Erosão costeira: “Nenhuma solução é perfeita”, mas é preciso ouvir “quem é afectado”
Ovar é um dos municípios do litoral em maior risco devido ao impacto da erosão costeira. Um projecto da Universidade de Aveiro mostrou que as soluções podem — e devem — passar por ouvir a população.
Chegamos numa altura de pouco vento ao final da manhã. As ondas batem sem grande estrondo na praia de Cortegaça, município de Ovar. Depois do muro de rochas que protege a frente urbana, já quase não há areal. À esquerda estende-se um esporão, estrutura de rochas perpendicular à linha da costa, onde se encontram duas pessoas a pescar. A sul do esporão, a linha de construções recua, fazendo um arco como que a abraçar a praia. As ondas continuam o seu movimento, molhando a areia em quase toda a sua extensão, deixando poucos metros secos nos limites do parque de campismo.
Portugal tem uma das costas mais “energéticas” do mundo e em Ovar, um dos concelhos do país com maior risco de erosão costeira, é particularmente visível a acção do mar a “esculpir” o litoral. Com 15 quilómetros de costa distribuídos por cinco localidades — Esmoriz, Cortegaça, Maceda, Furadouro e Torrão do Lameiro — o litoral do concelho de Ovar foi identificado como sendo uma das zonas de Portugal com maior vulnerabilidade e risco de erosão costeira.
“Chegou a ser uma das mais problemáticas da Europa, com quase dez metros de recuo de costa por ano”, descreve Carlos Coelho, docente da Universidade de Aveiro e coordenador do projecto INCCA — Adaptação Integrada às Alterações Climáticas para Comunidades Resilientes, numa parceria entre a Universidade de Aveiro e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Nenhuma solução é perfeita, todas têm vantagens e desvantagens. Tentámos discutir isso, sentar à mesa todas as pessoas
O problema da erosão costeira, explica Carlos Coelho, resulta, de modo geral, de um “défice sedimentar”, ou seja, da falta de areia que existe no sistema. O transporte de areias faz-se de norte para sul, com a incidência das ondas de noroeste. “Se estivéssemos aqui parados a olhar para o mar durante um ano, sentado à nossa frente, víamos passar cerca de um milhão de metros cúbicos de areia”, diz o investigador. Essa areia, regra geral, tem origem nos rios, mas intervenções como a construção de barragens foram criando processos artificiais num sistema onde antes se encontrava mais equilíbrio.
As alterações climáticas acrescentam uma camada de complexidade, com impacto numa dinâmica marítima já antes impetuosa. A subida do nível médio das águas do mar, uma preocupação a nível global, ainda é, aqui, o menor dos problemas.
Não há soluções perfeitas
Carlos Coelho nasceu na freguesia de Ovar, onde viveu até aos seis anos, até à mudança da família para Cortegaça. Viu evoluir o litoral ao longo destes anos. “Só comecei a trabalhar nesta área por volta do ano 2000, mas lembro-me de que, quando era miúdo, aqui nesta zona [aponta para a parte imediatamente à direita do esporão, onde mal se vê a areia] ainda tínhamos um areal extenso. Lembro-me de jogar futebol aqui nesta praia.” Também na praia do Furadouro, alguns quilómetros a sul, recorda-se de jogar voleibol com os amigos em locais onde “agora já não há largura nem dimensão de areal para isso”.
Com tamanho recuo da praia, seguiram-se várias intervenções. “Nos anos 1970, a reacção natural foi proteger os aglomerados urbanos com obras aderentes, que fixam a posição na linha de costa, e estes esporões, para tentar acumular areia do lado norte e, com isso, proteger as zonas urbanas”, explica Carlos Coelho. Nas praias de Esmoriz, Cortegaça, Maceda e Furadouro, foram então surgindo estas obras para proteger as frentes urbanas dos “eventos energéticos” de agitação do mar. O concelho onde começa a chamada “Costa de Prata”, a região costeira que se estende até Torres Vedras, mostra hoje mais uma “costa de pedra”.
O mar continua a não dar tréguas e as estruturas de rochas são também “muito atacadas e acabam por ter de ser sujeitas a várias intervenções ao longo do tempo”, descreve Carlos Coelho. E a tendência, explica, é que essas estruturas se tornem cada vez mais fundas e também mais altas, com mais rochas e com blocos de rocha mais pesados — e, portanto, cada vez mais caras.
