Diana Ríos
Rengifo

Uma luta interrompida

Ana Cristina Pereira (texto), Paulo Pimenta (fotografia) e José Carvalheiro (ilustração e animação)
5 de Setembro de 2024

É uma história de suspense, esta que aqui se conta cruzando a voz da protagonista com outras. Dos confins da Amazónia peruana aos holofotes da luta ambientalista, cortada por uma pena de prisão em Portugal. Esta quinta-feira celebra-se o Dia da Amazónia

Diana Ríos Rengifo (n. 1992) canta para o filho que tem nos braços. “Estou transmitindo a minha língua para que ele a saiba falar quando for grande. Se a língua não se transmite, a cultura perde-se.”

Canta em asheninka, uma língua ameríndia da família arawak. Canta na cela e no pátio interior, onde alguns voluntários pintaram desenhos e jogos infantis e se avistam copas de três árvores que crescem do outro lado do muro.

No princípio, espantavam-se com aquela língua as mulheres presas na mesma ala do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino, em Matosinhos. Diana explicava-lhes que cresceu no Saweto, na fundura da Amazónia peruana.

Tivessem acesso à Net e talvez se espantassem mais. Fazendo uma busca pelo nome da reclusa n.º 53, num instante encontrariam artigos e vídeos sobre ela, de túnica lisa e desenhos no rosto de tons que vão do vermelho-sangue ao laranja, a apregoar que a Amazónia está sob ameaça de pessoas que se dedicam à extracção de madeira, ouro, óleo de palma, petróleo…

Diana Ríos Rengifo segura numa fotografia sua tirada em liberdade, no Peru

Diana Ríos Rengifo foi detida no dia 15 de Outubro de 2022

Diana Ríos Rengifo foi detida no dia 15 de Outubro de 2022

Na sua comunidade, o problema é o tráfico de madeira. À medida que a procura aumenta, os madeireiros avançam floresta adentro. O mogno e o cedro-cheiroso, de grande valor comercial, já estão quase circunscritos aos territórios indígenas.

O que aconteceu? Como é que uma reputada defensora da Amazónia foi parar a uma prisão no Norte de Portugal?

Anatomia de uma ameaça

O antropólogo peruano Mario L. Osorio, a terminar a sua tese de doutoramento sobre os asheninkas, explica que, com os ashaninkas, os nomatsiguengas e os kakintes, da mesma família linguística, formam o grupo indígena mais numeroso da Amazónia do Peru, antes conhecido pela forma pejorativa campa. Serão mais de 125 mil no Peru e mais de dois mil no Brasil.

Contam com um vasto território na zona transfronteiriça de Ucayali (Peru) com Acre (Brasil). Diana cresceu nessa área remota, densa, repleta de biodiversidade, na Comunidade Nativa Alto Tamaya–Saweto, perto de Puerto Putaya, habitado por colonos e ribeirinhos de origem peruana e brasileira.

“Eu vivia feliz, tranquila, na minha comunidade”, diz ela. “O meu pai era autoridade na minha comunidade. Em várias oportunidades, fez denúncias públicas [sobre tráfico de madeira].”

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Comunidade Alto Tamaya - Saweto

Comunidade Alto Tamaya - Saweto

Comunidade Alto Tamaya - Saweto

Comunidade Alto Tamaya - Saweto

Comunidade Alto Tamaya - Saweto

Comunidade Alto Tamaya - Saweto

O chefe da comunidade chamava-se Edwin Chota Valera – ex-companheiro, com quem Diana teve o primeiro filho, aos 17 anos. O subchefe chamava-se Jorge Ríos Pérez – seu pai. Andavam ambos desde 2008 a pedir às autoridades peruanas que travassem os traficantes de madeira.

Para perceber bem esta história, há que recuar uns bons anos. Desde 1974, a legislação peruana prevê a possibilidade de comunidades indígenas serem reconhecidas e reivindicarem direito à terra que habitam.

No princípio deste século, uma nova lei abriu a porta à criação de florestas de produção permanente. Numa década, nas palavras de Osorio, a Amazónia ficou coberta de “concessões florestais privadas e lotes para prospecção e aproveitamento de petróleo”.

Há comunidades indígenas que se dividem entre quem defende a floresta e quem anseia por dinheiro fácil e algumas têm cedido à tentação. Não foi o caso da Comunidade Nativa Alto Tamaya–Saweto. 

O pai de Diana e os outros dirigentes tudo fizeram para que o território fosse reconhecido. E para obter o título de propriedade comunitária que os poderia proteger do grito das motosserras. Embora as suas denúncias fossem desatendidas no Peru, atraíram a atenção de media internacionais como a National Geographic ou o The Guardian.

