Amazónia peruana
Estado de emergência permanente
Ana Cristina Pereira (texto) e José Carvalheiro (ilustração e animação)
5 de Setembro de 2024
Desde 2014, 34 indígenas defensores da Amazónia peruana foram mortos. Neste momento, outros 35 estão sob ameaça e 22 foram processados sem fundamento
O anúncio veio logo depois de encontrado o corpo de Mariano Isacama Feliciano, líder da comunidade kakataibo, perto do rio Yurac, na região de Ucayali: os líderes indígenas do Peru declararam estado de emergência permanente.
Tinha 35 anos. A imprensa peruana descreve-o como um destemido dirigente da comunidade de Puerto Azul. Também trabalhava como técnico da Federação Indígena das Comunidades Kakataibos e como mediador da Direcção Regional dos Povos Indígenas do Ministério da Saúde do Peru.
Mariano opunha-se abertamente à exploração ilegal de recursos naturais e ao narcotráfico, que devasta floresta para cultivar folha de coca, montar laboratórios e rasgar pistas de aviação. Tinha recebido várias ameaças através do WhatsApp.
Desaparecera misteriosamente no dia 21 de Junho de 2024. Não foi a polícia, mas a guarda kakataibo que se envolveu nas buscas e o encontrou, no dia 14 de Julho, com um tiro na cabeça e sinais de tortura.
O cenário é de grande insegurança. As comunidades kakataibos encontram-se entre Ucayali e Huánuco, duas das mais violentas regiões do Peru. Criaram grupos de vigilância, que se posicionam em sítios estratégicos para tentar impedir que os narcotraficantes assumam o controlo das suas terras e as convertam num centro de produção de cocaína.
Violência como padrão
A morte de Mariano Isacama Feliciano alarmou outras organizações ambientais e de defesa dos direitos humanos. É uma espécie de confirmação de que, na Amazónia peruana, a atrocidade se tornou padrão. Aliaram-se para denunciar a violência contra os líderes indígenas e exigir uma protecção mais eficaz.
“Temos o direito e o dever de defender as nossas vidas, famílias e territórios”, escreveram num manifesto divulgado no dia 17 de Julho, no qual declaram estado de emergência permanente. “Somos obrigados a exercer o nosso direito à legítima defesa e a utilizar os meios na mesma proporção em que nos atacam e responsabilizamos o Governo pelas consequências.”
Imagem aérea revela a dimensão da destruição da floresta tropical peruana. Fotografia: NASA Earth Observator via Reuters
Imagem aérea revela a dimensão da destruição da floresta tropical peruana. Fotografia: NASA Earth Observator via Reuters
Desde 2014, a Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep), que representa 2439 comunidades do país, contou 34 activistas indígenas assassinados. A violência é desencadeada pela invasão de terras para cultivo ou para a extracção de madeira, ouro, petróleo. Nalguns casos, cruza-se com a produção de coca e/ou tráfico de cocaína.
Nas regiões de Pasco, Cusco, Loreto, Ucayali e San Martín, no final de Agosto deste ano a Aidesep somava 35 activistas sob ameaça. Nas regiões de Junín, Pasco, Huánuco e Cusco, 22 denunciados e/ou processados sem fundamento. A base de dados vai sendo actualizada à medida que as situações vão chegando ao conhecimento daquela organização nacional.
Nem sempre é invasão. Na viragem do século, o Peru abriu caminho à criação de florestas de produção permanente. Não raras vezes, as concessões sobrepõem-se aos territórios dos povos indígenas. Noutras, não são respeitadas.
O país ainda não concluiu a demarcação legal de terras indígenas, iniciada há 50 anos. Sem os títulos de propriedade comunitária nas mãos, é mais difícil impedir o avanço de quem só está interessado em extrair recursos naturais.
Julio Cusurichi Palacios, do conselho directivo da Aidesep, desconfia de que a demora não é inocente. “Estas demoras fazem com que se possa responder aos grandes interesses que extraem recursos”, interpreta. “As grandes indústrias têm mais tempo para solicitar concessões petrolíferas, concessões mineiras, concessões madeireiras... Com esta lentidão, também o tráfico de droga segue o seu curso sem problemas. Entretanto, fica em risco não só a existência destas comunidades indígenas, mas também a vida dos seus líderes.”
Dá um exemplo esclarecedor: “Na região de Ucayali, há líderes que têm feito uma forte campanha para defender o seu território da acção de empresas especializadas na produção de óleo de palma, e estão ameaçados de morte.” Julio Cusurichi traça o retrato durante uma videochamada: “O que se passa é que esses irmãos estão a defender estes territórios e estas empresas estão a entrar com muita força e não há outra justificação. Mas dizem que são eles que estão a ameaçar e isso pode levar à sua criminalização.”
