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PROVEDOR DO LEITOR DO PÚBLICO
 
Rui Araújo é o actual Provedor do Leitor
Tomou posse a 1 de Janeiro de 2006
 

TRIBUNAL PÚBLICO
Por Rui Araújo

"Registei com muito agrado a posição que tomou sobre o tratamento que o PÚBLICO deu ao caso do ex-cabo da GNR acusado de homicídio em Santa Comba Dão. Só posso, portanto, lamentar incomodá-lo outra vez com o mesmo assunto.

Às 16h32 de 31/7/2007 foi publicada no PÚBLICO on-line uma notícia assinada por Graça Barbosa Ribeiro cujo título é ‘Homicida de Santa Comba Dão condenado a 25
anos de prisão
’. O antetítulo da notícia (aliás digno do jornal O Crime) é ‘Matou três jovens’.

No meu anterior e-mail sobre este assunto, talvez ingenuamente, escrevi: ‘Dispenso-me de invocar normas constitucionais e legais para demonstrar que no direito português vigora o princípio segundo o qual todos são considerados inocentes até que transite em julgado uma
decisão judicial condenatória.
’ Pelos vistos não devia ter-me dispensado de fazer tal coisa.

O n.º 2 do artigo 32.º da Constituição determina que ‘todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação’.

A sentença de condenação só transita em julgado quando já não for passível de recurso ordinário. Tendo esta sentença sido proferida por um tribunal de primeira instância, dela cabe obviamente
recurso ordinário (aliás, conforme a notícia refere, a defesa já anunciou que vai recorrer). Como tal, mantém-se a presunção de inocência do arguido, que o PÚBLICO mais uma vez violou grosseiramente ao chamar ‘homicida’ ao arguido e ao afirmar taxativamente que ele ‘matou três jovens’. Infelizmente, mesmo depois dos reparos de vários leitores e, sobretudo, do autorizado reparo do senhor provedor, o PÚBLICO voltou a cometer o mesmo gravíssimo erro, ainda por cima na mesma situação.

Eu compreendo que os jornalistas não têm que ser licenciados em Direito quando escrevem sobre um julgamento (como não têm de ser cientistas quando escrevem sobre Ciência, outro campo em que, a julgar pelo que leio no blogue do provedor, as ‘calinadas’ têm sido mais do que
muitas). Mas francamente! Para se escrever sobre qualquer assunto, é, pelo menos, preciso não se ser totalmente ignorante sobre ele. Ainda para mais, o teor da presunção de inocência está longe de ser um conhecimento jurídico esotérico e só acessível a iniciados. E, mesmo que o fosse,
os jornalistas tinham obrigação de fazer parte desse círculo de iniciados, tal é o risco de violação da presunção de inocência no exercício da profi ssão jornalística. Recuso-me pura e simplesmente a acreditar que não se fale da presunção de inocência nos cursos de jornalismo.

Para mim, este erro é ainda mais grave do que o do esperma do mamute fêmea ou do que o do diâmetro em metros quadrados. Isto porque enquanto estes disparates não têm a virtualidade de alterar as leis da biologia ou da geometria aplicáveis, a violação da presunção de inocência tem implicações éticas gravíssimas e, de certa forma, irremediáveis. Ou seja, a violação já ocorreu e não há nada que a apague, nem mesmo um pedido de desculpas (que o PÚBLICO não formulou no caso anterior, tendo-se limitado a admitir o erro). Isto nada tem que ver com a culpabilidade ou não deste arguido em concreto.

Mesmo que venha a apurar-se que o ex-cabo da GNR é efectivamente culpado, o valor objectivo da presunção de inocência já foi irremediavelmente afectado.

Tenho muito respeito pelos jornalistas sérios e competentes, que desempenham uma função insubstituível num Estado de direito. Mas um jornalista que não seja sério ou competente pode pôr gravemente em causa esse mesmo Estado de direito. Um jornalismo que se dá ao luxo de
cometer e repetir atropelos deste calibre aos princípios do Estado de direito não é sério nem competente, nem tão-pouco tem qualquer legitimidade moral para fazer a apologia, às vezes inflamada para além de qualquer compreensão, de outros valores também sacrossantos do mesmo Estado de direito, como a liberdade de imprensa e o direito à preservação do sigilo das fontes. Pelo contrário: ainda que não intencionalmente, este tipo de jornalismo só pode contribuir para dar cobertura àqueles que, pretextando evitar os desmandos da imprensa, querem na verdade calar a notícia objectiva e a investigação independente, a livre opinião e o livre pensamento.

Já cansado e quase decidido a passar a comprar um jornal assumidamente populista que não tente enganar o público com o rótulo de jornal de referência (o Correio da Manhã, no seu género, é, pelo menos, um jornal competente e em que não se lêem coisas destas), limito-me a fazer as seguintes perguntas:

1.ª Qual é o grau da preparação exigida aos jornalistas do PÚBLICO nos domínios técnicos sobre os quais escrevem?

2.ª Qual é o grau de controlo exercido sobre os textos das notícias publicadas?

3.ª Quais as consequências para os jornalistas que escrevem, ainda por cima reiteradamente e sobre o mesmo assunto, textos objectivamente indefensáveis nos planos técnico, científico ou jurídico? Pergunto isto não por me agradar o policiamento e a repressão dos jornalistas, mas
apenas porque me parece que sem responsabilização efectiva estas coisas continuarão inevitavelmente a acontecer (e, por razões óbvias, é preferível que essa responsabilização
parta dos próprios jornalistas).