Diversos rios serpenteiam a Amazónia peruana

Diversos rios serpenteiam a Amazónia peruana

O cedro e o mogno são as madeiras mais cobiçadas desta região

O cedro e o mogno são as madeiras mais cobiçadas desta região

O site de investigação Ojo Publico desmontou uma cadeia de irregularidades. As entidades competentes atribuíram licenças de extracção de madeiras que se justapunham ao seu território, enquanto continuavam a protelar o título de propriedade comunitária. A tensão agudizou-se.

“Não se deve outorgar uma concessão onde existe um direito de povos indígenas”, enfatiza Diana. “Nunca fomos consultados. Tão-pouco chamados pelas autoridades para dizer que estamos bem no nosso território, que cuidamos, que não queremos pessoas estranhas que querem tirar tudo o que temos na nossa natureza.” Querem preservar a floresta para si e para os vindouros.

Há uma Lei de Consulta Prévia (2011). Chota e Ríos não assinaram quaisquer documentos a dar consentimento à extracção de recursos. Continuaram a defender o território, a denunciar o tráfico de madeira, as ameaças de que eram alvo.

Uma emboscada e uma carnificina

Pela tradição asheninka, quem se casa coabita um breve período com os pais e logo corta umas palmeiras e levanta a sua própria casa. Diana morava um pouco afastada dos pais, serpenteando o rio Tamaya.

Viu o pai pela última vez na manhã de 31 de Agosto de 2014. Ele parou para lhe pedir uma hélice para a sua "peque-peque", uma pequena embarcação assim designada por causa do ruído emitido pelo motor. E Diana ofereceu-lhe uma garrafa de masato, bebida tradicional preparada à base de mandioca fermentada.

O pai seguiu rio acima, com a mãe e os irmãos mais novos. Dobrada a noite, partiria a pé com Chota, e dois outros membros da comunidade, Leoncio Quintisima Meléndez e Francisco Pinedo Ramírez. Tinham de caminhar até Apiwxta, comunidade asheninka do outro lado da fronteira para articular estratégias de defesa da floresta.

A mãe e os irmãos regressaram com vagar, pescando rio abaixo. Na sexta-feira, 5 de Setembro, Diana viu passar um dos dirigentes, Jaime Arévalo, com a mulher e os filhos. Como viajara com a sua família, ele partira dois dias antes dos outros. “Que estranho”, pensou ela. “Eles foram vários. Onde estão?”

Uma irmã deu-lhe a explicação no dia seguinte. “O papá está morto. Mataram-no. Não chegou à reunião, contou o tio. Disse que os animais do monte o estão a comer, que o seu corpo está atirado numa quebrada. Os quatro estão mortos.”

Quando soube que o pai tinha sido morto, Diana apressou-se para casa da mãe

Quando soube que o pai tinha sido morto, Diana apressou-se para casa da mãe

Arévalo vira restos mortais num declive, a umas oito horas de Apiwtxa. Urubus, aves que se alimentam de carne em decomposição, depenicavam roupas, botas e sacolas que boiavam num poço.

Diana não queria acreditar. Precipitou-se para a comunidade. Conversou com a mãe, Ergília Renfigo López, e as outras viúvas, Adelina Vargas, Lita Rojas, Julia Pérez. “Temos de fazer justiça. Temos de ir até à cidade denunciar.”

A viagem de "peque-peque" dura três a sete dias, conforme a altura das águas e o tempo de descanso. As viúvas viajaram dia e noite. Nem para comer pararam, só para se abrigarem e dormir um pouco. Três dias levaram até Pucallpa, capital do Departamento de Ucayali.

Diana é a mais velha dos nove filhos de Ergília. O mais novo nascera havia um mês. No total, o quádruplo homicídio deixou 17 órfãos de pai. Diana tinha 22 anos e recorda assim o princípio da sua luta: “A minha mãe esteve lá todo o mês de Setembro. Em Outubro, chamou-me. A minha mãe não sabe ler, mas sabe falar muito bem dos seus direitos, tudo. Então eu saí da minha comunidade para ajudar.”

O pai de Diana e os outros líderes foram mortos quando se deslocavam para o Brasil

As viúvas viajaram de barco para apresentar queixa

Diana não imaginava o quanto aquela tragédia iria mudar a sua vida

O nascimento de uma heroína

Apenas dois meses depois dos homicídios, Diana tinha um passaporte e estava dentro de um avião a caminho de Nova Iorque. A Fundação Alexander Soros, do filho do bilionário George Soros, atribuiu o prémio de Activismo Ambiental à comunidade.

