Do tronco à barrica
Em Palaçoulo, Miranda do Douro, há uma tanoaria industrial que dá cada vez mais cartas lá fora. A JM Gonçalves compra troncos de carvalho francês na zona de Clermont-Ferrand e Moullins, corta essa madeira e deixa as futuras aduelas a ‘estagiar’ à chuva e ao sol durante, pelo menos, dois anos, até pegar nelas para, então, produzir barricas, 16 a 17 mil por ano, quase tudo para exportação. Descobrimos que uma barrica não nasce num dia. Na verdade, na barrica estão pelo menos 150 anos de espera.
É José Abílio Gonçalves, terceira geração de uma empresa familiar, quem nos guia pela unidade industrial da JM Gonçalves em Palaçoulo, Miranda do Douro, praticamente raia — no regresso, até nos perdermos e demos por nós a cruzar a fronteira para Espanha.
O avô de José Abílio era tanoeiro e o pai, que trabalhara em grandes tanoarias em França, impulsionou o negócio no pós-25 de Abril. Ao contrário do que pudéssemos imaginar, o trabalho pesado — e que alguns de nós já viram em tanoarias mais artesanais, por exemplo, nas casas de vinho do Porto ou em tanoarias de gente nova que resolveu dedicar-se a essa arte antiga — na JM Gonçalves foi quase todo aligeirado por máquinas modernas, equipadas com sensores e que cortam e modelam a madeira ao milímetro.
Sem margem para erros, como nos explicou José Abílio, quando com ele passámos o dia na terra que, para além das barricas, é também conhecida pela cutelaria e, nos últimos anos, pelo Mosteiro de Santa Maria Mãe da Igreja, o primeiro mosteiro trapista em Portugal.
De França, chegam os troncos
A empresa só pode “cortar os troncos no período de dormência vegetativa, entre fins de Outubro e início de Março”, por isso, explica o sócio-gerente da JM Gonçalves, há que fazer um grande stock de troncos.
Vemo-los em pilhas enormes no exterior da fábrica, que tem duas unidades, a serração (são a única empresa do género na Península Ibérica que tem serração própria) e a produção propriamente dita.
Depois de cortados, os troncos ficam no terreno e vão sendo humedecidos, sobretudo no Verão, com aspersores. Isto porque, para trabalhar esta madeira, é preciso manter os troncos com 14% de humidade.
Vamos por fases
Os troncos
São gigantes, de carvalhos que chegam a ter 150 anos ou mais. E que chegam da parte Norte e do Centro de França.
"Às fatias"
Na unidade de serração, são cortados em toros que parecem fatias de bolo muito altas.
O cerne da questão
De todo o tronco, a tanoaria só aproveita o cerne. É daí que vai tirar as aduelas para a barrica, respeitando os raios medulares do tronco.
Às paletes
Das tais "fatias", passamos a ter tábuas com um aspecto já muito próximo do das aduelas com que se fazem as barricas. Paletas de 1 metro cúbico "estagiam" num parque de madeiras com 4 hectares, o equivalente a 5,5 campos de futebol (0,73 hectares por campo). A vista aérea é impressionante.
José Abílio explica-nos que, em tanoaria, utiliza-se maioritariamente carvalho francês e sobretudo árvores de grão muito fino, ou seja, de crescimento muito lento. Isso quer dizer que estas árvores nunca têm menos de 150 anos.
E diz-nos que, no seu sector, as origens geográfica e botânica da madeira e o tipo de grão são dois dos conceitos mais importantes.
Para além de os troncos de Quercus petraea, cortados no Centro/Norte de França, na zona de Clermont-Ferrand e Moullins, parecerem gigantes ali deitados, impressiona a quantidade de paletas, volumes de sensivelmente 1 metro cúbico, espalhadas no terreno.
Para se ter melhor ideia, as futuras aduelas amontoadas em paletes chegam à altura de uma pessoa de estatura média que leve uma criança pequena às cavalitas e espraiam-se por um parque de madeiras com 4 hectares.
Cada metro cúbico de aduelas produz dez barricas de 225 litros, a capacidade que mais vemos nas adegas. E para ter 1 metro cúbico de aduelas são precisos 4,5 metros cúbicos de tronco.
Fendimento e serração
A barrica de 225 litros continua a ser a barrica mais usada a nível mundial, embora haja uma procura crescente de volumes maiores.
Depois de anos de excesso de utilização de barricas novas de carvalho, os produtores de vinho têm optado por cascos de maior volume, também utilizam mais vezes a mesma madeira e pedem às tanoarias uma tosta menos intensa das aduelas, como nos contava há uns meses o jornalista Edgardo Pacheco no trabalho O que há de novo no mundo das barricas?
A JM Gonçalves também fabrica desses cascos maiores, mas o grosso de produção são mesmo as barricas de 225 litros. E é em função das dimensões dos cascos que vai produzir que corta os troncos.
“Depois de cortados, [os toros] passam pelo processo de fendimento. E, no fendimento, pretende seguir-se os raios medulares.”
No processo de chegar às aduelas, estraga-se cerca de 75% a 80% de madeira, desde a casca, ao coração, passando pelo borne.
Só numa operação, já na unidade de produção — o corte das aduelas à medida (foto à direita) —, é eliminada 40% de madeira.
Parte desse desperdício é transformado em chips, cubos e outros alternativos de madeira, comummente usados na enologia de vinhos de volume, mais baratos. Nada se desperdiça.
Uma barrica de verdade pode custar entre 400 e 1000 euros!
Banhos de sol e SPA
Depois do primeiro corte, o tal fendimento, a madeira é empilhada nas paletas. Mas antes desse estágio ao sol e à chuva, as aduelas passam por um processo de pré-secagem, em que são colocadas em água durante algumas semanas, em duas ‘piscinas’, a que José Abílio chama “o SPA” das madeiras.
