Agate
de Sousa
Salto em comprimento

Marco Vaza (texto), Joana Gonçalves (vídeo) e José Carvalheiro (motion design)
24 de Julho 2024

Foi durante o confinamento, sem a pressão da competição, que a atleta nascida em São Tomé deu, literalmente, o salto. Depois do bronze nos Europeus de Roma, vai estrear-se em Jogos Olímpicos.

Uma má nota. Foi isto que puxou Agate de Sousa para o atletismo. É ela própria que conta a história desse início em São Tomé e Príncipe, país onde nasceu. “No décimo ano, temos Educação Física e, num dos testes que tive de fazer, o lançamento do peso, tive um zero – fiz mal o movimento, não sabia. O professor levou-nos ao Estádio Nacional para repetir o teste. Estava lá outro treinador, que viu e gostou do meu lançamento. E foi assim que comecei no atletismo. Não pensava em correr, fazer saltos, nada. Gostava de lançar porque chegava ao estádio e não tinha de correr. Era só uma voltinha e agarrar no peso.”

Agate de Sousa já não está no décimo ano, já não está em São Tomé e Príncipe e já não faz lançamento do peso. Nos Jogos Olímpicos de Paris, a atleta de 24 anos vai representar Portugal no salto em comprimento já com uma medalha importante no currículo, um bronze nos recentes campeonatos da Europa em Roma, e com um recorde pessoal acima dos sete metros (7,03m) feito em 2023. Não é recorde de Portugal porque esse ainda é de Naide Gomes (7,12m, de 2008), nem podia ser porque Agate ainda não tinha passaporte português - mas é recorde de São Tomé e Príncipe.

Autorizada a competir por Portugal desde 17 de Maio de 2024, depois de um processo de naturalização que demorou cinco anos, já saltou 6,91m, que lhe valeu o bronze em Roma e que faz dela a sétima melhor do ano.

Quando estava em São Tomé não encarava o atletismo de modo muito sério

Agate de Sousa

Será uma medalha em Paris um salto demasiado longo para Agate de Sousa, tendo em conta que a concorrência mais forte salta consistentemente acima dos sete metros e a portuguesa só o fez uma vez? Deixamos aqui uma frase do seu super-confiante treinador, Mário Aníbal, ex-atleta e ainda o recordista nacional do decatlo: “Se elas [as favoritas] se descuidarem, a Agate é campeã olímpica. É difícil elas distraírem-se, mas, às vezes, isso acontece. Se tivermos essa janela de oportunidade, ela não a vai desperdiçar.”

A Agate tem características competitivas que são brutais

Mário Aníbal

Estrutura

Quase um mês depois dos Europeus de Roma, o programa de treino de Agate de Sousa no Centro de Alto Rendimento no Jamor passa por recuperar o ritmo de corrida. Como explica Mário Aníbal, a atleta tem saltado pouco devido a um problema no joelho, que já se tinha manifestado durante os Europeus. “Até aos Jogos, os treinos vão ser sempre assim”, salienta o treinador. “Estrutura e ritmo de corrida, para a Agate ter noção de quando é que deve acelerar, com é que se deve colocar, basicamente tirar sensações do salto, porque ela tem saltado muito pouco. Este ano só tem quatro competições, por esta altura já devia ter dez.”

É um treino de muita repetição e precisão. O treinador vai puxando para a frente e para trás a zona de chamada, a atleta vai ajustando todas as passadas e o momento em que salta. A partir da tábua de chamada, Agate vai recuando enquanto conta os passos e deixa alguns objectos pelo caminho para lhe servirem de referência. Alguns saltos são medidos, outros não. Mário Aníbal grava todos os saltos com um telemóvel e depois mostra as imagens à sua pupila para lhe dizer o que está bem e o que está mal.