4.ª Os jornalistas do PÚBLICO lêem o que o provedor escreve? (A primeira versão desta pergunta era: ‘O provedor serve para alguma coisa?’ Alterei-a porque não quis correr o risco de ser mal interpretado: pelo menos, para mim, o provedor é a última esperança de que ainda
seja possível evitar que o eng.º Belmiro de Azevedo perca definitivamente a paciência com o seu jornal e lhe feche as portas.)

Quero, por último, assinalar três aspectos:
1.º Ao contrário do que sucedia com os textos que anteriormente questionei, o texto acima mencionado está assinado, o que é um importante meio de responsabilização.

2.º Ao contrário dos títulos, o texto da notícia não comete qualquer violação da presunção de inocência, o que me leva a admitir que a jornalista signatária pode estar inocente e que a responsabilidade dos títulos pode caber a outrem. Neste caso, importaria saber quem é responsável.

3.º Quer parecer-me que é eticamente exigível que, tal como faz na edição escrita quando nela erra, o PÚBLICO passe a admitir on-line que errou na edição on-line”, escreve André Matos, um leitor de Lisboa.

Solicitei esclarecimentos ao director.

“Sem poder responder a tudo, meia dúzia de notas:

1. A noção constitucional de presunção de inocência sendo formalmente a mesma até ao trânsito em julgado do processo não tem o mesmo valor quando se é arguido (isto é, se é apenas suspeito sob investigação formal), quando se debate em fase de instrução a acusação do Ministério Público, quando se é réu e quando se é condenado em primeira instância. Nessa altura, o processo já passou pelo menos por dois juízes, o de instrução e o do tribunal. É até esta fase que a prova é feita. Na Relação e do Supremo (e no Constitucional, quando é caso disso) analisa-se a adequação da sentença à prova feita em tribunal.

2. Dito isto, e mesmo sabendo que da mesma forma que alguém condenado em primeira instância pode ser inocentado quando o processo chega a tribunal superior (sendo o inverso igualmente verdadeiro...), não contesto que os jornalistas devem permanecer fiéis ao princípio da presunção de inocência até ao fim, não devendo por isso escrever-se títulos tão taxativos como o referido. Fazê-lo é um erro cuja responsabilidade, devido ao período de férias, não consegui ainda apurar. Mas, de igual forma, a ênfase colocada na presunção de inocência, traduzida no registo das notícias e dos títulos, não deve ser a mesma quando se é apenas suspeito ou quando já se foi condenado em primeira instância, pois nessa altura as dúvidas sobre a culpa já passaram, pelo menos, por três crivos: o do Ministério Público, que acusou, o do juiz de instrução, que levou a julgamento, e o tribunal de primeira instância, que condenou o réu. Por exemplo: continuar a escrever ‘presumível homicida’ é melhor do que escrever ‘suspeito de homicídio’ (expressão recomendável na fase em que se é apenas arguido), mas pior do que escrever ‘condenado pelo Tribunal de Santa Comba Dão por homicídio’.

3. Não considero que o facto de o erro ter sido cometido num título (que deve ser obrigatoriamente sintético) seja desculpa, mesmo sabendo que o exercício de fazer títulos rigorosos com poucas palavras é dos desafi os mais difíceis que um jornalista enfrenta.

4. Ao contrário da edição em papel, a edição on-line está em permanente actualização. Quando um erro é detectado não se mantém notícia com o erro e acrescenta-se um ‘PÚBLICO errou’. Corrige-se é o mais depressa possível o erro. Ainda não encontrámos, e não conheço nenhuma edição on-line que tenha encontrado a solução ideal para assinalar de uma forma tão visível como a do ‘PÚBLICO errou’ um erro numa versão anterior da notícia.
Quando muito, esta refere qualquer coisa do género: ‘Ao contrário do que escrevemos numa versão anterior desta notícia... etc, etc.’ Isto signifi ca que um leitor que contactou com a notícia com um ou mais erros pode não reparar que esse erro foi entretanto corrigido. Trata-se de um problema dos suportes electrónicos de actualização permanente que já vi debatido em diferentes fóruns sem que se chegasse a uma solução ideal.

5. Sem me alongar, digo apenas que no PÚBLICO há instâncias diárias de avaliação do trabalho produzido e que, mais do que medidas disciplinares tomadas como regra, o rigor é um dos critérios de avaliação dos jornalistas (realizada uma vez por ano e com efeitos na sua remuneração variável) e, por maioria de razão, dos editores e directores, cujos lugares estão, por definição e cultura do jornal, permanentemente à disposição dos seus superiores hierárquicos. Erros sucessivos ou muito graves não são ignorados – o que não quer dizer que possam ser todos evitados e que todos tenham consequências imediatas –, até porque a tal nos obriga o Livro de Estilo.

6. Se o provedor não servisse para nada, já o teríamos dispensado quando terminou o primeiro ano do seu mandato. Como não foi isso que sucedeu...”, respondeu José Manuel Fernandes.

O director reconhece o erro. O provedor concorda com o director e, logo e por maioria de razão, com o leitor.

 
ACTUAL PROVEDOR DOS LEITORES DO PÚBLICO
- Rui Araújo
Provedor do Leitor desde 1 de Janeiro de 2006
 
ANTERIORES PROVEDORES DOS LEITORES DO PÚBLICO

- Joaquim Furtado
Provedor do Leitor de 1 de Janeiro de 2004 a 1 de Dezembro de 2004

- Joaquim Fidalgo
Provedor do Leitor de 3 de Outubro de 1999 a 30 de Setembro de 2001

- Jorge Wemans
Provedor do Leitor de 23 de Fevereiro de 1997 a 1 de Março de 1998

 
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