelho e abrir a janela que dará acesso ao ouvido interno. De olhos fechados, o som da broca faz lembrar uma ida ao dentista. “Tenho de ir com atenção porque há estruturas nobres aqui. Para cima está o cérebro, em baixo temos o nervo facial e por trás temos uma veia grande.”

Este é um trabalho meticuloso, que leva tempo. Mas corre tudo como previsto. “Agora, sim, vamos abrir a janela e entrar no ouvido interno.” O que parece enorme no ecrã, ampliado pelo microscópio, é afinal uma “broca muito fina”, com “um milímetro”.

Agora é o momento de começar a tentar inserir o eléctrodo. “Sinal, temos?”, pergunta Leonel Luís, à medida que procura o melhor posicionamento. Na sala de operações está também a audiologista da marca do implante, Ana Moreira. No ecrã maior coloca a imagem que vê no computador e que mostra ao cirurgião a reacção dos eléctrodos.

À medida que a intervenção se aproxima do fim, fazem-se mais medições para se perceber se o implante está a funcionar e que respostas indica. “As impedâncias [resistência que um circuito eléctrico apresenta à passagem de uma corrente alterna] estão todas boas. Agora vamos estimular já o nervo e ver que respostas temos”, diz o cirurgião, ao mesmo tempo que olha para o ecrã.

As notícias são boas. “Estamos a ter resposta em todos os eléctrodos. O nervo está saudável e o eléctrodo está bem colocado. Vamos ter uma cirurgia com bom resultado.”

Feitos os testes, e com a incisão suturada, a cirurgia está concluída. Violeta fica internada esta noite, para se assegurar um recobro tranquilo. Sentadas junto à entrada do serviço, no quarto piso, Alda e Cláudia seguram os nervos. Sabem por Leonel Luís que correu tudo bem. Já podem respirar de alívio.

O dia em que Violeta voltou a ouvir

Violeta volta ao hospital uma semana depois para retirar os pontos. E o que para uns pode parecer um estalar de dedos pareceu-lhe uma eternidade que teimava em não passar. Exactamente 28 dias depois da operação, ela e Alda estão de volta ao Hospital de Santa Maria para colocar a parte externa e ligar o implante coclear.

“Não estou a ouvir nada”, diz Violeta à audiologista Ana Moreira. “Hoje vamos colocar o aparelho”, responde-lhe esta. Violeta diz que entende. Alda escreve no telemóvel as explicações da técnica para que a mãe perceba. O equipamento tem de ser carregado à noite para ser usado durante o dia e todos os dias terá de ir ao desumidificador. O kit leva duas baterias, que devem ser usadas de forma alternada, e há ainda a explicação de como os dois ímanes — o da componente externa e o da interna — se acoplam.

O nervoso miudinho impera. “Gostava de filmar quando ela ouvisse o primeiro som”, diz Alda. Cláudia já regressou aos Açores e este é um momento que merece ser gravado para se partilhar.

“Agora pode sentir alguma coisa. Ainda não é som. Estamos a ver a resposta do nervo auditivo e se há estímulo exagerado do nervo facial. Se for preciso, desactivamos esse eléctrodo”, explica Ana. Violeta faz um sinal com a mão.

Numa pequena sala insonorizada do terceiro piso, com Ana Moreira sentada de um lado da mesa e Alda e Violeta do outro, os 16 eléctrodos vão começar finalmente a ser ligados. “Vou colocar apitos e quero que me diga se é baixo, médio ou forte”, para se definir a intensidade com que cada eléctrodo vai ficar, explica Ana Moreira. As indicações têm de ser escritas para Violeta perceber.

O implante foi ligado um mês após a cirurgia

O implante foi ligado um mês após a cirurgia

O implante foi ligado um mês após a cirurgia

Momento de emoção ao ouvir os primeiros sons

Momento de emoção ao ouvir os primeiros sons

Alda acompanha com ansiedade o momento em que a mãe vai dando indicações. “Médio. Forte. Esse não, é irritante. Fraco”, vai dizendo. No final da medição dos 16 eléctrodos, Ana baixa a intensidade em bloco para não ser demasiado forte no momento de ligar o implante. Alda já está de pé. “Vais ouvir agora”, diz para a mãe em voz sumida e com sinais. O grande momento chegou.

“Já percebi a sua voz!”, anuncia Violeta, dirigindo-se a Ana. É difícil descrever em palavras a emoção que se vive. A sala enche-se de sorrisos, uma ou outra lágrima de alegria e beijos. “Ai que bom, mãe! Nem acredito…”, diz Alda.

“Foi muito bom", resume Violeta, com a tranquilidade que a caracteriza e dando conta de que também já ouve a sua voz. Há uns seis meses que não ouvia um som. Mas agora a voz que ouve é “uma voz diferente”. Vai para casa com as instruções completas do que tem de fazer e com a indicação de todas as semanas aumentar um pouco o volume no próprio aparelho.

Mãe e filha não deixam o hospital sem antes irem à primeira consulta de terapia da fala e já com a segunda consulta com a audiologista marcada para fazer um ajuste do som, a 21 de Dezembro de 2023.