“Podem ter matado o meu pai e os seus amigos, mas ainda estou aqui”, discursou, perante uma centena de activistas, conforme citação do HuffPost. “Continuarei a lutar pelo direito aos nossos territórios e pelos direitos dos restantes povos indígenas do Peru.”

Até o The New York Times dedicou um artigo ao assunto. A organização internacional Global Witness tinha acabado de expor o Peru como um dos mais mortíferos países para ambientalistas e activistas dos direitos fundiários. Desde 2002, 57 mortos.

Sentindo o cerco, o Governo do Peru revogou licenças que se sobrepunham ao território, prometeu concluir o processo de atribuição do título de propriedade e lançar um programa de apoio à comunidade. Em Setembro de 2015, um ano depois do massacre, a Comunidade Nativa Alto Tamaya–Saweto obteve o título de 77 mil hectares de floresta.

Diana participou num protesto em Nova Iorque, nos Estados Unidos

Diana participou num protesto em Nova Iorque, nos Estados Unidos

“A concessão não queria que continuássemos a viver naquele território”, deduz Diana. “Eles pensaram que matando o meu papá [e Chota] nós íamos correr com medo, deixar as nossas casas. Não foi assim.”

Algumas famílias partiram. Os homens recuaram, temendo ser os próximos alvos a abater. Contudo, algumas mulheres chegaram-se à frente. Ergília foi a primeira mulher a ser eleita chefe da comunidade. E Diana, escolhida para tesoureira, emergiu como porta-voz. Tornou-se o rosto daquela luta.

Sentia que o pai a preparara para aquela missão. “Eu seguia o meu papá desde os oito anos. O meu papá ia caçar, eu ia. O meu papá ia pescar, eu ia. O meu papá ia à cidade fazer diligências, eu ia. O meu papá sempre dizia: ‘Posso adoecer, posso morrer, se não te transmito, se não te ensino, como vais saber em que escritório se mete um papel?’”

O pai gostava de levar a mulher e os filhos às reuniões políticas. “Não só os homens, nós também temos direitos de falar, de opinar nas assembleias gerais da comunidade, de partilhar as nossas ideias.’”

Nos anos que se seguiram, Diana teve muito espaço para exprimir opinião em eventos sobre culturas indígenas e modos de vida sustentável, a importância da propriedade comunitária para a preservação da Amazónia e o combate às alterações climáticas. Esteve na Conferência do Clima em Lima (2014) e Paris (2015). Esteve na Cimeira da ONU sobre Acção Climática em Nova Iorque (2019). Não viajava sozinha. Acompanhava-a a advogada Margoth Quispe Anaya, então a trabalhar para a Rainforest Foundation US no Peru – era ela quem tratava da logística e dos pagamentos.

Persistir, apesar de tudo

Para lá do luto, o massacre levou a uma mudança drástica de vida. “Foi muito difícil para mim e para a minha família porque da noite para o dia tivemos de ir para a cidade. Nunca tinha vivido na cidade.”

Sempre tinham vivido no Saweto, em casas suspensas, sobre barrotes de madeira, com cobertura de palha, sem divisões ou mesmo sem paredes. Sempre tinham sabido de onde vinha tudo o que levavam à boca. Alimentavam-se à base de peixe, mandioca, plátano.

Pucallpa é uma das cidades mais povoadas do Peru. Um rodopio de gente, embarcações e viaturas associado ao negócio de madeira. Para tudo, é preciso dinheiro. “Tem de se pagar muitas coisas.”

A delonga da justiça impedia as famílias de recomeçar. O companheiro de Diana, com quem já tivera dois filhos, pedia-lhe que esquecesse, que se focasse na sua vida. Deixou-o. Que raio de conversa era aquela? Como podia pedir-lhe tal coisa?

Casa da Comunidade Nativa Alto Tamaya - Saweto, na cidade de Pucallpa

Casa da Comunidade Nativa Alto Tamaya - Saweto, na cidade de Pucallpa

Em Outubro de 2019, o Ministério Público deduziu acusação contra cinco homens e as famílias sentiram-se mais ameaçadas do que nunca. Não conheciam caso semelhante que tivesse chegado tão longe.O procurador nomeara publicamente os suspeitos. E eles continuavam à solta, alguns em Puerto Putaya, perto da comunidade.

A comunidade servira-se do prémio da Fundação Alexander Soros para comprar uma casa num bairro periférico de Pucallpa, para acolher os que tivessem de estar na cidade. “A casinha não era tão segura”, diz Diana, que ali passava muito tempo. “Era de madeira, a cerca estava rota. À noite, começou a andar alguém. No escuro não se via, mas os cães ladravam.”

