Um Ano na Crise

Família Lourenço

Portugal não segue as leis do "Reino das Cem Janelas"

Por Graça Barbosa Ribeiro
Adriano Miranda

Quem, há três semanas, assistiu à representação da adaptação feita por José Vieira Lourenço de uma peça de Alice Vieira, Graças e Desgraças da Corte de El Rei Tadinho, talvez não tenha conseguido conter um sorriso. Quando pode, o professor de Filosofia e de Teatro não deixa de dar o seu contributo para desenvolver o sentido crítico dos alunos e aquela não foi excepção. Quando se ouviu: "Diziam os grandes livros de leis do Reino das Cem Janelas que a crise, quando nascia, era para todos", o coro comentou, sarcástico, como nas tragédias gregas: "Agora não é bem assim!..."

E não é, diz o professor. Na obra de Alice Vieira - em que se baseou a peça que os alunos da Escola Secundária Quinta das Flores levaram à cena na Mostra de Teatro Escolar de Coimbra - pode ler-se: "Se faltava comida na mesa do ferreiro, também faltava na mesa do juiz; se entrava água em casa do pedreiro, também entrava em casa do físico da corte". Em casa dos dois professores, ambos no topo da carreira, está muito longe de entrar água ou faltar comida, mas tanto José como a mulher, Clara, sabem que por aqui "a lei do Reino das Cem janelas não é cumprida" e que se "uns já sofrem a crise na pele, outros ainda nem dão por ela".

O que os indigna são "os salários milionários e as indemnizações de luxo" que fazem títulos nos jornais. O que os embaraça - a José e Clara, de 58 e 57 anos de idade, pais de duas jovens a estudar no estrangeiro - é terem a ousadia de se queixarem quando vêem à sua volta "pessoas em situação dramática".

Ainda assim, olham, apreensivos, para a situação de amigos e conhecidos, da sua idade e segmento social, que podem vir a sofrer com os cortes nos orçamentos das escolas e que obrigam à redução do número de professores. "São pessoas que sempre tiveram vidas confortáveis, que estão numa idade em que já é difícil mudar de carreira e que, muitas vezes, ainda têm de ajudar os filhos, que estão desempregados ou prolongam os estudos por não arranjarem emprego", lamenta Clara.

O seu caso será menos grave. O corte de dez por cento nos vencimentos, a subida do IVA e o apoio às filhas e a um familiar que está desempregado exigiram disciplina, mas têm dificuldade em falar em sacrifícios. Sentem, no entanto, que já fazem uma "espécie de treino para a crise".

Trocaram produtos mais caros por outros de marca branca, o vinho pela cerveja, a gasolina por um talão de desconto no supermercado e a ida ao restaurante por uma refeição take away; aprenderam a folhear livros sem os comprar, a ver montras sem abrir a carteira e ainda arranjaram uma caixa de poupança, onde ao fim do dia põem as moedas de euro que encontram nas carteiras e que ali ficam guardadas para alguma extravagância.

Eles próprios planeiam ver crescer uma parte do que consomem, numa horta que gostariam de fazer no quintal de um familiar. É importante para a economia doméstica, mas também para a gestão do stress, explica José. E tem a vantagem, acrescenta Clara, de ser um passatempo produtivo e amigo do ambiente e de lhes permitir recuperar "coisas antigas", como "morangos que sabem mesmo a morango".