IN MEMORIAM
Por Rui Araújo
“Este protesto é pela desmemória (para não dizer outra coisa…) do ‘PÚBLICO’, que ignorou a morte de duas figuras há muito desaparecidas das atenções dos ‘media’, mas que em vida foram marcantes – e cada uma à sua medida.
Um foi o jornalista João Coito, seguramente um dos grandes jornalistas portugueses dos últimos 50 anos. Nem quero crer que o ‘esquecimento’ do ‘PÚBLICO’ (nem uma breve!...) se deva a razões ideológicas!...
Até porque no extremo ideológico contrário de João Coito se encontrava a outra omissão do PÚBLICO’, a médica Julieta Gandra, falecida nessa mesmo dia. Cuja ‘importância’ histórica está só nisto: incriminada pela PIDE em 1959 foi condenada no primeiro julgamento político do nacionalismo angolano moderno – condenação essa que mobilizou a atenção e a solidariedade internacional como uma das vítimas da ditadura salazarista. A ponto de Julieta Gandra haver sido adoptada pela Amnistia Internacional como prisioneira de consciência em 1964. Mário Soares seria o outro português a quem a organização dos direitos humanos concedeu o mesmo estatuto durante o salazarismo.
Eu sei, todos sabemos que foi um dia de duas outras mortes bem mais mais ‘mediáticas’ (e, atenção, merecedoras do destaque que lhes foi dado!). Mas, que diabo!, ninguém na Redacção do ‘PÚBLICO’ foi capaz de redigir duas linhas que fossem em memória de João Coito e Julieta Gandra?!...
Nem que fosse para noticiar a hora e o local dos respectivos funerais… Mais gente ficaria a saber e, seguramente, mais gente poderia ter-lhes prestado, pessoalmente, a homenagem merecida”, escreve José Mário Costa, leitor, ex-jornalista do PÚBLICO e um dos autores do Livro de Estilo do jornal, antes de acrescentar: “Segue este outro protesto do angolano Adolfo Maria. Talvez valesse a pena distribuí-lo por essa hoje tão desmemoriada Redacção do ‘PÚBLICO’”.
Eis o comentário de Adolfo Maria: “A MORTE DE JULIETA GANDRA NÃO FOI NOTÍCIA – Não foi notícia, na comunicação social portuguesa a morte de Julieta Gandra, a médica portuguesa incriminada pela PIDE em 1959 e condenada no primeiro julgamento político do nacionalismo angolano moderno, o chamado ‘processo dos Cinquenta’ onde a par de muitos militantes angolanos figuravam alguns portugueses como António Veloso, Calazans Duarte e Julieta Gandra, que foram deportados para cadeias em Portugal, tendo os angolanos sido deportados para Cabo Verde, onde ficaram internados no campo de concentração do Tarrafal que assim reabria as suas portas em 1960, agora para outros presos políticos, os angolanos.
O falecimento de Julieta Gandra não foi notícia para jornais, rádios ou televisões de Portugal. Apenas a SIC passou em rodapé uma breve informação. Outras pessoas, alguma de bem menor envergadura que J. Gandra preencheram o obituário da comunicação social portuguesa.
Nos anos 50 do século XX, Julieta Gandra, ginecologista (especialidade raríssima na Luanda de então) atendia no seu consultório da Baixa as clientes da sociedade colonial, tirando daí os seus proventos, e, nos musseques, atendia em modesto consultório, a preço simbólico, as mulheres desses bairros suburbanos. Simultaneamente participava em actividades do Cine-Clube e da Sociedade Cultural de Angola realizando também actividade política em organização clandestina do nacionalismo angolano. Por isso foi presa pela polícia do regime salazarista, condenada a pesada pena de prisão, internada em cadeias de Portugal. Quer nos interrogatórios da PIDE, quer nas cadeias, portou-se com uma dignidade exemplar. Em 1964 foi considerada a presa do ano pela Amnistia Internacional
Esta breve resenha da vida cívica de Julieta Gandra cabia em qualquer jornal ou bloco informativo de rádio ou televisão, mas os profissionais da comunicação social, sem brio nem remorsos, omitem uma curta e última referência a esta médica portuguesa que foi marco na luta pela liberdade da Mulher e dos Povos.”
Solicitei um esclarecimento ao director.
“Infelizmente nem sempre o espaço físico do jornal permite dar notícia de tudo. Nesse dia foi necessário mudar duas vezes a distribuição de publicidade no jornal (fazendo desaparecer, por exemplo, a fotografia das centrais) para conseguir arranjar mais espaço para as secções Portugal e Mundo. Houve opções a fazer e muita informação que fomos dando ao longo do dia no Última Hora não pode ser retomada na edição impressa.
No caso concreto dessas duas mortes não houve nenhuma falha de memória, pois os editores conheciam tanto João Coito como Julieta Gandra. Sem possibilidades de responder de forma adequada, no dia seguinte, a esses dois desaparecimentos, foi debatida a hipótese de encontrar quem escrevesse, nos dias seguintes, um obituário de qualidade. Trata-se de uma fórmula habitual na imprensa anglo-saxónica, que já adoptámos por mais de uma vez no P2, e que permite tratar a morte de figuras menos conhecidas do grande público sem as limitar a um curto registo em cima do acontecimento, antes acrescentando valor, mesmo que publicando os textos mais tarde, às semanas depois. No momento em que respondo ao Provedor não sei se já se encontrou alguém para realizar esses trabalhos”, respondeu José Manuel Fernandes.
As justificações estão dadas.
O director do PÚBLICO garante que “não houve nenhuma falha de memória”. Os desaparecimentos não terão sido noticiados por falta de espaço.
Como não foi possível “responder de forma adequada” no dia a seguir, “foi debatida a hipótese de encontrar quem escrevesse, nos dias seguintes”, acrescenta José Manuel Fernandes. Mas o “obituário de qualidade” previsto também não foi feito.
Conclusão: o PÚBLICO nada fez.
Só resta, portanto, ao provedor invocar o bom velho ditado português: “mais vale tarde do que nunca”...
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