Claro que um salto não é apenas correr cerca de 40 metros, saltar e aterrar na caixa de areia. Mário Aníbal fala de uma “estrutura de salto” que tem de estar bem oleada para poder ser reproduzida em competição. “Tem a ver com o número de passadas. A Agate salta com 16 passadas, neste momento estamos a treinar com 10, 12. São os momentos do salto, o momento em que tem de deixar de empurrar para se colocar, depois acelerar, depois aproximar… São fases do salto que, no treino, são para ser pensadas, na prova já não é para pensar, é para correr a matar e saltar.”

É como reconstruir um puzzle. Trabalha-se para voltar a juntar todas as peças e ter o salto completo. E ao final da manhã, diz Agate, as sensações são boas. “O treino correu bem. Nas últimas semanas não estava a conseguir treinar. Conseguir treinar sem dores já é uma grande vitória.”

“Um buraco no chão”

Depois do tal zero no lançamento do peso, a vida de Agate de Sousa voltou a dar um salto quando tinha 19 anos. Veio para Portugal, para estudar Economia e fazer atletismo. Já não era uma lançadora, mas uma saltadora. Mudara-se para o comprimento, mesmo não tendo pista para treinar em São Tomé. “Não havia pistas de tartan e o meu treinador improvisou, cavou um buraco no chão. Tinha pedras, era em declive, nem sequer era plano. Foi assim que comecei”, recorda. Pouco depois, recebeu uma bolsa de solidariedade olímpica para poder viver e treinar em Portugal, sem pedras e declives.

Naquela altura não havia uma pista de tartan e o meu treinador decidiu improvisar com uma caixa

Agate de Sousa

É nesta altura que a sua vida se cruza com Mário Aníbal, cuja carreira com atleta das provas combinadas evoluiu para uma carreira como treinador multidisciplinar – neste momento, trabalha com um grupo de saltos, que incluiu, entre outros Gerson Baldé, que falhou a qualificação olímpica por muito pouco, e Nelson Évora, o supercampeão português do triplo que ainda quer estar em mais uma grande competição. “Cheguei aqui [ao CAR] um dia e encontrei-a”, recorda o treinador. “Foi mesmo assim, estava sentada num banquinho. […] Super-envergonhada – ainda hoje é um bocado mas eu estou puxar por ela.”

Não foi amor desportivo à primeira vista. “Se eu olhei para ela e vi uma atleta com grande potencial? Não. No início, não lhe achei graça desportiva nenhuma. O tempo foi passando e, ao fim de três, quatro meses, comecei a achar-lhe alguma graça. Ela vinha formatada de uma forma diferente, era muito selvagem e instintiva.” Por perto, Agate sorri enquanto ouve as palavras do treinador e, depois, também fala um pouco desses primeiros tempos. “A adaptação foi fácil. Comecei a viver no CAR e senti-me em casa, sem pensar no que ficou em São Tomé. Nos treinos, não senti muita diferença, embora o meu treinador tenha dito que…” E sai um sorriso envergonhado.

A pandemia ajudou-nos imenso. Passámos meses e meses só a treinar

Mário Aníbal

Só que aconteceu a pandemia e tudo ficou em suspenso, incluindo o calendário desportivo nacional e internacional. Muitos atletas sofreram com a falta de competição, mas foi isso que levou Agate a dar mais um salto. “Com tempo e sem pressão”, resume a atleta.

Mário Aníbal elabora um pouco mais. “A pandemia ajudou-nos imenso. Ela não competia, só treinava. Nós tivemos imenso tempo em que não havia responsabilidade de fazer um plano de treino para competições. Aqui, passámos meses e meses só a treinar. E rapidamente ela começou a desenvolver-se. Juntámos a parte técnica com a velocidade. Na primeira prova que fizemos, fez 6,68m. Estava o caminho aberto.”

A evolução foi espectacular. Quando chegou a Portugal em 2019, tinha 6,05m de recorde pessoal. No ano seguinte, chegou aos 6,26m e, em 2021, deu um salto de quase 50 centímetros, para os tais 6,68m. Em 2022, 6,81m, em 2023, 7,03m – quarta melhor mundial desse ano. Resumindo, em quatro anos, melhorou quase um metro.

