UMA FORMA DE PLÁGIO
Por Rui Araújo
“Embora o assunto que aqui abordo não me pareça ser novo (lembro-me de já ter lido uma crítica idêntica em anteriores cartas ao provedor) dado o lado caricato da situação penso que devo fazer uma breve crítica ou pelo menos comentário.Penso ser do código de conduta de um jornalista a citação das fontes bibliográficas do seu texto. Em especial quando esse texto é quase todo baseado num artigo ou trabalho de outro(s).
Na passada edição da PÚBLICA (22/10/2006) na secção ‘Ciência Louca’ de Clara Barata ‘Em busca do autobronzeador ideal’ percebe-se pela leitura do texto que este teve a sua origem numa tradução de um texto de uma revista anglo-saxónica (estaria tentado a dizer qual mas não o faço).
No entanto, por alguma razão de edição (ou esquecimento da autora...) parece mesmo que é efectuado um ‘copy & paste’ do inglês que depois é traduzido por cima. Um resquício de tal procedimento parece ser evidente na coluna da direita no final do parágrafo ‘Efeitos da UVA’ onde o texto aparece ainda em inglês!!
Admito que dada a natureza da secção ser de âmbito de divulgação, o jornalista pode basear-se noutros trabalhos. Mas deve citá-los e evitar erros grosseiros como o que aconteceu nesta edição”, escreve J. Sérgio Seixas de Melo, de Coimbra.
O texto “Efeitos da UVA” termina da seguinte forma:
“is present more uniformly throughout the day, and throughout the seasons than UVB.”
Pedi um esclarecimento a Dulce Neto, editora da Pública, sobre a parte em inglês.
“Tratou-se de um lamentável lapso de edição”, explicou.
O provedor não diria melhor...
Solicitei, portanto, explicações a Clara Barata, editora da secção “Ciência” e autora do artigo em questão.
“É de facto lamentável que o texto tenha saído assim; não tinha reparado que saiu com um extracto da frase em inglês. Sobrou de um local de onde tirei a informação, obviamente. Não está citado porque consultei vários sítios na Internet, para recolher informação e compará-la. Nem sempre esse trabalho de pesquisa é citável, porque podem ser mais as citações do que o próprio texto, como era o caso dessa caixa. Sei que algumas pessoas gostam de dizer que copiámos tudo e traduzimos, mas fazemos o mesmo que qualquer pessoa que esteja a estudar um determinado tema faz, que é procurar informação, compará-la e trabalhá-la, sobretudo quando se procura fazer passar uma informação útil, como é o caso dessa caixa. As citações são essenciais, mas devem-se fazer quando se utiliza de facto um naco de informação único de precioso para compor o trabalho (por exemplo, podem-se consultar vários jornais e todos reproduzem um mesmo telex, com pequenas afinações; da mesma forma, uma informação de saúde pode ser apresentada em vários “sites”, livros e outras fontes, na íntegra ou com pequenos ajustes, e não se devem citar todos os sítios consultados). Para fazer a caixa, não me lembro que sítios citei, mas sei que andei por vários sítios para coligir informação. O que não devia ter acontecido era sair um extracto em inglês - até porque o texto passou por várias mãos até sair –, isso com toda a certeza...”, respondeu a autora do texto.
As justificações são inaceitáveis.
Clara Barata não se recorda dos sítios que citou na “caixa” porque não mencionou nem um.
E o texto (apesar de a jornalista garantir “sei que andei por vários sítios para coligir informação”) resume-se (à excepção de oito palavras) a uma única fonte (http://en.wikipedia.org/wiki/Sun_tanning).
Eis a prosa da revista Pública e a da Wikipedia na internet:
“Faz com que os melanócitos libertem melanina que já está produzida.”
