“A solidão é um grito mudo”

Para que os pedidos de ajuda se possam fazer ouvir, a Fundação ”la Caixa”, com o apoio do BPI, impulsiona o Programa Sempre Acompanhados.

“Fala baixo. Ouve alto”.

A frase pode ler-se num quadro vazio que se encontra numa das salas do Centro Social Paroquial do Campo Grande. Numa sociedade em que o ruído é excessivo e os mais velhos são muitas vezes esquecidos no silêncio, ter a capacidade de ouvir, de acompanhar, de olhar para o outro e ter empatia pode ser um bem raro.

O Programa Sempre Acompanhados, projecto da Fundação ”la Caixa” em parceria com o BPI, tem como um dos principais objectivos combater a solidão entre a população mais idosa. À entrada do centro paroquial, que gere a iniciativa em Lisboa, está um painel com mensagens escritas com diferentes letras e cores. Demoramos ali vários minutos enquanto a directora executiva, Cristina Pimentel, lê as frases uma a uma: “Graças ao Programa Sempre Acompanhados voltei a ter esperança”; “A solidão mata”; “Respeito e dignidade”; “A vida é uma escola de aprendizagem”; “A solidão é um grito mudo que quero que me ouçam”; “Onde há solidão também há resiliência”, entre muitas outras.

Cristina Pimentel, directora executiva do Centro Social Paroquial do Campo Grande

Cristina Pimentel, directora executiva do Centro Social Paroquial do Campo Grande

Por vezes, é mais fácil expressar o que sentimos por escrito e nem sempre os idosos são capazes de admitir que precisam de ajuda e se sentem sozinhos.

Associação de Moradores do Campo Grande

Associação de Moradores do Campo Grande

Na sociedade do “não há tempo”, “não posso”, “tenho muito trabalho”, quem está numa fase da vida mais avançada pode pensar que não tem o direito de incomodar, mesmo com aqueles que lhes são mais próximos. Passam os minutos, as horas, os dias… e a solidão chega. Como sublinha a directora executiva, “existe um preconceito social que obriga as pessoas a assumir uma postura de autonomia e autossuficiência, como se fossem uma fortaleza.” E depois há quem esteja acompanhado de muitas pessoas e se sinta só.

“É o estar só na multidão. Um flagelo deste tempo, algo transversal a todas as gerações”.

Mas esta não é apenas uma estória sobre solidão, é também sobre uma mulher de 87 anos, de lenço ao pescoço e impecavelmente maquilhada, que tem como filhos um “rapaz” e uma “rapariga”, de 62 e 66 anos, três netos e uma bisneta com 12 dias. Luísa Soares faz-nos pensar que gostaríamos de chegar à sua idade tão autónomos e positivos como ela.

Ainda há um rasto de juventude em Luísa, que um dia foi professora de corte e bordados no centro de Lisboa. “É uma profissão quase desaparecida, não é? Antigamente, as meninas não iam estudar e os pais compravam-lhes uma máquina de costurar e quem a tivesse tinha direito a aulas para aprender a cortar e costurar a sua própria roupa”, explica.

Luísa vive sozinha e diz que trata de muitas coisas por sua iniciativa. Por exemplo, marca consultas no médico sem ajuda, e foi ela própria que procurou a ajuda no centro paroquial quando se sentiu mais triste, depois da morte do marido, há oito anos, e após ter estado a cuidar do companheiro de uma vida que sofria da doença de alzheimer.

Luísa Soares procurou sozinha a ajuda do Programa Sempre Acompanhados

Luísa Soares procurou sozinha a ajuda do Programa Sempre Acompanhados

Luísa Soares, de 87 anos, ainda vive sozinha

Luísa Soares, de 87 anos, ainda vive sozinha

Luísa gosta de ouvir rádio, ler e pintar

Luísa gosta de ouvir rádio, ler e pintar

Luísa Soares, 87 anos, acompanhada por Catarina Castro, assistente social 

Luísa Soares, 87 anos, acompanhada por Catarina Castro, assistente social 

"Quando partilhamos, entendemos que não somos os únicos a sentir estas emoções"

Duas a três vezes por semana participa nas actividades do Programa Sempre Acompanhados, que diz ser “o suficiente porque também gosto de ter o meu espaço em casa”. Vão buscá-la numa carrinha porque já tem dificuldade em caminhar numa Lisboa “muito agitada” que em nada tem a ver com os tempos em que era jovem.