Estas intervenções não trazem custos apenas financeiros, mas também sociais e ambientais. Foi nesse cruzamento que surgiu o projecto INCCA. “Nenhuma solução é perfeita, todas têm vantagens e desvantagens. Tentámos discutir isso, sentar à mesa todas as pessoas.”
Sair dos gabinetes
Nos primeiros meses do projecto Adaptação Integrada às Alterações Climáticas para Comunidades Resilientes, que decorreu durante três anos até Março de 2023, foram elencadas 53 medidas de mitigação e adaptação à erosão costeira e às alterações climáticas, desde medidas relacionadas com obras de protecção costeira, alimentação artificial de areias, relocalização de pessoas e bens ou o reforço dos cordões dunares, mas também o recurso a instrumentos fiscais ou à velha e boa educação e sensibilização das populações.
O passo seguinte foi sentar as pessoas à mesa para compreender as implicações destas medidas. O primeiro workshop participativo teve lugar em Novembro de 2020, seguindo-se outros que foram reunindo um grupo de cerca de 20 pessoas, desde técnicos das câmaras e juntas de freguesia, a Agência Portuguesa do Ambiente, investigadores da área da gestão costeira e — ponto importante — membros da comunidade local, como bombeiros, associações ambientalistas ou a escola de surf.
“A verdade é que construímos um grupo coeso, que nos acompanhou ao longo do projecto e que foi amadurecendo ideias, mudando pontos de vista, aprendendo e ensinando”, conta Márcia Lima, investigadora no Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Aveiro e professora na Universidade Lusófona, que organizou os workshops participativos. “Como engenheiros, temos uma visão muito mais pragmática das coisas e, principalmente no que diz respeito às análises custo-benefício das intervenções de defesa costeira, há uma infinidade de aspectos que devem ser considerados e, muitas vezes, só quem é afectado pelas decisões tem esse conhecimento.”
Em linguagem técnica, fala-se de aspectos sociais e culturais que por vezes ficam de fora dos modelos científicos. E, em linguagem corrente, há exemplos disto? Márcia Lima responde que, numa sessão em que eram discutidos os custos e benefícios de um cenário que implicava a retirada de um esporão, um dos participantes alertou que deveriam “considerar como custo a perda do sustento de várias famílias que sobrevivem da pesca de moluscos que estão nas pedras da estrutura”.
Se queremos ter soluções aceites por todos, estas têm que ser discutidas e compreendidas por todos. Nunca devemos impor uma solução como a mais certa para o local
“É um aspecto que nós, engenheiros, ‘dentro do nosso gabinete’, nunca nos iríamos lembrar de contemplar como desvantagem da solução”, reconhece a investigadora, que também faz parte da unidade de investigação Risco — Riscos e Sustentabilidade na Construção, da Universidade de Aveiro.
Carlos Coelho admite que o diálogo nem sempre é fácil. “No que toca à gestão costeira, geralmente as comunidades têm opiniões muito vincadas e estão completamente convictas de que estão certas e de que a solução deles é que é a melhor e que tudo o resto não faz sentido.” Mas o resultado deste diálogo estruturado, afirma, pode ser surpreendente, com pessoas a mudar radicalmente de ideias depois de “pensar em aspectos que nunca lhes tinha ocorrido, a aprender sobre fenómenos que até então desconheciam”. “Foram abrindo horizontes, foram vendo que a solução do ‘vizinho’, que antes era disparatada, se calhar até poderia fazer sentido...”
Márcia Lima reforça as lições que trouxe para o seu próprio trabalho. “Aprendi que se queremos ter soluções aceites por todos, estas têm que ser discutidas e compreendidas por todos. Nunca devemos impor uma solução como a mais certa para o local, devemos, sim, chamar todos os que serão afectados por essa solução e mostrar as vantagens e desvantagens em relação a outras soluções, ouvir o outro lado, alterar aspectos, se for o caso, e assim chegar a soluções de consenso.”
E esta “proposta consensual” de caminho de adaptação e pontos de viragem para o futuro do litoral de Ovar, concluem os investigadores, conduz “a melhores soluções e, acima de tudo, a uma melhor aceitação das medidas implementadas.”
Olhar para o futuro, lidar com a mudança
Quando se fala em gestão costeira, é necessário lidar com as incertezas associadas à capacidade de antever cenários climáticos e processos naturais. Para Carlos Coelho, um dos pontos interessantes do projecto foi criar “caminhos de adaptação”, ou seja, planear para que haja flexibilidade ao longo do tempo.
