Em Oslo, os bairros têm de funcionar para as pessoas e para o planeta
Para ser neutra em carbono em 2030, Oslo aposta na mobilidade, na eficiência energética, mas também na construção. Pelo caminho, a capital norueguesa está a redefinir o conceito de cidade.
Gabriel Miraldo e Maria Maia (texto e fotografias)
Esta reportagem foi realizada por estudantes de Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social no âmbito do projecto "Jornalismo Climático na Universidade" com o apoio dos EEA Grants
Quando Sofie Hove Stene e o marido compraram casa em Bjørvika, em 2018, ela não existia. Sofia viu apenas uma maquete digital do que poderia vir a ser a sua casa. Nos últimos 20 anos, a área sofreu uma profunda transformação urbanística, substituindo o que era uma zona industrial e portuária, a leste do centro da cidade, junto ao fiorde, por um cartão postal. É aqui que figuram alguns dos mais icónicos edifícios culturais da capital, lado a lado com prédios residenciais e zonas de lazer. Da nova casa de Sofie avista-se a Opera House, inaugurada em 2008, a biblioteca Deichman e o museu MUNCH, que abriram ao público mais recentemente, em 2020 e 2021 respectivamente.
No Verão de 2020, o casal mudou-se de Grunerløkka, um antigo bairro operário a norte de Bjørvika, uma zona cultural jovem e moderna onde se foram multiplicando lojas vintage, restaurantes e cafés. Procuravam um apartamento com construção nova, com comodidades como elevador e garagem, e que os colocasse no centro da rotina urbana.
Mas na altura da decisão, surgiu uma incógnita: será que a nova Oslo que se erguia com vista para o fiorde se iria tornar numa zona empresarial e povoada de turistas? Ou teriam uma vida de bairro, local, onde pudessem fazer crescer a família? “O meu marido estava mais preocupado, mas eu pensei ‘vai correr bem’”.
O casal acabou por decidir avançar para a compra ainda na fase da construção, o que lhes garantia um preço abaixo do mercado. “Havia uma projecção a três dimensões num computador”, lembra Sofie, de 37 anos, onde viu que no seu apartamento os finais de dia iriam trazer-lhe o sol na varanda exterior, um detalhe que a ajudou a imaginar-se em casa.
Nos anos seguintes, numa enorme área equivalente a mais de 100 campos de futebol (cerca de 830 mil m2), seriam construídos mais de 5 mil apartamentos e nasceria um centro empresarial com capacidade de criar mais de 20 mil postos de trabalho.
Olhamos pelas enormes janelas, numa manhã de sol de Fevereiro em Oslo, enquanto Sofie nos guia numa visita pela casa. A família cresceu e o casal tem hoje dois filhos. Um de cinco anos e um bebé de um ano, que dorme a sesta no quarto ao lado da sala onde conversamos.
A vista de casa é desafogada, sem carros a circular por perto, há crianças a brincar na neve do parque infantil do bairro e pouco ruído vindo do exterior graças ao isolamento eficiente das janelas. Em frente ao prédio de Sofie avista-se um grande estaleiro de obras, onde está em construção uma nova área residencial com 246 casas. A cidade tenta preservar a linha de fronteira entre a floresta que circunda Oslo e a área construída, e para isso aposta numa construção densa no centro da cidade, reabilitando áreas sub-aproveitadas.
A construção densificada permite por um lado responder à procura por habitação, que cresce na capital norueguesa, ao mesmo tempo que não esquece as metas climáticas que determinam que Oslo reduza 95% das suas emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Ao construir dentro da mesma área, as distâncias tornam-se mais curtas e os cidadãos deslocam-se facilmente a pé ou de bicicleta, contribuindo para a redução dos impactos ambientais relacionados com os meios de transporte.
Segundo um relatório apresentado pela Organização das Nações Unidas, o impacto actual da construção traduz-se em cerca de 40% do consumo energético global e 30% das emissões de gases de efeito de estufa do mundo.
A descarbonização da indústria da construção também está presente nas metas climáticas de Oslo, propostas pela Câmara. A partir de 2025, todos os projectos de construção levados a cabo pelo município de Oslo respondem a um requisito de zero emissões, através do uso de máquinas de construção eléctricas. E até 2030, toda a indústria da construção em Oslo deve fazer o mesmo.
Até agora, os esforços permitiram que Oslo reduzisse a sua pegada de carbono em 30%, segundo a Agência Norueguesa do Clima. Já Lisboa compromete-se com a neutralidade carbónica até 2030, com uma redução das emissões de carbono, focando-se na transição para energias renováveis, descarbonização dos transportes, aumento de zonas verdes e promoção da economia circular.
Construir para o futuro, agora
À semelhança de bairros lisboetas que outrora foram polos industriais, como Marvila e Braço de Prata, Bjørvika sofreu um período de segregação e abandono antes de, em 2003, ter sido projectada pela Câmara Municipal de Oslo como o “rosto” de uma capital mais moderna e sustentável.