“A companhia é fundamental. Trabalhamos muito a questão não só do sentido da vida, mas também da companhia que as pessoas estão dispostas a ter. Não é a semana toda, não será o tempo inteiro, mas poderá haver momentos em que é importante acrescentar valor, vida, qualidade e companhia.”, realça Dina Bertolo, coordenadora do Sempre Acompanhados nas freguesias de Alvalade e Olivais. “Há este cuidado que permite a criação de um plano de intervenção especializado e individualizado, com a parceria de todas as instituições que temos ao nosso lado”, como a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia.

Dina Bertolo, coordenadora do Programa Sempre Acompanhados no Centro Social Paroquial do Campo Grande

Dina Bertolo, coordenadora do Programa Sempre Acompanhados no Centro Social Paroquial do Campo Grande

Das actividades em que tem participado, Luísa Soares gostou mais do passeio de riquexó com a filha, mas também da visita ao Museu de Arte Antiga, onde a exposição de ourivesaria a fez recuar até ao tempo em que o marido trabalhava como gravador joalheiro. Sentir-se estimulada intelectualmente e participar nos grupos temáticos de apoio é algo que igualmente valoriza.

A psicóloga Ana Inácio explica como tudo acontece: “A ideia é partilhar através das histórias e, quando partilhamos, entendemos que não somos os únicos a sentir estas emoções. Falamos também do sentido da vida, porque é muito interessante ter um projecto de vida para minimizar a solidão, falamos do compromisso que temos para nós próprios, das forças psicológicas que nos levam a sair da solidão, com sabedoria, coragem e curiosidade”.

Ana Inácio, psicóloga

Ana Inácio, psicóloga

E qual é o seu projecto de vida, Dona Luísa? “Todos os dias penso: ‘hoje, vou realizar isto’. Umas vezes consigo, outras não, mas lá vou modificando uma peça de roupa com dificuldade”. Um dia de cada vez, mas sempre ocupada, gosta da organização, trata da casa, ainda vai às compras e à farmácia, entretém-se a colorir livros, conversa ao telefone com os filhos e sobrinhos, e gosta mais de ouvir rádio do que ver televisão. A última vez que se dedicou a um livro “o tema era pesado”: a I Guerra Mundial. Quase com 90 anos também usa a Internet e redes sociais. “É importante porque nos abre ao mundo e também vou pedir ajuda lá ao Doutor Google", diz.

Mas, afinal, mais do que o objectivo ou projecto de vida, o mais importante é o caminho que se faz e traça, tal como diz Cristina Pimentel ao citar o poeta espanhol do século XIX, Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” (“Caminhante, não há caminho, o caminho faz-se caminhando", em português).

Catarina Castro, a assistente social que acompanha Luísa, lembra quando conheceu a lisboeta que gosta de saber sempre mais. “Quando chegou até nós, disse que precisava de uma resposta para não estar sozinha em casa. E nós, realmente, ajudamos neste processo. A construção de um tal projecto de vida, não é?”.

Um caminho passo-a-passo em que a presença dos outros faz toda a diferença.

Catarina lembra o quanto foi importante a presença de duas voluntárias, estudantes universitárias, na vida desta mulher com quase 90 anos. Já a antiga professora das "costureitinhas" explica que “foi muito bom porque eram meninas muito novas. Elas sabiam coisas que eu não sei, mas elas também não sabiam coisas que eu sei. E foi muito interessante aquela interação ali. Era como se fossemos família, falávamos de tudo – de tudo mesmo, de política, de futebol, de experiências minhas quando eu era da idade delas ou mais nova ainda”.

Sempre (bem) acompanhados

O Programa Sempre Acompanhados teve início em Barcelona, há dez anos. Expandiu-se para Madrid e, actualmente, está presente em várias províncias espanholas.

