Fernando
Pimenta
Canoagem

Marco Vaza (texto), Joana Gonçalves (vídeo) e José Carvalheiro (motion design)
23 de Julho 2024

O canoísta de Ponte de Lima vai competir nos seus quartos Jogos Olímpicos para completar a sua colecção de medalhas. Já tem uma de prata, outra de bronze. Falta o ouro.

Descoordenado. Com pouco equilíbrio. Hiperactivo. Ficava quase sempre em último. É assim que Hélio Lucas descreve Fernando Pimenta como o conheceu há 21 anos. É difícil imaginar agora que o mais medalhado atleta português de todos os tempos era assim, virava sempre o caiaque nas primeiras vezes que nele entrou e ia sempre à água.

Mas Hélio Lucas, ainda hoje o seu treinador, viu qualidades intangíveis naquele miúdo irrequieto. “Ele dizia-me, ‘Então eu virava, quase sempre ficava em último e chamaram-me para treinar com a equipa no período de Inverno? Porquê?’. Há aqueles que viram e dizem, ‘Eu não quero ir mais’. E há aqueles que viram e dizem, ‘Quero ir outra vez’. O Fernando era assim.”

Em 2024, lá vai o Fernando outra vez aos Jogos Olímpicos. Desta vez, em Paris, a quarta voltinha olímpica do homem de Ponte de Lima para uma possível terceira medalha, depois da prata em Londres 2012 (em K2 1000, com Emanuel Silva), do bronze em Tóquio 2021 (em K1 1000) e de uma grande desilusão pelo meio no Rio de Janeiro 2016 (foram as algas, mas já lá iremos). Mais uma para uma colecção que cresce todas as semanas há quase 20 anos.

O número está em 145, mas as medalhas não estão todas juntas. “Estão mais ou menos espalhadas”, conta Fernando Pimenta ao PÚBLICO. “Umas pela minha casa, outras na casa dos meus pais. Estão dentro de uma caixa. Não tenho a necessidade de estar sempre a olhar para elas. Tenho mais para conquistar. Ainda não tenho a necessidade de estar a olhar para o meu passado.”

Há aqueles que viram e não querem ir mais. E há aqueles que viram e querem continuar a ir. O Fernando era assim

Hélio Lucas

“Desde a pontinha do pé”

Já o sol da manhã vai alto quando Fernando Pimenta leva o seu caiaque em direcção à albufeira da barragem do Maranhão para mais uma sessão de treino na água. Não é o único atleta que está no interior alentejano a preparar-se para os Jogos de Paris. Por lá também andam João Ribeiro, que estará no K2 500 com Messias Baptista (são campeões do mundo na distância), mais um espanhol e um argentino do K1 e a equipa dinamarquesa de remo. Dali a uma semana, dizem-nos, vai estar lá a selecção britânica de remo – só atletas serão 42, mais o dobro em staff adicional.

Ainda falta mais de um mês para Pimenta entrar em acção na pista do Sena – eliminatórias e quartos-de-final a 7 de Agosto, meias-finais e final a 10. O que se trabalha naquele dia, explica o treinador, é a resistência. “Estamos a fazer um trabalho de ritmo intermédio, no próximo estágio teremos um pouco mais de intensidade”, diz Hélio Lucas. Foi uma hora na água para fazer seis séries de 1000 metros em cerca de quatro minutos cada uma, bastante abaixo do que será o seu ritmo em competição.

“Estamos a trabalhar com uma frequência de pagaiada intermédia. Em média, numa prova, eu faço 108, 110 [por minuto], hoje estou nas 85, 90, um pouco abaixo. Em competição, a frequência máxima ronda as 146, 148 pagaiadas na parte inicial, na parte intermédia, chegamos algumas vezes a baixar das 100”, conta o atleta português, que, em competição, chega a atingir uma velocidade máxima a rondar os 23km/h.

Num treino de canoagem, não se trabalha apenas a resistência ou a velocidade, porque a canoagem não é só entrar na canoa e começar a pagaiar. Tudo conta. “Desde a pontinha do pé, joelho, anca, tronco, ombros, tudo ajuda para além dos braços, para que o cliente, a embarcação, o atleta, se mova sem provocar balanços que lhe possam travar a embarcação”, refere Hélio Lucas.