Nesses tanques, cheios de água de extração, sem cloro – muito importante, em tanoaria não se pode utilizar cloro, que adulterará o vinho mais tarde –, as aduelas vão ficar encharcadas e mais densas. Essa madeira adquire uma impulsão incrível nesse processo, o que leva a empresa a tapar os tanques com o peso de troncos inteiros.
Objectivo: tentar “eliminar a parte hidrossolúvel, a parte mais agressiva” da madeira, quando falamos de produção de cascos para vinho. No final da jornada, quando o vinho fermentado e/ou estagiado em madeira chega à garrafa, quer evitar-se que aromas e mesmo sabores a madeira, provenientes dos cascos, se sobreponham ao vinho propriamente dito.
“Estágio” ao sol e à chuva
O tempo da secagem que vem depois, a “maturação”, também é fundamental para amaciar a madeira. Na JM Gonçalves, o estágio mínimo é de 24 meses, mas há madeiras que chegam a estar assim ao ar livre 48 meses, quatro anos!
E se chover ou houver humidade no ar?
Há uma microflora que se desenvolve na madeira e que é incompatível com o vinho, é verdade, mas como a madeira depois vai ser submetida a altas temperaturas não há qualquer problema de contaminação do vinho mais lá à frente, explica José Abílio Gonçalves.
Hoje me dia, há um consenso alargado em torno da mais-valia de respeitar o vinho. É no SPA que se elimina um conjunto de taninos que tem origem na madeira e que são hidrossolúveis, daí a imersão.
A tendência para o aumento de volumetria dos cascos de estágio e para reduzir a intensidade da queima das aduelas é mundial, mas ainda há muito mercado para vinhos que tenham aroma de baunilha, caramelo, coco, especiarias variadas, torrefacção, chocolate e outras coisas que vêm do uso de madeira no estágio dos vinhos e não do vinho propriamente dito, nomeadamente em países não produtores.
Entre produtores e consumidores do velho mundo, vai imperando o bom senso. Mas haverá poucos produtores que não usam, para determinados vinhos e / ou a dada altura, madeira. E o bom senso de que falamos começa na produção. Na JM Gonçalves esse trabalho é feito em estreita ligação com o cliente, muitas vezes representado pelo enólogo, que é quem faz os vinhos. O facto de José Abílio ser enólogo de formação ajudará ao diálogo. Os irmãos também trabalham na tanoaria, mas em diferentes áreas, da direcção de produção ao marketing.
O fabrico propriamente dito
Na unidade de produção, há novo corte, agora das aduelas à medida, procede-se ao torneamento das aduelas e são triados defeitos.
Depois vem a área mais romântica da fábrica, e mais artesanal. A zona onde é feita a queima. Em três tempos, como vemos nas imagens que se seguem.
O sistema Onyx
Em alternativa à terceira fase do tratamento térmico por combustão a lenha, a JM Gonçalves está a trabalhar num sistema, numa barrica chamada Onyx, em processo de patente ainda e que utiliza infravermelhos e pedras vulcânicas — não há fogo nem o tal fumado — e que permite aportar mais mineralidade aos vinhos. Em Portugal, já fornece a Casa Santos Lima com barricas onde hão-de estagiar os vinhos que este produtor, presente no Pico desde 2022, fizer na campanha deste ano.
Fechar a barrica
“Depois as barricas passam por vários outros processos: a arrunhagem dos topos, para colocar os tampos, previamente feitos. Hoje, com a tecnologia que existe, as máquinas Sensei já nos permitem que seja tudo de forma muito automática. As barricas são de dimensões iguais, os aros são pré-fabricados e todos iguais, por isso, facilmente instalados.”
Barricas para os quatro cantos do mundo
A tanoaria JM Gonçalves produz anualmente 16 a 17 mil barricas e exporta 90% da sua produção. A sua faturação anual — a do grupo, que tem na verdade mais do que uma empresa — ronda 6,5 a 7 milhões de euros.
As barricas de 225 litros representam o grosso da produção da empresa, mas na fábrica de Palaçoulo também se produzem cascos maiores. "Estamos a fabricar dois balseiros de 5000 litros, por exemplo, neste momento", partilha José Abílio Gonçalves.
Sendo verdade que a maioria dos cascos é daquela dimensão, o empresário confimra que "há efectivamente, e sobretudo no mercado português, uma procura crescente por barricas de 300 e 500 litros". Por causa do tal efeito na enologia: em cascos maiores, "a superfície de contacto do vinho com a madeira é, em proporção, menor", sublinha.
A tanoaria portuguesa está presente numa vintena de mercados, incluindo países onde ficam regiões vitivinícolas clássicas, como Espanha, França, Alemanha, Itália, Chile, Nova Zelândia e EUA, mas também destinos mais improváveis, como Japão, China — que, não sendo um clássico, já é um dos maiores produtores de vinho mundiais — ou Argentina.
Para entrega em Portugal, curiosamente, depois da personalização, as barricas são mais bem acondicionadas porque vão passar por várias mãos até chegarem ao destino. Lá para fora, seguem em contentores que são carregados ali na fábrica e que só são abertos no cliente final, no estrangeiro.
É colocada uma tela especial no chão e paredes dos contentores fretados para que nada contamine o vinho. José Abílio explica: a madeira é porosa e não é 100% estanque, podendo absorver aromas indesejáveis que permaneçam nestes contentores após transporte de outras mercadorias. Até aromas do cartão (mofos) podem passar para o vinho. É por isso que na JM Gonçalves as barricas são embrulhadas em película aderente e ‘plástico bolha’ e o cartão é colocado por cima desses materiais.