Deu por ela a temer o pior. “Tinha quatro filhos e três estavam na minha aldeia. Não só eu estava correndo risco de vida, também os meus filhos estavam.” Quis que se mudassem para a cidade. “Se vou morrer, tenho de morrer com eles.”

Tinha onde acomodá-los, mas não ganhava para lhes pagar a escola. Sobrevivia com um pequeno subsídio da Rainforest Foundation US e a venda de colares e pulseiras que fazia com sementes nativas. Com a pandemia de covid-19, pior. “Deixaram de estudar. Passaram três anos sem estudar. Eu digo que devem estudar…”

O Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo fica próximo do Aeroporto Francisco Sá Carneiro

O Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo fica próximo do Aeroporto Francisco Sá Carneiro

O desespero e o salto

Não escondia de ninguém o que estava a acontecer. “Tinha uma vizinha aí. Sempre a incomodava para carregar os telefones, porque não tínhamos luz. Tinha comentado [com ela] que queria trabalhar, que precisava [de trabalhar] para sustentar os meus filhos.”

Uma alegria quando ela lhe bateu à porta. “Ela disse: ‘Diana, tenho um amigo que diz que necessita urgentemente de uma pessoa para trabalhar.’ Eu perguntei: ‘Onde?’ Ela disse: ‘Tens de viajar.’ ‘Não há problema.’ ‘Tens os teus documentos?’ ‘Sim.’”

Saiu de casa no dia 4 de Outubro de 2022. Viajou 18 horas de camioneta de Pucallpa a Lima. E outras 16 de Lima a La Paz, na Bolívia. Tornou a viajar 16 horas de La Paz a Santa Cruz de La Sierra. “Três dias viajando. Dia e noite. Estava muito cansada. Estava esgotada.”

Encontrou-se com o homem num pequeno hotel da cidade. Afirma que só então soube que o “trabalho” não era ali. “‘Tens de levar produtos’, disse ele. Eu confiei nele. Fez-me ver os talões, as facturas, tudo.’”

Na Bolívia, Diana encontrou-se com o homem que a contratou para transportar um produto

Fez escala no Porto, mas o destino final era Madrid

O verificador aduaneiro encontrou cinco quilos e meio de cocaína na sua mala

O talão remetia para uma compra feita no dia 3 de Setembro, no Natural Market, na zona de Miraflores. Seriam farinhas para fazer sumo de morango, de lúcuma, de chicha, uma bebida fermentada à base de milho e outros cereais.

Explicou que não podia demorar. No dia 20 de Junho de 2022, em Pucallpa começara o julgamento dos homens acusados de matar o pai. Já testemunhara, mas poderiam voltar a chamá-la. “O teu trabalho vai ser rápido”, ter-lhe-á dito o homem.

Pelo serviço, pagar-lhe-ia seis mil euros. “Uns 20 mil soles.” Afirma que não se pôs a pensar no que aquilo podia significar. Não era bom pensar. Precisava tanto de dinheiro para pagar a escola dos filhos, comprar coisas, comida, tudo.

Em Santa Cruz de la Sierra, recebeu uma mala e meteu-se numa camioneta – 16 horas até Campo Grande, no Brasil. Apanhou um avião para o Rio de Janeiro – seis horas. E outro para o Porto – mais 10 horas. Aterrou no Aeroporto Francisco Sá Carneiro por volta das 13h do dia 15 de Outubro.

Dentro da mala de viagem roxa, sob três mudas de roupas, o verificador aduaneiro encontrou nove embalagens lacradas, com indicação de que seriam as tais farinhas. Os testes feitos pela autoridade aduaneira deram negativo, mas, perante forte suspeita de droga, a Polícia Judiciária foi alertada. O exame feito pelo laboratório da polícia científica confirmou: era cocaína.

O relógio marcava 17h45 quando Diana recebeu voz de prisão por transportar 5,5 quilos, o suficiente para 18.386 doses individuais. Teria de ser ouvida pelo Tribunal de Instrução Criminal, e conduzida a Santa Cruz do Bispo, onde ficaria a aguardar julgamento.

Quando lhe deram hipótese de contactar alguém, telefonou logo para uma vizinha que ficara de olhar pelos seus quatro filhos. Fora por eles que aceitara “fazer um trabalho” e agora ali estava: aos 30 anos, grávida, sob detenção, em Portugal, com os quatro filhos no Peru.

Tinha ouvido tantas histórias terríveis sobre prisões. “Que será que me vão fazer? Vão-me bater? Vão-me maltratar?” Chorava. “Tenho muitas coisas para fazer lá fora. Venho de uma cultura humilde. Nunca nos dedicamos a coisas que não servem. Fui confiar em alguém que...”