Em 2022, chegou a Portugal. Actualmente, acompanha já quase 500 pessoas em Lisboa e no Porto, o que representa um aumento de 43% face a 2023 só para os primeiros nove meses de 2024.

Um dos principais objectivos da iniciativa é envolver os cidadãos e a comunidade local, criando alianças e redes de cooperação. “O programa diferencia-se por não encarar a idade sénior como um bolo todo igual. Centra-se nas necessidades individuais de cada pessoa consoante as faixas etárias, porque ter entre 70 a 80 anos é diferente de ter entre 80 a 90. As pessoas são todas diferentes. Umas estão com dificuldades cognitivas maiores, outras menos. A terceira idade são quase 50 anos de vida, nos dias de hoje”, sublinha Filipa Abecasis, gestora social para Portugal da Fundação ”la Caixa”.

68,94%

Percentagem de participantes que percepcionam uma melhoria no seu estado emocional logo após seis meses de intervenção, com os benefícios a manterem-se até ao final do programa. Além disso, os participantes tornam-se mais autoconfiantes, melhoram a sua capacidade de lidar com a solidão, desenvolvem um humor mais positivo, ampliam a sua rede social e aumentam o envolvimento com a comunidade.

O sucesso do programa, tanto em Portugal quanto em Espanha, é possível graças à colaboração de 638 entidades sociais, mais de 200 profissionais e 300 voluntários. Ao longo deste ano, foram impactadas mais de 10 mil pessoas e promovidas mais de 400 actividades comunitárias, desde excursões em grupo, workshops, actividades artesanais, palestras, encontros e um ciclo de formação sobre solidão dirigido a profissionais.

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Luísa Soares, de 87 anos, e Maria Cecília Dias, de 71 anos, voluntária do Programa Sempre Acompanhados

Luísa Soares, de 87 anos, e Maria Cecília Dias, de 71 anos, voluntária do Programa Sempre Acompanhados

“O principal objectivo é a humanização”

Quem faz voluntariado sabe que “existe sempre uma troca entre dar e receber, uma ajuda permanente”. As palavras são de Maria Cecília Dias, 71 anos, voluntária do Programa Sempre Acompanhados. “O principal objectivo é a humanização. É importante, para colmatar e mitigar a solidão, ouvir e entender as pessoas, haver empatia entre quem está a precisar e quem está disponível para ajudar”, sublinha.

Nasceu no Algarve, é viúva há 17 anos e, desde essa altura, quando regressou da Guarda para Lisboa, vive sozinha. “Eu sou um bocadinho mexida, portanto, não devo ter tempo de solidão. Quando não tenho nada para fazer, faço doces, por exemplo, bolachas para os meus netos, ou cozinho para os meus filhos”, explica. Foi professora, e, “durante oito anos, leccionei História. Depois, fiz uma pós-graduação em Ciências Instrumentais e Arquivo, fui para o Arquivo Distrital e, em Lisboa estive, na Torre do Tombo”.

Desde que se reformou, Maria Cecília faz voluntariado e considera que a sociedade está, actualmente, “a chegar à conclusão da importância do idoso”, ainda que haja famílias que marginalizam os mais velhos. “As pessoas vão de férias e, peço desculpa, despacham-nos para o sítio mais próximo que lhes dá mais jeito. Se estão no hospital, deixam-no lá ficar sine dia…”, desabafa.

“Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”

(“Caminhante, não há caminho, o caminho faz-se andando”).

- Antonio Machado, poeta espanhol do século XIX

O Programa Sempre Acompanhados tem alcançado um amplo sucesso ao promover e conseguir uma mudança na vida das pessoas e na forma como estas encaram a solidão. As frases do mural à entrada do Centro Social Paroquial do Campo Grande “não foram escritas ao acaso”, como explica Cristina Pimentel.

“Todos quando escrevem sobre o programa referem o que mudou verdadeiramente na sua vida: a facilidade de interagir com os outros, de encontrar um caminho e de ter uma perspectiva de vida. Porque estar sozinho nem sempre representa estar só, pode ser uma opção e uma opção feliz.”

CONTEÚDO COMERCIAL