“causes release of preexisting melanin from the melanocytes”
“Faz com que a melanina se combine com oxigénio, o que produz o escurecimento da pele”
“causes the melanin to combine with oxygen (oxidize), which creates the actual tan color in the skin”
“Parece ser menos cancerígena que a UVB, mas causa melanoma, que é uma forma perigosa de cancro da pele”
“seems to cause cancer less than UVB, but causes melanoma, a far more dangerous type of skin cancer than other types”
“Não é bloqueada pela maior parte dos protectores solares, mas pode ser travada, em boa parte, pela roupa”
“is not blocked by many sunscreens but is blocked to some degree by clothing”
“Desencadeia a produção de mais melanina na pele”
“triggers creation and secretion of new melanin into the skin”
“Causa o crescimento de sinais e algumas formas de cancro da pele (mas não melanoma)”
“is thought to cause the formation of moles and some types of skin cancer (but not melanoma)”
“Envelhece a pele (menos que a UVA)”
“causes skin aging (but at a far slower rate than UVA.)”
“Estimula a produção de vitamina D, que é essencial ao organismo e diminui os riscos de outros cancros”
“stimulates the production of Vitamin D, which promotes lower rates of disease, and ironically lower rates of skin and other types of cancer”
“Queima mais facilmente que a UVA se houver sobreexposição; em pequenas quantidades é benéfica”
“is more likely to cause a sunburn than UVA as a result of overexposure, however moderate exposure can be healthy”
“Pode ser quase completamente bloqueada pelos protectores solares”
“is almost completely blocked by virtually all sunscreens”
Os dois textos são, praticamente (sic), idênticos.
Clara Barata não “comparou” nem “trabalhou a informação”, ao contrário do que afirma. Limitou-se a copiar frases na íntegra (na ordem exacta do original) sem inserir aspas e sem indicar a autoria.
A jornalista responde: “E porque haviam de estar colocadas entre aspas essas frases, pergunto eu? Não me lembro de onde tirei os dados da caixa, podem ter vindo em grande parte de um sítio, não faço a mais pequena ideia, mas duvido que seja de algum autor que se sinta espoliado (porque são dados factuais, como já disse várias vezes). E as últimas frases devem estar repetidas em todas as notícias escritas sobre o assunto, mais ou menos da mesma forma, porque são provenientes de um comunicado de imprensa. Quem quiser procurar frases e expressões iguais ou semelhantes a outras em inglês ou português encontrá-las-à muito no PÚBLICO ou até no New York Times”.
O provedor contesta mais uma vez a argumentação.
A jornalista pergunta: (“E porque haviam de estar colocadas entre aspas essas frases, pergunto eu?”).
A resposta parece óbvia: por causa dos princípios éticos e do próprio Livro de Estilo do PÚBLICO: “A assinatura de um texto deve reflectir de forma rigorosa a sua autoria”.
Acompanhando o exemplo do New York Times mencionado por Clara Barata, também eu cito um caso ocorrido nesse jornal no ano passado: o repórter Jayson Blair foi obrigado a demitir-se (designadamente) por causa do plágio. E esta semana (3/1/2007) uma jornalista do San Antonio Express-News demitiu-se depois de ter sido acusada de reproduzir informação do mesmo sítio na internet (Wikipedia) que Clara Barata, sem identificar a fonte.
Poderá parecer excessivo, mas os leitores precisam de poder confiar no jornal que compram.
O problema, por outro lado, não é um autor sentir-se espoliado. É o princípio. E a argumentação sobre a reprodução de “dados factuais” também não colhe. A Wikipedia só por si não pode ser considerada uma fonte credível...
A jornalista afirma que “as últimas frases devem estar repetidas em todas as notícias escritas sobre o assunto”.
“Devem estar” não é jornalismo, é um palpite. E, por outro lado, as transgressões alheias não servem de justificação.
O provedor questiona os métodos e o desleixo (publicação de uma frase em inglês).