A vida na prisão

A prisão não é como imaginava. É um edifício novo, construído de raiz para acomodar até 354 mulheres, com algumas celas reservadas para mães acompanhadas por filhos pequenos.

“Tratam-me bem”, diz. “Até agora não vi discriminação. Todos temos os mesmos direitos.” Mau mesmo é “a parte emocional”. “Não estou com os meus filhos, não sei o que estão fazendo, não sei como estão.”

Passou os primeiros dias internada nos serviços clínicos da prisão, onde fez a primeira ecografia obstétrica da vida e outros exames. Depois, foi-lhe atribuída uma das celas de mães.

O bebé cresceu tanto dentro dela que teve de sujeitar-se a cesariana no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. Conforme vai crescendo, agora cá fora, entregam-lhe roupas de tamanho adequado.

No rés-do-chão, à porta das celas das mães, os carrinhos de bebé. Além de um carrinho, quem precisa recebe um berço, um edredom, dois jogos de lençóis, duas fronhas, uma almofada, um resguardo, uma banheira, uma toalha de banho, um termus, um biberão.

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Diana está a criar o filho mais novo na prisão

Diana está a criar o filho mais novo na prisão

O bebé frequenta a creche dentro da prisão

O bebé frequenta a creche dentro da prisão

Diana foi colocada numa zona reservada às mães

Diana foi colocada numa zona reservada às mães

Na cela de Diana não parece caber mais nada. Do lado direito, entre o armário e a secretária, o berço. Onde dá, roupas, brinquedos, utensílios. Do lado esquerdo, a cama e a casa de banho, um televisor suspenso numa parede e um telefone noutra.

Diana bem gostava de falar ao telefone até 60 minutos por dia para dez números autorizados, como o regulamento permite. “É muito caro [telefonar para o Peru]. Um carregamento de cinco euros dá para falar quatro minutos. Falo com um filho e outro filho já não falo.”

Não ajuda os filhos não morarem juntos. O mais velho, de 16 anos, está com uma irmã. Os dois do meio, de 11 e 12, estão com o pai deles. E o mais novo, de quatro, com o pai dele, com quem Diana mantém uma relação.

Para falar com todas as pessoas que a saudade exige, precisa de uns 20 euros. Se fizer um carregamento nesse montante pode falar 17 minutos distribuídos pelos quatro filhos, o companheiro e a mãe. “Tem de ser a correr.’”

“É complicado não ter apoio económico da família”, reconhece. “É necessário ter um trabalho para comprar o que precisamos, sobretudo quando temos filhos, porque nem tudo vai dar a directora.”

Tem um trabalho irregular. No sector oficinal, trabalha para empresas externas que fornecem produtos de higiene pessoal a unidades hoteleiras. Havendo caixas de papelão para montar, chamam-na, mas não a têm chamado tantas vezes quanto gostaria.

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Para ganhar algum dinheiro, Diana monta caixas de papel para uma empresa exterior

Para ganhar algum dinheiro, Diana monta caixas de papel para uma empresa exterior

Diana utiliza o dinheiro para comprar produtos de higiene e telefonar à família

Diana utiliza o dinheiro para comprar produtos de higiene e telefonar à família

O mais comum é trabalhar dois, três, quatro dias por mês. “Se [os produtos] forem de madeira, pagam bem – 80, 100 euros. Se forem de plástico, pagam menos – 40, 50.” E com isso compra detergente, champô, dentífrico, e carrega o telefone.

A directora, Paula Leão, conhece o seu drama. “Uma vez por mês ou assim, eu autorizo a técnica [de reinserção] a fazer chamada às expensas do estabelecimento prisional.” A cadeia também tem um sistema de videochamada que pode usar, a pedido, sem custos. Por essa via, Diana só consegue chegar ao actual companheiro e ao filho que está com ele.

Cada vez que tem uma videochamada, veste as suas melhores roupas, passa um batom pelos lábios. “Ele diz-me: ‘És uma mulher guerreira. Vais sair e tudo se vai esclarecer. Já que estás na cadeia, aprende em quem confiar, selecciona as tuas amizades.’”

O julgamento por tráfico de droga

Amiúde, já procurava a palavra certa quando se expressava em castelhano. “Como se diz? Como se diz?” Agora, que duas vezes por semana tem aulas de Português, mistura o castelhano com o português.

No seu julgamento, teve intérprete. Em diversas ocasiões, não entendeu bem as perguntas que lhe fizeram, desviando-se nas respostas. Um dos magistrados exasperou-se com isso.

Toda a sua história foi relatada em tribunal. Para o colectivo de juízes, o fundamental era estabelecer se Diana sabia ou não o que transportava.