Por exemplo, os grupos consideraram aceitável permitir um pouco de erosão em Esmoriz, mas mantendo uma dimensão mínima de praia. “Quando essa dimensão mínima for atingida, aí podemos passar a intervir”, sublinha o investigador. A sul de Cortegaça, por exemplo, se a erosão levar até uma proximidade muito grande da Estrada da Mata, será preciso intervir também aí de forma mais significativa. “Vamos monitorizando e adaptando à medida que vai havendo evolução”, explica.
“É importantíssimo definir qual é o objectivo sobre o que queremos para o litoral”, reforça o investigador. “Podemos ter como objectivo manter o máximo de território possível e, portanto, limitar o recuo de linha de costa. Mas também é diferente pensarmos no curto ou no longo prazo. Se queremos manter o território até 2030, a melhor solução é uma, mas, se queremos manter território até 2100, a solução já pode ser outra. Se o objectivo for reduzir os galgamentos e as inundações costeiras, a melhor medida no curto prazo é uma; se for no longo prazo, é outra...”
Uma ideia forte que emanou das reuniões é a de proteger as zonas urbanas, em particular a do Furadouro, mantendo também algumas zonas de praia (mesmo que, para isso, seja preciso recorrer a alimentações artificiais de areia).
Uma das apostas da Câmara Municipal de Ovar para proteger a frente urbana do Furadouro é a construção de um quebra-mar destacado, uma estrutura paralela à linha da costa, mais afastada, que tenta conter a energia do mar para evitar os galgamentos, muito comuns nesta zona.
Não é uma estrutura que se encontre muito no litoral português, sendo mais usada “em zonas com pouca amplitude de maré”. É, contudo, uma opção cara, devido à complexidade das obras. Foi por isso que, no projecto, se estudou também uma estrutura similar, “ligada ao esporão que existe no Furadouro, que permitiria o acesso para a construção da obra através do próprio esporão”, ou seja, reduzindo os custos. Nesta matéria, sublinha o investigador, não há receitas milagrosas, e a solução perfeita para um local pode ser completamente diferente de outro — como se vê, aliás, ao acompanhar as diferentes soluções do litoral de Ovar.
Estes diferentes “caminhos de adaptação” podem ajudar também no planeamento estratégico, incluindo financeiro, ao prever desafios no longo prazo e facilitar a previsão do retorno financeiro de obras mais robustas (e caras) — mais uma vez, a melhor opção pode ser diferente se estamos a olhar no curto ou no longo prazo. “Devemos considerar tudo isto, discutir se queremos retorno financeiro, se queremos proteger completamente uma frente urbana, se queremos manter praia. Mas falta-nos um pouco definir objectivos. Quando dizemos qual é a melhor solução para o litoral, temos que dizer qual é o objectivo que queremos”, insiste.
Encontrar consensos
Os participantes do projecto INCCA concordaram com os seguintes objectivos:
1. Evitar a perda de território urbano com recurso a alimentação artificial, por oposição às obras de engenharia;
2. Relocalização gradual das comunidades (habitação, comércio e lazer) que estejam actualmente em perigo e cujos cenários evidenciam que assim se manterão nos próximos anos;
3. Manter as obras de defesa costeira existentes e possível construção do quebra-mar destacado na zona do Furadouro;
4. Combinar as obras de engenharia com alimentações artificiais de areia, em zonas chave, nomeadamente as frentes urbanas de Esmoriz, Cortegaça e Furadouro;
5. Renaturalização das áreas deixadas livres pela relocalização das comunidades, tornando-as mais resilientes à erosão costeira (ex: área do Parque de Campismo de Cortegaça).
“Tem que prevalecer o bom senso”
Ouvidas todas as partes, segue-se o maior desafio: levar os resultados do processo participativo a quem toma a decisão. Poder-se-á pensar que está a papinha toda feita, com soluções técnicas estudadas por especialistas e validadas já por membros da comunidade, o que contribui para uma maior aceitação das medidas propostas. Mas será suficiente?