A terapia da fala

É quase véspera de Natal. Violeta vem com as duas filhas. Entra no corredor do serviço com o ar mais tranquilo do mundo. Aquela que tem sido a sua imagem de marca. “A interacção é muito diferente”, aponta Cláudia. “Já recorremos menos à escrita”, complementa Alda.

Na pequena sala insonorizada, Ana Moreira já tem tudo a postos para a consulta. Violeta conta que já ouve “algumas palavras” e a “máquina de lavar”. Já consegue comunicar com algumas pessoas, mas depende do tom de voz. “Há sons que oiço muito alto”, relata. “Que tipo de sons?”, questiona a audiologista. Violeta dá o exemplo do bater de uma colher.

Ana faz alguns ajustes antes de aumentar o volume do implante e quer saber se tem corrido tudo bem. Violeta diz que sim. “Quer dizer, ainda não consigo ouvir quando estou em reunião.”

Mas é preciso dar um passo de cada vez. A última fase será ouvir em grupo. “Em primeiro lugar, passamos por detectar os sons, a sua presença e ausência, e depois passamos a discriminá-los. No início começa-se com palavras que tenham um número diferente de sílabas, que é mais fácil quando falar”, explica a terapeuta da fala Gabriela Torrejano, na sala onde Violeta vai fazer mais uma sessão.

Duas secretárias lado a lado acompanham o formato de corredor da sala. A terapeuta senta-se de frente para Violeta. “Vamos retomar aquele exercício das cores”, diz-lhe. Pega num molho de lápis. Vai dizer uma cor que Violeta terá de identificar. “Verde”, diz Gabriela, com a boca oculta por uma máscara. “Verde”, repete Violeta, enquanto pega no lápis da mesma cor.

Escala que mede a qualidade da audição

Escala que mede a qualidade da audição

Escala que mede a qualidade da audição

“Isto está muito melhor do que na semana anterior. Tenho a certeza de que tem feito o trabalho de casa. Mas hoje eu vou complicar”, anuncia a terapeuta. No próximo exercício, Violeta tem de identificar duas cores. “Vesti uma camisola preta e umas calças amarelas”, diz Gabriela de forma pausada. Violeta repete: “… uma camisola preta e umas calças amarelas.” Ainda não consegue perceber todas as cores à primeira.

“Um paciente que coloca um implante coclear tem de reaprender a ouvir, porque os sons nada têm que ver com a audição anterior. São sons mais electrónicos, e os pacientes têm de aprender a encontrar uma relação com aquilo que ouvem”, contextualiza Gabriela Torrejano.

— “Vamos agora a nomes de pessoas. Percebeu?”, pergunta.

— “Nomes de pessoas”, responde Violeta.

— “Ela está mesmo muito bem”, reforça a terapeuta dirigindo-se a Alda e Cláudia, que explicam que Violeta “aumentou agora o som” do implante.

Gabriela vai dizendo nomes: Patrícia, Francisco, Cristina… que Violeta confunde com Regina. “São parecidos”, diz a terapeuta para a tranquilizar. A lista é engrossada com nomes da família: Cláudia, Alda, Andreia, Carla, João — o nome do neto.

Parte externa do implante coclear

Parte externa do implante coclear

Parte externa do implante coclear

O som dos aviões rasga, a espaços, a sessão, que vai continuar com a identificação de provérbios. “O processo de aprendizagem não é só aqui dentro da sala.” Violeta levará consigo trabalhos de casa para fazer. As consultas de terapia da fala são marcadas semanalmente, por norma durante um ano. “Mas poderá ser menos tempo. Tem que ver com a capacidade de atenção, de percepção, que é diferente de pessoa para pessoa”, explica a terapeuta. A idade, a personalidade, se a pessoa vive sozinha ou se está mais activa, se o outro ouvido ouve ou não, tudo isso faz diferença neste percurso.

Quase cinco meses depois da cirurgia, Violeta regista no audiograma uma audição de 30db nos sons agudos, o que é “muito importante para a compreensão auditiva”, explica Leonel Luís, que recorda que, antes da cirurgia, ela “não conseguia perceber rigorosamente nada”. O exame mostra que “tem uma audição melhor que a de uma pessoa de 80 anos”.

Depois do silêncio

“Tem sido um processo muito longo, mas que vale a pena”, afirma Violeta, sete meses depois da cirurgia. “Embora procurasse continuar a sair e a fazer a minha vida normal, era muito difícil, por exemplo, ir às compras, ao talho, frequentar os grupos [de estudo], porque, como aquela minha amiga disse, elas sentiam a minha tristeza. Porque eu ficava completamente isolada”, recorda, com a voz trémula e sentada no mesmo sofá rosa pastel em casa.

“Agora estou a voltar à minha vida normal. Há poucos dias fui a uma lojinha aqui em baixo. E a rapariga disse-me: ‘Ah, falei baixinho e a senhora ouviu’”, ri-se. “Sinto-me muito mais autónoma. Já vou ouvindo os carros a passarem, se abro a janela já oiço o movimento na rua”, diz, lembrando como antes tinham de escrever para que ela entendesse. “Embora as amigas escrevessem, nunca era a totalidade daquilo que era dito. Era sempre muito resumido, não é? Hoje estou a participar.”