Uma juíza perguntou-lhe se não lhe pareceu estranho viajar para a Bolívia sem saber o que iria fazer. Diana retorquiu que não, embora tivesse ficado incómoda quando soube que teria de viajar até Espanha.

A magistrada insistiu: “E achou isso normal?” Diana admitiu que começou a ficar com dúvidas quando soube que teria de viajar até à fronteira da Bolívia com o Brasil, carimbar o passaporte e voltar atrás para descansar e recolher a mala. Também estranhou que o homem a proibisse de abrir a mala. Estava já no Rio de Janeiro quando percebeu que devia mesmo estar a fazer algo ilegal: o homem mudara de número de telefone, contactava-a de números desconhecidos. “Sou eu que vou telefonar, não tu”, ter-lhe-á dito, agressivo. “Faz o que te digo e não perguntes mais.”

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O parque infantil faz parte da creche que existe na prisão

O parque infantil faz parte da creche que existe na prisão

O pátio da ala que acolhe as crianças tem pinturas infantis

O pátio da ala que acolhe as crianças tem pinturas infantis

Diana gosta de estar no pátio onde avista três árvores

Diana gosta de estar no pátio onde avista três árvores

“Resolveu continuar?”, tornou a magistrada. Diana anuiu. “Eu pensei: ‘Que faço nesta circunstância, longe do meu país, longe da minha família? A quem recorro neste momento para regressar a casa? Vai acontecer alguma coisa aos meus filhos? A pessoa que me recomendou o trabalho conhece a casa da minha comunidade’”, explicou ao tribunal. “Tinha deixado os meus filhos sozinhos. Tinha pedido à vizinha da frente que, por favor, olhasse por eles à noite.”

“Eu não percebi porque é que, estando assustada e querendo voltar para casa, não foi à polícia”, persistiu a juíza. “É que tinha medo do que podia acontecer comigo, com a minha família”, alegou Diana. “Não sabia exactamente o que estava a levar, mas pressentia que algo não estava bem.”

O homem ter-lhe-ia dito que faria escala no Porto e seguiria viagem até Madrid. Mal aterrou, ele tê-la-á informado que o voo para Madrid fora adiado para o dia seguinte. “Disse que tinha de mostrar os documentos todos e ficar à espera, no aeroporto.”

Portugal é uma das maiores portas de entrada de cocaína na Europa. Naquele ano, de acordo com a Polícia Judiciária, foram detidas 127 pessoas com droga nos aeroportos portugueses, 111 das quais com cocaína.

Chamam-lhes “correios de droga”. São homens e mulheres, maiores de idade, com grande vulnerabilidade, nas palavras de Artur Vaz, director da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária.

O que levou as autoridades a desconfiar daquela mulher de calças de ganga e blusa preta e branca? Encaixaria no perfil delineado a partir da experiência acumulada? Terá sido denunciada?

Os bebés ficam fechados na cela, com as mães, entre as 19h e as 8h

Os bebés ficam fechados na cela, com as mães, entre as 19h e as 8h

Diz que entregou tudo o que tinha ao inspector. Ela a dizer-lhe que o voo para Madrid fora adiado. E ele a olhar para os papéis que ela lhe entregara e a ver uma reserva de 15 a 19 de Outubro num hotel do Porto em nome dela e outra de 19 a 26 em Madrid. 

Se Diana ia para Madrid e o voo fora adiado, onde estava o bilhete de avião Porto-Madrid? Viajaria por via terrestre? O que ela tinha era um bilhete Madrid-Lima para usar no dia 26. O homem que a contratou deixou de atender o telemóvel.

Quando a Polícia Judiciária a interrogou, Diana falou logo no processo judicial que estava a decorrer no Peru. Repete a mesma história até hoje. “Estava a ser ameaçada por quem matou o meu pai. Eles não podiam fazer-me mal directamente. Os média estão comigo. Se me matassem, podiam suspeitar deles. Então procuraram uma forma de me afastar.”

Tentação ou cilada?

O advogado José Ricardo Gonçalves assentou a defesa de Diana no logro. Está convencido de que, “independentemente de alguma consciência que possa ter tido a partir de determinada altura, tudo foi montado para ela cair numa cilada”.

Como é vulgar nos processos desta natureza, Diana não se revelou útil para a investigação. Não tinha qualquer informação sobre quem lhe entregara a cocaína nem sobre quem deveria recebê-la.

No Palácio de Justiça de Matosinhos, a coberto das regras da protecção das testemunhas, duas pessoas declararam que uma testemunha protegida no processo de homicídio lhes contara que ouvira um dos acusados gabar-se de uma emboscada a Diana.

