NÃO HÁ LIBERDADE COM CENSURA
Por Rui Araújo
INA das caricaturas dinamarquesas de Maomé suscitou, inevitavelmente, o envio de mensagens electrónicas ao Provedor.
“Na celebração dos 100 anos de António Gedeão, poeta e humanista, importa recordar, que o ‘mundo só pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança’, caso eu respeite profundamente a liberdade e as convicções do outro, em prol da dignidade humana”, escreve a leitora Eveline Monteiro.
Ah, os poetas…
MAOMÉ
“Queria saber onde começa a liberdade de imprensa e onde acaba a minha liberdade devido a um qualquer cartoonista sem respeito pela religião dos outros.
Ser árabe ou muçulmano é ser terrorista?
E o que tem Maomé a ver com isto?
Não vos oiço lamentarem-se da falta de liberdade de imprensa para irem, por exemplo, a Guantánamo”, pergunta por e-mail outro leitor.
As crenças e as convicções devem ser respeitadas, mas a liberdade de imprensa (incluindo a de “um qualquer cartoonista”) não pode ser questionada. Faz parte da essência da própria democracia.
Os cartoonistas políticos sempre foram excomungados pelos defensores do pronto-a-pensar e do politicamente correcto. E continuam a ser eliminados mesmo em alguns jornais que não consideram a informação uma “mercadoria”.
A justificação usual é a contenção de despesas. Pela mesma razão ou com o mesmo pretexto substituíram- se jornalistas profissionais por estagiários. E acabaram com os cartoons.
Os ‘produtos’ polémicos podem ofender os leitores e a empresa acaba por perder anunciantes e clientes.
“Quando Jeff MacNelly, o popular e influente caricaturista editorial do Chicago Tribune, faleceu em Junho de 2000, os cartoonistas debateram numa listserv (na internet) qual seria o espaço de tempo considerado respeitoso para enviarem os seus currículos. Uma semana? Um mês? Cinco minutos?
É irrelevante. Cerca de cinco anos depois da morte do vencedor de três Prémios Pulitzer, o Chicago Tribune ainda não tinha contratado um cartoonista full-time para preencher o lugar vago deixado por MacNelly”, escreveu J.P. Trostle da Associação dos Cartoonistas Editoriais Americanos, na revista de jornalismo Nieman Reports (VOL. 58, NO. 4) da Universidade de Harvard.
O número de cartoonistas tem vindo a decrescer nos EUA. Dos 200 que havia em meados da década de 80, sobreviveram 85.
Em Portugal os cartoonistas são uma espécie rara.
Um cartoon é, necessariamente, uma opinião expressa de forma controversa. É uma sátira. E deve ser entendida como isso mesmo: um exercício crítico e responsável tanto mais necessário (para não dizer vital) quanto a realidade se resume para muitos cidadãos a infotainment, isto é, a informação despojada da sua obrigação crítica.
Ser árabe ou muçulmano é ser terrorista?
Ser árabe ou muçulmano não é ser terrorista.
E o que tem Maomé a ver com isto?
Não devia ter, mas, aparentemente, tem ( a começar pela pergunta).
Não vos oiço lamentarem-se da falta de liberdade de imprensa para irem, por exemplo, a Guantánamo.
Não é assim. Os jornalistas do mundo inteiro denunciam e condenam as restrições impostas aos jornalistas pela administração militar norte-americana em Guantánamo (Cuba).
A liberdade de imprensa não tem partido nem nacionalidade. De certo modo, ela é uma ideologia em si. É o corolário indispensável dos regimes democráticos.
HOLOCAUSTO
Pedro Aires Oliveira ficou “chocado com o facto de uma revista dirigida por um professor, e, financiada por uma grande editora de livros escolares (por sinal, em guerra aberta com este governo), poder pensar que a actual situação dos docentes do ensino secundário é de alguma forma ‘comparável’ à das vítimas dos campos de extermínio nazis. Os professores lá terão as suas razões para se sentirem injustiçados com muitas das medidas adoptadas por esta ministra da Educação – mas a vitimização, convenhamos, tem os seus limites.”
Este leitor de Lisboa contesta a caricatura publicada na página 64 da “Revista Mensal de Política Educativa” Pontos nos ii, cujo número 1 foi distribuído com a edição do PÚBLICO no passado dia 10 de Janeiro.