Violeta colocou, entretanto, uma prótese auditiva no ouvido esquerdo. Funciona associada ao implante coclear, comunicando ambos entre si. Chama-se a isto um implante coclear bimodal, permitindo localizar melhor os sons e perceber o que ouve em ambientes ruidosos.

O céu meio nublado e o vento fresco que corre em Sines não fazem adivinhar que falta um mês para começar o Verão. “Todos os amigos faziam o que podiam. Foi uma grande solidão, e foi mau para nós também, porque víamos que ela estava triste”, diz a amiga Glória, sentada na esplanada onde partilham um café antes de Violeta ir para a aula de História na universidade sénior — a Associação Prosas.

Amiga de longa data, lembra que Violeta “ia todos os dias ao correio ver se tinha a carta do hospital”. Explica que a escrita era a forma de a manter ao corrente dos “assuntos que precisava de saber” e “assim dava a sua opinião”. De cabelo curto branco, Glória, que usa um amplificador auditivo, acompanhou de perto toda a evolução. Recorda a troca de mensagens quando Violeta lhe disse que estava decidida a fazer a operação e lhe perguntou o que achava. “Oh, Violeta, se fosse eu, era já”, disse-lhe. O momento arranca algumas gargalhadas.

“Já não tenho escrito”, conta Monserrate, amiga de Violeta há mais de 20 anos. Antes trazia sempre uma “folha em branco”, recordando também a vez em que telefonou a Violeta e ela lhe disse “Não me ligue, só me escreva”. Conta que a amiga “nunca pensou em desistir” de voltar a ouvir e que também elas não a deixaram desistir do grupo de estudo online para que não se isolasse. “Só não desistiu porque decidimos que as leituras [de textos] eram só feitas por ela para poder participar mais activamente. Para depois todos comentarmos. Ela via as legendas e dava a sua opinião.”

Violeta em casa, em Sines

Violeta em casa, em Sines

Violeta em casa, em Sines

“Fiquei muito feliz quando o meu neto chegou a casa e disse à mãe: ‘Consegui conversar com a avó!’”, recorda Violeta durante a conversa, assumindo mais tarde, em casa, nunca ter pensado que o neto “sentisse tanta tristeza” por não conseguir falar com ela. Ainda não consegue ouvir bem em grupo e há pessoas que, talvez pelo timbre da voz, não consegue perceber. Mas “já estou a ouvir muito melhor”, assegura Violeta, que se vai emocionando com as palavras das amigas.

“Não tem comparação!”, confirmam em uníssono as três amigas, que fazem parte de um grupo maior, que às segundas-feiras junta mais de 20 pessoas.

“Todos nós ficámos orgulhosos pela coragem da Violeta. Com a idade dela, submeter-se a uma cirurgia…”, diz Ana Paula, a mais nova em idade e que também faz parte do mesmo grupo de estudos. No café, quando se encontram, falam de muitas coisas. “Por exemplo, das leituras que a Violeta faz. Ela tem muito conhecimento e eu só tenho a aprender com ela”, expressa Ana Paula. “Nunca falta tema de conversa”, confirma a amiga.

Mas agora está na hora de ir para a Associação Prosas, a uma dúzia de passos de distância do café. Sandra Patrício, do Arquivo Municipal de Sines, retoma a matéria sobre o Antigo Egipto, que tinha iniciado nas aulas anteriores. Numa das mesas da frente, Violeta vai abanando a cabeça à medida que ouve as explicações e vê os slides. Um e outro aluno fazem uma pergunta.

“Não imaginam quantas aulas estive aqui sem ouvir nada. Vinha só para estar com pessoas. Hoje, graças a Deus, já oiço”, diz aos companheiros no final da aula. Talvez muitos nunca se tenham apercebido do silêncio que rodeava Violeta.

Violeta remotou a vida normal após a cirurgia

Violeta retomou a vida normal após a cirurgia

Violeta retomou a vida normal após a cirurgia

Agora já não precisa de perguntas escritas para saber do que falamos. “O que seria da minha vida se não tivesse feito a cirurgia?”, Violeta lança a pergunta. A voz treme-lhe um pouco. “Seria uma vida completamente nula, sem motivação, em que estaria dependente dos outros. Foi uma provação muito difícil que tive de viver.”

Na mesa de apoio de tampo de vidro e madeira a imitar bambu, repousa um livro e uma “sopa de letras”, que tanto gosta de fazer. Já não precisa de saber das notícias só pelo rodapé do ecrã, nem das histórias dos filmes apenas pelas legendas. “Já estou a ouvir a música das séries.” Por enquanto, a aparelhagem e a colecção de discos, devidamente encadernada, vão manter-se fechadas. Porque esta música, “ainda não estou a conseguir ouvir”.

Mas o mais difícil foi “não conseguir comunicar com as filhas”. “Fazia as viagens para Lisboa em completo silêncio. Agora já não”, diz, revelando que consegue distinguir quando é uma ou a outra a falar. “Elas até brincam comigo, dizem que já têm que ter cuidado”, ri.