“É uma manipulação”, testemunhou Natan Elkin, jurista que conheceu Diana quando estava na Organização Internacional do Trabalho. “Eles fazem extracção ilegal de madeiras e essa actividade vai junto com o narcotráfico. Conseguir que na última etapa do processo em Pucallpa Diana caia nesta armadilha é fácil.”

Talvez a sua narrativa seja verosímil no Peru. No Peru, esclarece Julio Cusurichi Palacios, do conselho directivo da Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Floresta Tropical Peruana, grupos organizados têm encontrado três formas de se livrarem de líderes indígenas: ameaçar de morte, denunciar/incriminar, matar. “Não conheço outro caso assim, mas aqui, no Peru, pode acontecer qualquer coisa”, comenta, numa videochamada. “As grandes empresas têm o apoio das autoridades e podem inventar qualquer coisa para dividir, para distanciar, para incriminar.”

Uma base de dados está a ser construída por aquela organização, com o apoio da Rainforest Foundation US. Desde 2014, pelo menos 34 líderes indígenas foram mortos no Peru. Perto de 60 estão sob ameaça ou foram denunciados/incriminados. O caso Saweto é exemplar.

As quatro viúvas. Ergília Rengifo, mãe de Diana, é a primeira da esquerda para a direita

As quatro viúvas. Ergília Rengifo, mãe de Diana, é a primeira da esquerda para a direita

Em 2013, Chota seguiu a madeira abatida em Saweto até Pucallpa. Perante a sua queixa, mais de 900 toros de madeira foram apreendidos. Por essa altura, os alegados autores morais do quádruplo homicídio apresentaram denúncia contra Chota, Ríos e outros, por tráfico de estupefacientes.

Essas acusações foram arquivadas pelo Ministério Público peruano em 2015. Reapareceram no julgamento por homicídio, com a defesa a alegar que os quatro homens não tinham sido mortos por madeireiros, mas por narcotraficantes. Nas alegações finais, em Janeiro de 2023, serviu-se da detenção de Diana para reforçar essa tese.

Resume Yusen Caraza, advogado das viúvas, em videochamada: “Tentaram manchar um pouco o processo alegando que os lesados se dedicavam ao tráfico de estupefacientes e que uma das filhas de um deles foi detida por esse crime. Tentaram sustentar que qualquer um os pode ter matado.”

Na sentença ditada no dia 27 de Fevereiro de 2023, o tribunal deu como provado que as vítimas “não tinham problemas relacionados com tráfico de droga nem com narcotraficantes”, que o seu problema era com os traficantes de madeira. Não considerou relevante a prisão de Diana.

Condenada a uma pena de prisão

Era nesse ponto que tudo estava quando, no dia 28 de Junho de 2023, Diana foi conduzida numa carrinha celular da prisão até ao Palácio de Justiça de Matosinhos. Ouviu o Tribunal Judicial da Comarca do Porto condená-la a cinco anos e dez meses de prisão efectiva.

“Não conseguimos demonstrar que foi vítima de uma cilada”, admite José Ricardo. “Como advogado, respeito a decisão.”

Ao que se pode ler no acórdão, o tribunal não acreditou que Diana fosse tão ingénua. Julgou que “bem sabia” que era cocaína que transportava. “Só esse conhecimento explica que tenha aceitado transportar entre continentes produtos que aparentemente valiam 500 soles peruanos, ou seja, 125 euros, recebendo seis mil euros.”

A pena de Diana foi reduzida um ano tendo sido fixada em quatro anos e dez meses

A pena de Diana foi reduzida um ano tendo sido fixada em quatro anos e dez meses

No recurso, a defesa pediu uma redução da pena de prisão para menos de cinco anos e a consequente suspensão da sua execução, bem como a revogação da pena acessória de expulsão, atendendo ao perigo que corre no Peru. No dia 8 de Novembro de 2023, a Relação do Porto reduziu a pena para quatro anos e dez meses, mas manteve a execução e a expulsão.

Ao que se pode ler no acórdão, pesou em desfavor de Diana “a intensidade da ilicitude e o dolo directo”. A favor, “a sua conduta anterior ao crime, as suas condições de vida e a história do seu povo indígena, o facto de ser mãe de cinco filhos, de estar a passar dificuldades económicas, vivendo em extrema pobreza, e de não ser beneficiária directa da futura venda da droga apreendida”.

O regresso da guerreira

Diana ficou contente. “Graças a Deus, baixaram a pena. A metade da pena, tenho de ser expulsa para o meu país. A minha metade de pena é em Março do próximo ano”, diz, abrindo-se num sorriso. “Estou ansiosa para ver os meus filhos, a minha família, a minha comunidade, a minha aldeia. E também para manter de pé a minha liderança, porque o meu sonho não mudou, continua firme. Também quero editar música sobre as coisas que me aconteceram e as coisas que vão surgir mais à frente, com a bênção de Deus.”

