Eduardo Cintra Torres
:Tertúlia à distância


A "Travessa do Cotovelo" (RTP2, aos domingos) traz de novo a conversa ao ecrã. A sua natureza evoca a ideia de tertúlia, que foi, aliás, tema do primeiro programa. Todos os presentes falaram das tertúlias como de gente morta. Elas acabaram e todos temos muita pena. As tertúlias que geralmente se mencionam nestes dolorosos momentos de saudade são a da Bertrand e a da Sá da Costa. Consta que alguns dos convivas de cada uma destas tertúlias eram os mesmos, limitavam-se a atravessar a Rua Garrett.
Já não sobram, hélàs!, saudades dos salões literários de séculos antigos, com «madames de» em chaises-longues, poemas românticos à luz coada das lamparinas e Chopin improvisando nocturnos. Isso sim, eram tertúlias, mas, tomando em conta a área (o Chiado é mais pequeno que os Campos Elísios), devemos contentar-nos com o grande Aquilino passeando erudição e absorvendo materiais para os seus romances à porta da livraria.
Porque terá terminado a tertúlia? Já em 1939, Paul Valéry assinalava o facto: «Eu assisti ao desaparecimento progressivo de seres extremamente preciosos para a formação regular do nosso capital ideal, tão precioso como os próprios criadores. Vi desaparecer um a um esses conhecedores, esses inestimáveis amadores que, se não criavam as obras eles mesmos, criavam o seu verdadeiro valor; eram juízes apaixonados, mas incorruptíveis, para os quais ou contra os quais, era belo trabalhar. Eles sabiam ler: virtude que se perdeu. Sabiam ouvir, ou mesmo escutar. Sabiam ver. O mesmo é dizer que o que eles se propunham reler, reouvir ou a rever, constituía-se nesse regresso, em valor sólido. [...] Tinham por profissão ser eles mesmos».
Por antítese, compreende-se que hoje não poderia ser possível uma tertúlia com homens que eram, afinal, diletantes maravilhosos do tempo da comunicação oral e do «convívio ao vivo» entre as pessoas. Esses homens já não existem e, se os há, os contemporâneos, ingratos, não têm paciência para ir ter com eles. Tanto mais que os herdeiros das tertúlias são decerto, todos eles, «criadores». Hoje, com tantos telefones, com tantos meios de comunicação, com uma parafernália de publicações, rádios, televisões, e-mail, chat-lines na internet - quem precisa de ir, quem tem tempo de ir à porta da Bertrand ou ao café Montecarlo saber o que pensa um fulano que escreve no jornal ou fala na rádio - e que se calhar aparece em programas como a "Travessa do Cotovelo"? As tertúlias modernas fazem-se ao telefone ou em frente dum écrã.
A ideia desta "Travessa do Cotovelo" é simples e boa: um programa de TV para falar de tudo e mais alguma coisa, à vontade, à mesa do bar. Se já não há tertúlias, então façamos a sua ficção televisiva.
Maria Lúcia Lepecki é a anfitriã do programa e tem dois adjuntos permanentes. Ao trio juntam-se outros convidados. A conversa segue um percurso menos curvilíneo do que o das conversas normais; baseia-se em novidades que são apresentadas em pequenos pacotes de imagens vídeo das notícias da semana. Ao conduzir a conversa para temas «vídeo», Lepecki desde logo reduz a conversa à espuma dos dias. Não se fala dum livro ou tema abstracto.
O espaço criado para o programa é o de um bar, com figurantes bebendo uns copos e conversando, barman e pianista cumprindo as respectivas missões.
Receando que só as conversas tornassem o programa chato, a autora introduziu-lhe as imagens da semana e o realizador optou por nunca ter a câmara parada. O conceito é este: mesmo que a conversa pare, eu não paro, o programa continua em movimento. Mas, se bem que anime a mancha do televisor, o deslizar das câmaras cria ao mesmo tempo um distanciamento entre o espectador e os convivas do Cotovelo. Sendo objectivo do programa que eles estejam a conversar como se fosse connosco, como se nós estivéssemos lá, isso é aqui prejudicado, pois o movimento das câmaras põe o espectador no ponto de vista duma cadeira de rodas em acção e não sentado numa cadeira à frente do conversador hertziano. Colocar as câmaras em movimento representa um grande temor perante o próprio conteúdo do programa: a conversa.
Em dois aspectos, o temor é justificado: primeiro, o realizador assume que os espectadores (também) não estão habituados à tertúlia, pelo que é melhor agitar os planos; segundo, o programa corre o risco de ter pouca conversa porque a anfitriã quase monopoliza o direito à palavra. Lepecki apresenta os temas, analisa-os, disseca-os, passa a palavra, tira a palavra, interrompe, graceja, recorda, critica - enquanto os seus convidados bebericam os "whiskies". Se calhar a tertúlia morreu mesmo quando as pessoas deixaram de se ouvir e impediram os outros de falar.
Lepecki terá de compreender que a televisão é muitíssimo menos complacente que os estudantes na sala de aula ou os convivas das antigas tertúlias: se ela já não sabe ouvir, ou mesmo escutar, também os espectadores não a quererão ouvir a ela. Se, pelo contrário, Lepecki der aos seus convidados a oportunidade de falarem, se se propuser, com eles, essa antiga qualidade de reler, reouvir ou rever, então a "Travessa do Cotovelo" será um amável espaço de hertziana tertúlia, será um valor televisivo sólido.

 

 


Maria Lúcia Lepecki