Flor de Ucayali, Peru. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Flor de Ucayali, Peru. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Nesta zona o problema está no avanço dos produtores de óleo de palma. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Nesta zona o problema está no avanço dos produtores de óleo de palma. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Grupo de indígenas que se auto-organizam para defender a floresta, em Flor de Ucayali, Peru. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Grupo de indígenas que se auto-organizam para defender a floresta, em Flor de Ucayali, Peru. Fotografias: Dan Collyns, Reuters
Miguel Guimaraes, líder da comunidade de Flor de Ucayali e vice-presidente da Aidesep, é um dos alvos recorrentes de ameaças de morte. Em Abril deste ano, foram à sua casa, arrombaram portas, partiram janelas e escreveram na fachada: “Não viverá”. Aquele dirigente tinha denunciado uma empresa por desmatar sete mil hectares de floresta, com a suposta conivência das autoridades, e tinha rejeitado as tentativas de difamar e dividir os líderes que denunciam as consequências da exploração agrícola extensiva.
Também não escapa a esta onda Julio Cusurichi, figura maior do activismo peruano, a quem, em 2007, foi atribuído o Prémio Ambiental Goldman, espécie de Nobel do ambiente, pelo papel que tem desempenhado na criação de reservas para os povos indígenas que preferem viver sem contacto com outros povos (isolamento voluntário). Também se viu enleado em acusações.
A reputação como arma
Aquele líder de etnia shipibo, antes presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), põe o seu caso nestes termos: “Fui denunciado por uma empresa de madeiras por defender os povos indígenas da região de Madre de Dios, na fronteira com o estado do Acre, no Brasil.”
Há anos que reclamava a expansão da reserva dos mashcos piros, que vivem em isolamento voluntário. Em 2016, um estudo deu-lhe razão, mas, em 2020, o Estado decidiu atribuir uma licença para extrair madeira numa área contígua.
Naquela ocasião, Julio Cusurichi advertiu as autoridades sobre o risco que tal representava para a sobrevivência daquele povo, que não tem o sistema imunitário preparado para sobreviver ao contacto com outras pessoas. A empresa processou-o e à organização por violarem o seu direito à imagem, à honra e ao bom-nome. Em 2022, as decisões judiciais favoreceram-na, condenando a Fenamad e Julio Cusurichi a publicarem um texto incriminatório e a pagar multas de mais de 2000 dólares (cerca de 1800 euros).
Os redactores especiais das Nações Unidas viram ali uma estratégia de criminalização. No relatório que produziram em 2023, manifestaram dois tipos de inquietação: “Estamos preocupados que a alegação de danos à reputação da empresa tenha um efeito intimidatório, enviando sinais à Fenamad e a outros grupos de defesa de que o seu trabalho como defensores dos direitos humanos e ambientais não são valorizados nem protegidos pelo poder judicial e, na verdade, podem levar a uma resposta punitiva. Estamos particularmente preocupados com o facto de processos judiciais poderem constituir uma estratégia de litígio contra a participação pública, com o objectivo de restringir a capacidade da organização de realizar as suas actividades legítimas de direitos humanos, prejudicando a sua reputação e forçando-a a cessar as suas actividades.”
O Ministério da Cultura do Peru propôs classificar como território indígena uma parcela da área florestal de produção permanente, mas, para já, a empresa mantém a concessão. Tem dito que segue protocolos para evitar encontros com os mashcos piros.
Em Agosto de 2022, um trabalhador da empresa foi morto por uma flecha lançada por um mashco piro. Já em Julho deste ano, a organização não governamental Survival International divulgou um conjunto de imagens de vários membros daquela comunidade, que avistou “a poucos quilómetros do local onde os madeireiros estão prestes a iniciar operações”.
Desde 2021, há um mecanismo intersectorial para a protecção dos defensores dos direitos humanos, do Ministério da Justiça e Direitos Humanos (Minjusdh). A sua acção não parece muito eficaz a Julio Cusurichi. “Sim, o Ministério da Justiça tem uma lista de dirigentes com protecção.” Alguns dirigentes que a integravam foram mortos. Outros estão sob ameaça e nem conseguem entrar.
“No meu caso, negaram”, conta. “Tenho esta denúncia que fizeram contra mim, mas não chega para me levarem a sério. Dizem que tenho de ter provas de que estou sob ameaça. Tenho de ter provas de que dispararam contra mim, por exemplo.” Só depois de morto Mariano Isacama Feliciano lhes poderia apresentar uma prova dessas.
FICHA TÉCNICA
Texto
ANA CRISTINA PEREIRA
Ilustração e Animação
JOSÉ CARVALHEIRO
Coordenação
ANA CRISTINA PEREIRA
JOANA BOURGARD
Direcção de arte
SÓNIA MATOS