O presidente da Câmara Municipal de Ovar, Salvador Malheiro, reconhece a importância da boa gestão desse tema. “Eu diria mesmo que o fenómeno da erosão costeira é o principal problema do nosso município.” Começa por apontar que o município está muito limitado naquilo que é a sua esfera de competências, já que a erosão costeira é uma competência que não é das autarquias locais, mas sim do governo central. Ainda assim, sublinha, existe uma forte colaboração e uma atitude de “muita proactividade” da autarquia com as instituições que têm essa responsabilidade, seja a Agência Portuguesa do Ambiente, seja o Ministério do Ambiente.
Tem que existir a coragem de, na hora certa, tomar decisões que nunca serão consensuais, é isto a política
Apesar do crescente perigo que se coloca às construções e à própria população, parece existir uma grande resistência à criação de estruturas de pedra que, do ponto de vista da população, descaracterizam o território. “Naturalmente que quem nasceu aqui se recorda das praias extensas sem qualquer tipo de pedra, e era isso que todos nós queríamos. Mas há que deixar a nota de que, caso essas construções que começaram nos anos 1970 não tivessem sido feitas, nós neste momento já teríamos um problema muito maior, podíamos ter regiões do nosso território que neste momento já não existiam.”
“Tem que existir a coragem de, na hora certa, tomar decisões que nunca serão consensuais, é isto a política”, declara o autarca. Em seguida, suaviza o discurso, destacando que é preciso um esforço para ouvir as populações, “mesmo sendo críticas ou trazendo soluções mais utópicas”. “Ninguém pensa que sabe tudo, muito menos numa questão que tem que ver com a natureza. Nunca ninguém ousou desafiar a natureza pensando que a pode controlar.”
“O que tem que estar aqui em cima da mesa são prioridades assumidas”, reforça, ecoando as palavras do investigador Carlos Coelho. E o que a autarquia quer é manter a linha de costa, sendo necessário, “naturalmente”, fazer escolhas que passam pela engenharia, mas “tentando artificializar o mínimo possível”. “Na gestão deste equilíbrio, surgem soluções que não são óptimas, mas que dão resposta àquelas que são as nossas prioridades.”
Hora de concretizar
Engenheiro de formação, Salvador Malheiro elenca duas dimensões da acção política de adaptação e contenção de danos causados pelo mar impetuoso da costa do concelho. Existem, por um lado, situações de emergência em que é preciso uma actuação imediata da câmara para proteger as pessoas e, quando possível, o património, como acontece quando existem galgamentos.
Recorde-se a passagem da tempestade Hércules, no início de 2014, que teve “consequências fortíssimas” em Ovar, em particular na praia do Furadouro, causando estragos em grande parte da marginal. Na altura, a autarquia actuou de imediato, “porque estamos no terreno e temos os meios aqui. Nós temos é que tratar das nossas pessoas.”
Outra dimensão, descreve o autarca social-democrata, é procurar meios para soluções de longo prazo, uma visão mais estrutural para “poder olhar para o futuro com carinho mais de confiança”. Aqui, onde as competências estão acima, a autarquia cumpre o seu papel de “explicar bem aquilo que se está aqui a passar, no sentido de podermos ter uma actuação mais estruturada.” Lamenta, por exemplo, não ter havido o “discernimento” de afectar para a protecção da orla costeira as verbas da Comissão Europeia destinadas a projectos estruturais através do Plano de Recuperação e Resiliência.
Já no que toca aos quebra-mares destacados, Salvador Malheiro garante que tem “esse compromisso por parte do Governo”, com a expectativa de que se possa dar o pontapé de saída no Outono deste ano. Mas o financiamento deste tipo de obras, reforça, deve ser previsto em Orçamento do Estado, e não estar dependente de candidaturas pontuais.
Mas, então, onde encaixa a gestão participada na acção política? Existem planos para seguir as propostas do projecto INCCA? Márcia Lima nota que a Câmara Municipal de Ovar teve um papel muito importante desde o início do projecto, com a participação de vários membros da equipa técnica nos workshops, e por isso acredita que as propostas podem ganhar vida.
“Falamos de recomendações que resultaram de três anos de trabalho, são recomendações que traduzem o conhecimento e o consenso de todos, que serão bem aceites por todos os que estiveram envolvidos”, remata a investigadora.
Salvador Malheiro vê “com bom grado” a constituição de uma comissão de acompanhamento do futuro plano de acção. Mas recorda que, na mesma proporção do grande problema da costa, existe também um grande volume de planos, estratégias e outros trabalhos técnicos ao longo do tempo. “Esta é a hora de concretizar, de fazer remate à baliza. O que nós precisamos agora é da obra.”