O projecto de Bjørvika foi um dos primeiros empreendimentos da iniciativa norueguesa FutureBuilt, em que o governo, desde 2010, apoia a construção de edifícios que tenham como objectivo principal a eficiência energética, mas também o uso de materiais mais sustentáveis.
Um exemplo é o Vertikal Nydalen, um edifício de 18 andares, revestido a madeira, no qual o aquecimento, o arrefecimento ou a ventilação são assegurados através de um método de construção passiva, fazendo uso de energia geotérmica, painéis fotovoltaicos, um sistema de baixa energia para aquecimento ou arrefecimento e ventilação natural, sendo capaz, assim, de atingir um consumo de energia praticamente neutro.
Este é o primeiro edifício de uso misto naturalmente climatizado da Noruega. O projecto também desempenha um papel importante na requalificação da área envolvente, transformando-a num futuro espaço recreativo acessível ao público e livre de carros.
Através da colaboração entre municípios e profissionais da área da construção, o programa FutureBuilt tem 75 projectos-piloto, tanto públicos como residenciais e comerciais, dos quais fazem parte a biblioteca Deichman e o museu MUNCH. O objectivo é construir 100 projectos piloto que reduzam as emissões de carbono em pelo menos 50% em comparação com as regulamentações actuais e as práticas comuns.
Energia que vem do lixo
O apartamento de Sofie era antigo, mal isolado do frio e fazia disparar a despesa da electricidade no final do mês: pagava cerca de 6 mil coroas norueguesas mensais, equivalente a 500 euros.
Em Bjørvika, viu a conta reduzir substancialmente. O novo apartamento integra um sistema de aquecimento central, energizado pela combustão do lixo, que lhe tem permitido poupar 4700 coroas norueguesas por mês, cerca de 413 euros. “Fora da cidade, do outro lado do rio, há apartamentos antigos com preços muito altos para o aquecimento. Aqui o preço dos apartamentos é mais alto, mas poupa-se no custo de vida”, explica a moradora.
Nos meses de Inverno, a temperatura média em Oslo é de -4 graus Celsius. Em Lisboa, é 11ºC e, no entanto, é na capital portuguesa que se passa mais frio. Portugal está entre os países da União Europeia (UE) onde a população tem maior dificuldade em aquecer as suas casas.
Bairros que “funcionam para as pessoas”
Hoje, Sofie reconhece Bjørvika como um bairro que “funciona para as pessoas”, incluindo estruturas que garantem uma comunidade local activa.
Dá o exemplo do jardim de infância que funciona no edifício em frente ao seu. Aponta para uma zona exterior a céu aberto, encaixada entre dois prédios, onde uma casa de madeira se destaca no recreio. Um espaço estrategicamente projectado para ter exposição solar e que foi uma exigência da própria Câmara Municipal, explica Sofie: “A Câmara disse-lhes: ‘vocês podem construir esse prédio, mas o sol tem que incidir no jardim de infância’”.
A construtora foi obrigada a alterar o projecto inicial e abdicar da construção de alguns apartamentos para que a zona do recreio não ficasse encoberta. “Podem imaginar o custo que foi [para a empresa] perder parte do edifício, porque a luz do sol tinha de incidir [ali].”
Em Oslo, a sustentabilidade da cidade passa por olhar para os espaços públicos, partilhados por todos.
“As ruas podem ser mais do que um meio de chegar a A e B e ser, de facto, um espaço público de qualidade”, defende Alexandra Cruz, 48 anos, arquitecta portuguesa a viver em Oslo há 18 anos. Desde 2015 que é responsável pelo desenvolvimento do conceito, pela coordenação, gestão e implementação do programa da Trienal de Arquitetura de Oslo.
Em 2022, na 8.ª edição deste evento que reúne arquitectos internacionais, profissionais urbanos e um público local, discutiu-se o desenvolvimento sustentável dos bairros na capital. Para Alexandra Cruz, pensar cidades sustentáveis traduz-se em criar bairros que funcionem como “um ecossistema, onde a parte construída se liga com a parte social”.
Uma das medidas centrais do planeamento urbano de Bjørvika foi o desenvolvimento de áreas públicas, a que em norueguês se dá o nome de “bens comuns”.
No projecto para Bjørvika, 40% do espaço do bairro destina-se a parques, praças e ao passeio marítimo de uso público. Junto aos monumentos deste bairro, encontramos também uma área de “praia urbana”, onde famílias e turistas passeiam e os mais corajosos podem nadar nas gélidas águas do mar Báltico e imediatamente usufruir do calor das famosas saunas flutuantes.
Para que isto se possa concretizar é necessário retirar espaço ao automóvel, investindo em transportes alternativos, em infra-estruturas de mobilidade e em programas de consciencialização, refere Nuno Almeida, arquitecto paisagístico e professor universitário na Escola de Arquitetura e Design de Oslo.