“A caricatura pretende ‘satirizar’ a política educativa do actual executivo socialista e representa o primeiro-ministro, José Sócrates, trajado como um monarca do Ancien Régime, no cimo de uma escadaria, e com a inscrição ‘Maioria Absoluta’ debaixo do trono. Em baixo, encontramos a ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, trajada com o que parece ser a farda de uma guarda de um campo de extermínio Nazi, e encaminhando para um forno crematório (!) uma multidão de professores apavorados (em cima pode ler-se ‘Prof-Incineração’).
Não sei o que será mais reprovável aqui, se o mau gosto do desenho, se a chocante falta de sensibilidade histórica do seu autor. É claro que este poderá argumentar que se trata de uma ‘chalaça’ à polémica que envolveu José Sócrates enquanto ministro do Ambiente, em finais dos anos 90, mas isso seria pura hipocrisia tendo em vista os outros elementos que constam do desenho (o forno crematório, a farda da ‘ministra’)”, escreve Pedro Aires Oliveira.
“Será que entre os responsáveis pela revista (dirigida por um professor, note-se bem) não haverá ninguém com a noção da tragédia de dimensões únicas que foi o Holocausto?
E entre os responsáveis do PÚ- BLICO? Não deveriam ter mais cuidado em se associarem a uma publicação de tão duvidosa qualidade?”, pergunta o nosso leitor indignado.
Remetendo para as caricaturas de Maomé, a revista antecipou-se à imprensa árabe que em represália ameaçou na passada semana caricaturar o Holocausto.
O Provedor solicitou esclarecimentos a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO.
“Tenho pouco a dizer sobre a Pontos nos ii, já que não é um produto do jornal, tendo um director autónomo que é responsável pela publicação.
O PÚBLICO distribuiu várias publicações pelas quais não é editorialmente responsável, desde encartes publicitários a suplementos comerciais (de anúncios de imobiliário, por exemplo) até revistas mais elaboradas como a Pontos nos ii.
Temos o cuidado de verificar se os projectos não são ofensivos, de mau gosto ou entram em choque frontal com a linha editorial do jornal.
O projecto da Pontos nos ii, não sendo o do PÚBLICO, pois não reflecte o pluralismo deste, não nos pareceu ser incompatível com uma distribuição conjunta.
Naturalmente que tal avaliação é feita a priori, sobre o projecto, e não sobre cada edição. Quando sentimos que a concretização dos projectos se traduz em produtos muito distintos e que chocam com a nossa linha editorial, interrompemos os acordos. Não sentimos que tivesse sido o caso.
A indicação de que ‘faz parte integrante da edição nº 5767 do PÚ- BLICO’ é uma exigência legal para impedir que possam ser vendidas à parte nas bancas. A sua existência não compromete a publicação que, por assim dizer, funciona como ‘barriga de aluguer’.
Quanto ao problema colocado relativamente ao cartoon, mesmo que tivesse sido realizado para o jornal, quais os limites para um cartoonista?
A discussão é muito actual e tem passado pelas páginas do PÚ- BLICO.
Pela lógica do leitor, o António, do Expresso, nunca poderia ter publicado muitos dos seus cartoons, que ofenderam seguramente muita gente (caso do preservativo no nariz do Papa, ou, para dar um exemplo, que também envolve o Holocausto, um outro cartoon sobre palestinianos com israelitas a fazer de guardas nazis). Ou será que só não nos ofendemos se estivermos de acordo com o humor quando ele é mais cruel?
Mas esta reflexão é mais geral e complexa, já que o mundo do cartoonismo se permite uma liberdade muitas vezes no limite do equilíbrio entre a crítica mordaz e a provocação gratuita. Contudo é assim nas democracias liberais, com as virtudes e os problemas inerentes. Em abstracto diria que um colaborador que, por sistema, preferisse a provocação gratuita ao humor mordaz acabaria por ser dispensado do PÚBLICO. Por razões de, citando Jane Austen, ‘Sense and Sensibility’, isto é, sensibilidade e bom senso”, retorquiu o director do jornal.
O cartoon sobre o Holocausto, à semelhança do que sucede com as caricaturas de Maomé, expressa um bom gosto discutível que só muito dificilmente pode ser enquadrado no conceito comum de bom senso (responsável).
Mas em nome da Democracia não nos assiste o direito de aplicar a um cartoon uma censura prévia, que essa sim é manifestamente assassina da liberdade de imprensa. |