“Ela estava louca para fazer sete metros, mas verdade seja deita: nós não trabalhamos para sete metros. Quando fez 6,40m, estávamos a treinar para 6,20m… A Agate sempre acrescentou 20 centímetros ao que era o objectivo. Isto é fruto do talento dela. Neste momento, é uma atleta de 6,90m, ou seja, pode fazer em breve 7,10m, 7,15m, e será uma atleta de sete metros.”

Quando isso acontecer, é bem provável que deixe para trás o recorde nacional de Naide Gomes, outra saltadora de elite do atletismo português que também nasceu em São Tomé e que também teve o seu nascimento desportivo em Portugal. Naide ainda competiu em Sydney 2000 por São Tomé (nos 100m barreiras), mas já foi ao heptatlo por Portugal em Atenas 2004, antes de se focar a 100 por cento no comprimento – nunca chegou a uma medalha olímpica, mas teve medalhas em Mundiais e Europeus, ao ar livre e em pista coberta.

Agate de Sousa conquistou o segundo lugar no Meeting de Londres 2024, que integra o calendário da Liga Diamante

Esta foi a última prova da atleta portuguesa antes dos Jogos Olímpicos de Paris

Terminou com um salto de 6,75 metros, apenas atrás da alemã Malaika Mihambo

“Que nem uma maluca”

É inevitável pensar em Agate como a sucessora de Naide. Para a futura olímpica, claro, a campeã do passado é uma referência e uma fonte de informação. “Quando comecei a fazer comprimento em São Tomé, via muitos vídeos no Youtube, da Naide e de outras, para ver como era saltar em pista. É a pessoa em quem eu sempre me inspirei e até hoje, sempre que eu tenho alguma questão, falo com ela. Porque a Naide já viveu aquilo que eu quero viver, já chegou onde eu quero chegar.”

Em Roma teve um primeiro gosto do que é ser uma das melhores. Já com a naturalização concluída, cinco anos depois de chegar a Portugal, e com a autorização da World Athletics na mão, chegou a um brilhante terceiro lugar, com 6,91m. “Não estava nervosa e não estava ansiosa, nunca tinha ganho uma medalha. Vivi momentos de pressão, mas entrei com 6,87m, garanti o primeiro salto e consegui a ‘qualificação’ para os últimos três. Depois, a francesa ultrapassou-me e passou por mim como que a dizer, ‘passei-te’. Não sei se foi com essa intenção, mas foi assim que eu entendi e passei para a frente no salto seguinte.”

De fora, na bancada, Mário Aníbal via o trabalho dos últimos anos ser validado com um grande resultado numa grande competição. “É sempre o problema das medalhas. O nosso objectivo era ir à final, que é muito fácil não acontecer. [Na final] Eu estava super-confiante. Quando a Malaika Miambo [saltadora alemã que ficou com o ouro] fez 7,22m, eu disse-lhe para esquecer o ouro, porque havia mais duas medalhas de ouro. No final, ela disse-me que nem tinha ouvido aquilo e que queria ir na mesma atrás dela, a Agate é assim.”

Na final ninguém se pode descuidar, porque se não ela é campeã olímpica

Mário Aníbal

Na estreia olímpica em Paris, logo se verá. Pode apanhar as adversárias distraídas e ficar com o ouro, como diz Mário Aníbal. Isso poderá acontecer, ou não. Mas o que é garantido é que, tal como em Roma, não vai ficar nervosa ou intranquila. E que vai entrar com a fome competitiva de ir conquistando centímetros para poder ganhar lugares. Sem pensar muito no assunto, nem no treino que ficou para trás, nas fases do salto o tudo o resto. “Na competição, a única coisa que está na minha mente é correr rápido e, nos últimos dez metros, entrar que nem uma maluca.”

Créditos

Reportagem
Joana Gonçalves
Marco Vaza

Motion design
José Carvalheiro

Desenvolvimento web
Francisco Lopes

Direcção de arte
Sónia Matos

Agradecimento
Hugo Gomes