A pergunta seguinte é: por que é que a pontinha do pé é importante? “Ele tem uma parte onde apoia os pés, é aí onde leva o leme. Normalmente o leme vai no meio, se o barco fugir um bocadinho ele tem de controlar com os pés. Vai sentado, com as pernas ligeiramente estendidas. Quando faz a remada de um dos lados, essa perna estende e empurra nesse finca-pé. A bacia roda, todo o tronco roda, para ter mais amplitude na remada e transmitir mais força na navegação do barco. Este é um gesto que ele faz 400 e tal vezes durante a prova, tem de haver uma preocupação para que tudo o que não seja para fazer andar o barco, não pode ir ali.”

Fernando Pimenta já esteve milhares de vezes dentro de um caiaque, mas, a cada vez, tem de rever mentalmente tudo o que precisa de fazer. “Tenho de ter atenção a tudo. Tentar estar o mais recto possível, não estar inclinado nem demasiado para a frente, nem demasiado para trás. A posição das pernas, a posição da anca, a rotação do tronco, o equilíbrio dos ombros, que têm de estar sincronizados e ao mesmo nível, a posição da cabeça, das mãos, quer na fase da saída, quer na fase do ataque.”

E o que é que é mais difícil na canoagem? A resposta é igualmente abrangente: tudo. “A componente física tem de estar bem trabalhada. Temos de saber gerir o esforço, as emoções, a coordenação, o equilíbrio, principalmente na parte final. Quando já estamos bastante cansados, começamos a perder algum equilíbrio e, se descuramos a parte técnica, acabamos por perder ainda mais velocidade do que seria desejável.”

Quem me conhece bem sabe que nunca estou satisfeito com o que já conquistei

Fernando Pimenta

“A quarta volta olímpica”

Foi há 23 anos que Fernando Pimenta entrou num caiaque pela primeira vez. No Verão de 2001, em caiaques velhinhos, para iniciação, no Clube Náutico de Ponte de Lima – e, dirá no final da conversa, gostava de recuperar alguns caiaques que, entretanto, foi vendendo. Em 2024, Fernando Pimenta, o tal rapaz descoordenado e hiperactivo, é um atleta de nível mundial, com uma carreira em que ganha uma média de dez medalhas internacionais por ano. As medalhas não são todas iguais e há uma que lhe falta, o ouro olímpico. Repetimos, foram 145 medalhas, a primeira, de ouro, no Festival Olímpico da Juventude em 2005, no K4 500. A mais recente, a de campeão da Europa em K1 1000, em 2024.

A prata no K2 1000
foi a única medalha portuguesa
nos Jogos Olímpicos
de Londres 2012

E a primeira de sempre da canoagem portuguesa

Emanuel Silva e Fernando Pimenta
ficaram apenas a 0,053s
dos vencedores húngaros

Fernando Pimenta tinha apenas 23 anos quando cumpriu a sua primeira volta olímpica. “Nessa altura, estava menos consciente do que estava para vir. Já tinha algumas luzes, mas cheguei a Londres e pensei, ‘Isto é à séria, o pessoal está na máxima força’. É aquele momento especial para qualquer atleta, do candidato a ser campeão até ao que vai lá para competir. Só depois de ganharmos a medalha [prata no K2 1000, com Emanuel Silva] é que percebemos o impacto que tinha”, recorda. A medalha da canoagem em Londres 2012 seria a primeira da modalidade e a única de Portugal nesses Jogos – e os portugueses ficaram bem perto do ouro, a apenas 0,053s dos vencedores húngaros.

[Os Jogos Olímpicos] são aquele momento especial na carreira de qualquer atleta

Fernando Pimenta

Aqui, abrimos um parêntesis para falar com Fernando Pimenta sobre Emanuel Silva, outro dos super-atletas da canoagem portuguesa, que terminou a carreira após não se ter apurado para aqueles que seriam os sextos Jogos da sua carreira (começou em Atenas 2004). “Nunca fomos um casal perfeito, não fomos os melhores amigos porque somos demasiado competitivos. Ele é uma fera de competição e foi um prazer estar com ele na mesma embarcação, fizemos umas páginas bonitas na história do desporto português. Noto a falta dele nas grandes competições, foram muitos anos com bons e maus momentos. Espero que seja muito feliz.”

Pimenta ganhou o reconhecimento nacional e sentiu legitimidade para apostar no K1, entrando em conflito com a federação por causa desse desejo – entendia o organismo que não fazia sentido separar o barco medalhado em Londres. Pimenta assumiu o K1 como prioridade, não se negando a estar, sempre que o calendário o permitisse, noutra embarcação, o K4. Mas foi na prova a solo que levantou verdadeiramente voo e os Jogos do Rio de Janeiro, em 2016, iriam validar essa aposta.