O arquitecto português, que vive em Oslo há 12 anos, aponta que o essencial para o futuro sustentável das cidades é a proximidade: “Tentar criar micro redes dentro da cidade para que uma pessoa não tenha de se deslocar meia hora para ir a um jogo de futebol ou a um concerto.”
Ao encurtar as distâncias entre os serviços e as residências, facilita a transição do uso diário do carro para os transportes públicos e outras alternativas, como a bicicleta.
Além disso, ao descolar o porto para sudeste de Bjørvika, a auto-estrada foi transformada em túneis subterrâneos — financiados pelo sistema de portagens de Oslo — e agora a cidade conta apenas com uma estação intermodal principal, a Oslo Central. Houve ainda um grande esforço para integrar a marginal à restante da cidade, garantindo que exista uniformidade em toda a área da cidade defronte para o fiorde.
Uma organização da cidade que tem facilitado a rotina de Sofie Hove Stene. De casa ao emprego são cinco minutos a pé. Para a escola dos filhos outros cinco. A família não precisa de tirar o carro da garagem: “É óptimo. Não usamos o carro nos dias de semana.”
Quando comprou o apartamento novo, Sofie não pensava na sustentabilidade como um critério decisivo. Agora, dá valor às “soluções para o futuro” que este edifício oferece, entre os quais o tratamento do lixo.
O município verifica se o condomínio faz correctamente a separação dos resíduos para reciclagem, caso não o faça, arrisca uma multa que é dividida por todos os condóminos. Se tudo for feito conforme as regras, os resíduos passam por um túnel subterrâneo através de um sistema de aspiração até ao camião que os transportará até à estação de tratamento. Uma parte destes resíduos é queimada para produzir bio-gás, permitindo aquecer os apartamentos do condomínio.
Nuno Almeida assegura que o poder político em Oslo se tem esforçado por desenvolver uma cidade alinhada com as metas climáticas, mas também com as necessidades dos cidadãos. “Muitas vezes nós pensamos que os políticos vêm sempre atrás, mas eu acho que aqui há mesmo esta vontade da parte política."
Alexandra Cruz relembra uma iniciativa que a Câmara de Oslo lançou em 2022, de modo a sensibilizar para a redução da circulação de carros dentro da cidade e fortalecer o sentimento de comunidade. O projecto “Ruas Vivas” foi feito com a colaboração dos moradores e os carros cederam lugar a ruas ocupadas com zonas verdes e estruturas de mobiliário urbano.
No planeamento urbano norueguês, explica Nuno Almeida, a participação pública é “levada a sério”, que trabalhou dez anos como arquitecto paisagista em Lisboa antes de se mudar para Oslo. “Cada vez que se cria um projecto, tem que haver uma abertura à população em volta. Para perceber quem são os utilizadores deste espaço, o que as pessoas querem fazer, quais são as reticências e criar quase uma coisa comum”.
Na Escola de Arquitetura e Design de Oslo, onde lecciona, o desafio de planear uma cidade para o futuro também é proposto anualmente aos alunos. Este ano, o desafio era pensar um parque urbano feito para durar 50 ou 100 anos, tendo o impacto das alterações climáticas em mente. “Como lidamos com a biodiversidade? De que forma podemos superar a ideia antropocêntrica de que tudo existe para o conforto humano? Ou que parte desse equilíbrio deve ser ajustada para levar em conta as outras espécies com as quais coexistimos?”, foram algumas das questões lançadas por Nuno Almeida aos alunos.
Os futuros arquitectos paisagistas realizaram trabalho de campo, incluindo o reconhecimento das áreas circundantes, para garantir que o parque fosse projectado em harmonia com a natureza e integrado na paisagem urbana. “Há muitas soluções sustentáveis e acessíveis,” explica o arquitecto e professor. “É mais económico criar um parque adaptado às mudanças climáticas do que investir em mega-infraestruturas subterrâneas. Com uma única solução, conseguimos resolver milhares de problemas.”
Em Portugal, diz que é preciso maior “iniciativa política”, mas que se “está no bom caminho”. Nuno Almeida aponta como bom exemplo o Parque Gonçalo Ribeiro Telles, localizado na Praça de Espanha, em Lisboa. Este projecto de requalificação, inaugurado em 2021, permitiu substituir uma zona de trânsito por uma praça com 800 árvores de 25 espécies diferentes, com caminhos pedonais e áreas de lazer.
O arquitecto acredita que os jovens podem ser uma força mobilizadora da mudança por estarem despertos para o assunto da ordem do dia, as alterações climáticas: “Todas as gerações anteriores criaram um grande problema que a nova geração vai ter que lidar e, portanto, eles estão, mais do que ninguém, a perceber a dimensão do problema”.
Já a nível político, acrescenta que a visão hoje tem de ser a de que “o espaço público e a questão das alterações climáticas vão ocupar um papel muito mais importante na gestão e no planeamento da cidade do que tiveram até hoje.”
Esta reportagem teve o apoio dos EEA Grants.
Texto Gabriel Miraldo e Maria Maia
Fotografias Vera Moutinho