O artigo principal da jornalista também é questionável, do ponto de vista deontológico: Clara Barata revela as fontes das citações (discurso directo) que reproduz, mas omite outras (as de discurso indirecto!). Copiou literalmente – ou quase – inúmeros parágrafos da New Scientist, sem mencionar a fonte e sem colocar o texto entre aspas.
Exemplos:
“A chave deste novo autobronzeador está num extracto de plantas chamado forskolina que, nas experiências da equipa, protegeu ratinhos sem pêlo de radiação ultravioleta e permitiu-lhes desenvolver um bronzeado natural, estimulando os seus melanócitos (...)”.
“The key chemical, a plant extract called forskolin, protected mice against UV rays and allowed them to develop a natural tan by stimulating pigment-producing cells called melanocytes.”
“A capacidade de se bronzear – (...) – é controlada pela hormona de estimulação dos melanócitos, que se liga a uma proteína que existe no exterior destas células. Esta proteína, que se chama receptor de melanocortina 1, funciona mal em muitas pessoas que têm a pele clara e o cabelo ruivo. É por isso que não se conseguem bronzear, e ainda por cima correm maiores riscos de desenvolver cancro da pele.”
“The ability to tan is largely controlled by a hormone called melanocyte-stimulating hormone, which binds to the melanocortin 1 receptor (MC1R) on the outside of melanocytes. Many people with with red hair and fair skin have a defect in this receptor, meaning they find it almost impossible to tan and are prone to skin cancer”.
“Numa segunda série de experiências os cientistas usaram ratinhos susceptíveis ao cancro, expondo-os ao equivalente a uma a duas horas de Sol na altura do meio-dia solar, diariamente, durante 20 semanas.”
“In a second experiment, a particularly cancer-prone strain of mice, also bred to lack effective MC1Rs, were exposed to the equivalent of 1 to 2 hours of midday Florida sunlight each day for 20 weeks.”
Fonte do texto em inglês: www.newscientist.com/channel/health/mg19125704.100-tan-stimulant-may-bronze-even-the-fairest-skins.html.
O corta e cola (“copy & paste”) extensivo é uma forma de plágio (sobretudo quando as fontes são omitidas). E isso é inadmissível no jornalismo.
O Livro de Estilo é peremptório: “O PÚBLICO considera o plágio uma conduta absolutamente inaceitável. Todas as informações recolhidas em qualquer documento ou noutros órgãos de comunicação devem ser sempre devidamente atribuídas”.
Serge Halimi, jornalista do Le Monde Diplomatique, chegou a alertar os leitores para estas práticas, denunciando, do mesmo modo, a indulgência e a conivência generalizadas: “Aviso ao leitor: o plágio, que constitui uma forma de roubo intelectual, é raramente sancionado pela profissão. Pior, os autores confrontados com esse processo continuam a beneficiar dos favores mediáticos. Em França, a técnica mais comum consiste em pilhar o artigo de um colega, a sua análise e os seus dados, citando-o uma única vez, por regra num ponto assaz acessório. Quando é confrontado com a prova da rapina, o malfeitor, apanhado em flagrante delito, chega, por vezes, a ter a audácia de retorquir: ‘Viram que os homenageei’. Na imprensa americana, uma prática deste género significa o descrédito profissional do culpado; nas universidades, a exclusão definitiva do estudante ou do professor. Mas também podem, apesar de este aviso se destinar ao leitor (ou de não o terem lido), defender-se de qualquer acusação de pilhagem ou de plágio, citando abundante, precisa e constantemente as suas fontes.”
(in ACRIMED, Observatório dos Media, (www.acrimed.org/article847.html?var_recherche=plagiat).
A ausência de princípios éticos, a demissão e a resignação dos jornalistas acabarão, inevitavelmente, por destruir a frágil relação de confiança com os leitores.
A credibilidade passa pelo profissionalismo e a ética. E a humildade de reconhecer os erros. É bom não o esquecermos, independentemente do resto.
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