A 16 de Agosto, na lagoa Rodrigo de Freitas, por volta das 10h, tudo parecia correr bem. Pimenta na frente aos 250m, Pimenta na frente aos 500m, mas já em quarto aos 750m e em quinto na meta, a quase quatro segundos do vencedor. “No Rio, o Fernando tinha tudo para ser campeão olímpico. Não digo que tenha faltado sorte, faltou que não tivéssemos azar”, relembra Hélio Lucas. O azar foram as algas presas ao leme e as folhas das árvores que se colaram ao barco. Nos bastidores, chegou a falar-se em repetir a final, mas isso nunca aconteceu.

Avancemos mais quatro anos, para 2020. A pandemia da covid-19 envolveu o mundo e deixou tudo em suspenso, incluindo os Jogos Olímpicos, que passaram para o ano seguinte. Envolvidos numa bolha sanitária, os Jogos japoneses acabaram por servir como uma espécie de redenção para o canoísta de Ponte de Lima: medalha de bronze no K1, a sua segunda medalha olímpica, mas com um sentimento inicial de frustração, que desapareceu depois de a ter ao pescoço. “Fiquei com um amargozinho de boca porque podia ter sido uma medalha de cor diferente. Eu gosto sempre de mais e melhor e nunca estou satisfeito comigo mesmo. Acabei por ser o elo mais fraco do pódio.”

É uma modalidade muito solitária. É muita pressão.

Hélio Lucas

A medalha não era a única coisa que Fernando Pimenta tinha no pódio em Tóquio. Levou uma chucha cor-de-rosa à boca para mostrar ao mundo que o homem que estava ali também era pai de uma menina de poucos meses. E essa nova condição, a de pai, reforçada com o nascimento de mais um filho (em Março de 2023), deu-lhe uma nova perspectiva sobre o que faz. “O que mudou? Primeiro que tudo, mais responsabilidade porque isto custa. Custa-me a mim, aos meus filhos, à minha mulher. Quero que eles se sintam orgulhosos do pai, para dar sentido a este sacrifício.”

E sente mais tranquilidade quando está em prova? “Depende. Não digo tranquilidade, mas, talvez, felicidade. Antes do nascimento da minha filha, em 2020, andava um bocado irrequieto, as coisas não me corriam tão bem. Quando ela nasceu, as coisas começaram a correr bem, andava mais solto, mais leve e mais feliz. Agora, com dois, o sorriso é a duplicar.”

Uma medalha em Paris deixará Pimenta numa situação única entre os portugueses, como o primeiro a chegar às três medalhas olímpicas. “As expectativas são boas, estamos a trabalhar bem. Quero chegar lá na minha melhor forma física e emocional e desfrutar do processo e conseguir trazer de lá um bom resultado. Que resultado? Depende um bocadinho. Não é só o Fernando Pimenta, há adversários e o K1 vai ser uma das provas mais competitivas.”

Não quero saber o que é que os meus adversários estão a fazer. Até lá, tenho de me focar nas minhas coisas

Fernando Pimenta

Poucos dias depois da final do K1 em Paris, Fernando Ismael Fernandes Pimenta, nascido a 13 de Agosto de 1989 em Ponte de Lima, vai chegar aos 35 anos, talvez já na fase final de uma carreira como atleta de alta competição (que vai deixar mazelas), mas ainda com uma vida inteira pela frente. E depois do adeus?

“Cada vez penso mais no meu futuro. Para já, ainda não me preocupa muito. Agora estou a pensar em Paris e Los Angeles vem a seguir. Um objectivo de cada vez, só assim é que me vou sentindo motivado. Quando eu deixar a canoagem e não tiver nada mais certo, como eu costumo dizer, não tenho qualquer problema em meter as mãos à massa, ir tomar conta de um campo e fazer agricultura, ir para a construção civil ou para uma pedreira. Claro que gostaria de ficar ligado ao desporto, não como treinador – iria ser muito idêntico, com estágios e competições e iria continuar a estar longe da família.”

Créditos

Reportagem
Joana Gonçalves
Marco Vaza

Motion design
José Carvalheiro

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Direcção de arte
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Agradecimento
Hugo Gomes