Passa horas entre aquelas quatro paredes de tom pastel. Sentada na cama estreita, de frente para o berço do filho, ou à secretária, atolada.

Escreve, sobretudo cartas. “Escrevo cartas para a minha família. Digo que estou bem, que não se preocupem, que tenho saudades, que tudo vai passar, que em breve estarei na minha comunidade.”

Canta, sobretudo na língua nativa. Uma vez até foi cantar ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no âmbito de um projecto de André Cepeda. Um hino à medicina ancestral, ao ritual ayahuasca, kamarampi na língua asheninka.

A maternidade na prisão é vigiada continuamente

A maternidade na prisão é vigiada continuamente

As mães são chamadas ao refeitório antes das outras reclusas

As mães são chamadas ao refeitório antes das outras reclusas

Lê, sobretudo a Bíblia. Frequenta uma igreja evangélica, que semanalmente ali presta serviço religioso. Não vê incompatibilidade com as crenças do seu povo. “Queria saber mais sobre a palavra de Deus. Nós temos outra crença, mas é Deus, de outra maneira.”

Explica o antropólogo brasileiro José Pimenta, que estudou este povo do lado brasileiro, que a crença ashaninka compreende bons e maus espíritos e os hierarquiza. O mais importante é Pawa, o criador da Terra, da floresta, dos rios, dos animais, das estrelas, do vento, da chuva, em suma, de tudo. O ritual ayahuasca permite o contacto com os bons espíritos.

Diana está integrada nas rotinas da prisão. Só não se habituou à comida servida na cantina. “Nós não comemos pão. Comemos plátano maduro.” Culpa o pão pelo seu aumento de peso. Para o perder, começou a frequentar aulas de ginástica duas vezes por semana.

Acredita que, saindo dali, tudo será como antes. Confiarão nela, no Peru? “No caso do meu povo, sim. Vou explicar o que aconteceu. E seguirei em frente. Tarde ou cedo se chegará à verdade.”

Quando tem videochamadas, Diana maquilha-se e veste a melhor roupa

Quando tem videochamadas, Diana maquilha-se e veste a melhor roupa

Lá longe

Na comunidade, a vida prossegue. O tráfico de madeira não desapareceu com a obtenção do título de propriedade comunitária. Alto Tamaya–Saweto continua a debater-se com insegurança territorial e escasso acesso a serviços básicos.

A liderança já não está com as viúvas. Uma, Adelina, morreu. Lita está na comunidade e Julia e Ergília na cidade. Diz o advogado delas que não têm protecção policial, embora estejam todas sob ameaça. “Há uma resolução de garantia das suas vidas. É um papel e isso não pára balas.”

Júlia e Ergília continuam focadas no processo judicial. “Não quero que se riam de nós com este crime”, diz Ergília, por telefone. Os quatro homens foram torturados, violados, assassinados e abandonados para serem devorados por animais. “Quero que se faça justiça. As pessoas que morreram não morreram por vontade própria, mas por defender o seu território, denunciando os madeireiros.”

Em Agosto de 2023, o julgamento pelo quádruplo homicídio foi anulado. No dia 12 de Abril de 2024, o tribunal de Ucayali tornou a condenar quatro homens a 28 anos e três meses de prisão – o quinto suspeito está contumaz. Como recorreram para a segunda instância, continuam em liberdade.

Quando se lhe pergunta como acha que será a vida de Diana no regresso, Ergília responde: “Ela não pode voltar à comunidade, porque aí [perto] estão os homicidas e seus familiares. Ela deve ficar na cidade. Ela deve viver com o actual companheiro [pai dos filhos mais novos]. Deve ter outros trabalhos. Já não deve trabalhar estas questões da justiça, porque é muito delicado. Eu assumi as questões de justiça.”

Diana reconhece o perigo, mas nem por isso mostra medo. “As pessoas que mataram o meu pai vão alterar-se, porque vou falar, vou fazer escutar a minha voz sobre a circunstância que me trouxe para aqui. Se tiver de pagar com a minha vida, pago.”

FICHA TÉCNICA

Texto
ANA CRISTINA PEREIRA

Ilustração e Animação
JOSÉ CARVALHEIRO

Fotografia
PAULO PIMENTA

Coordenação
ANA CRISTINA PEREIRA
JOANA BOURGARD

Direcção de arte
SÓNIA MATOS

Imagens de arquivo
BILLY TORRES/RAINFOREST FOUNDATION US
PAUL REDMAN/INUTW