Uma prostituta
que diz do primeiro,
e único, amor: "A gente não escolhe, o coração é que manda." E outra: "O amor
à primeira vista é uma fome que a gente tem e não consegue cobrir." E há presos
de Alcoentre que lêem Kundera, Vargas Llosa, Lobo Antunes, Arthur Miller e
Mia Couto. E o guarda da aldeia da Luz, no mar de Alqueva: "Todos os passarinhos,
andem por onde andarem, voltam ao seu velho ninho. E uma "mãe" de Aldeia SOS
que pediu ao bom Deus quando ficou viúva e se viu fechada em casa à lareira
com o gato no regaço: "Não me vais levar o marido em troca de um gato." "E
a gente já não voltará mais ao nosso velho ninho porque fica debaixo de água."
E velhos que falam dum combate aéreo da Segunda Guerra Mundial - sobre a várzea
de Alzejur.
A informação televisiva não tem, por norma, tempo para estes depoimentos.
Os telejornais, mesmo com gente a falar, dão-nos factos, não nos dão pessoas;
dão-nos acontecimentos, não nos dão almas e corações. As notícias habituais
não falam de causas, falam de consequências. Falam do que acontece às pessoas,
não do que as pessoas são.
A primeira diferença de Loja do Cidadão para outros programas de informação
é essa: tem tempo para as pessoas (RTP1 domingos à tarde, agora sábados à
noite). Em rigor, o programa é um magazine exclusivamente construído por uma
série de reportagens, tipo de que não recordo antecedentes nem paralelo noutros
canais. Não tem apresentadores nem repórteres à vista.
Esteve para ser um programa em directo, com público, daí o título com uma
proximidade ao contacto directo que não acerta bem com o conteúdo actual.
Desse projecto sobraram as reportagens. Embora seja impossível criticar o
que não chegou a existir, pode dizer-se que Loja do Cidadão ganhou uma dignidade
informativa que me faz saudar a falência, por falta de fundos na RTP, do projecto
inicial.
Na verdade, as reportagens desta Loja valem por si. São como os textos que
a imprensa escrita reserva para os magazines de sábado ou domingo: têm uma
respiração diferente dos textos do dia-a-dia, da mesma forma que reconhecemos
nos adormecidos a respiração calma dos justos.
A diferença não está apenas em que há tempo para ouvir as pessoas; está também,
a avaliar pelos resultados, em que há tempo para fazer as reportagens e construí-las
televisivamente. Pascal escreveu uma vez que uma carta sua ia longa demais
porque não tivera tempo para a escrever mais curta. Destas reportagens se
pode dizer que os seus autores tiveram tempo para as fazer mais curtas do
que muitas que se vêem, dolorosamente intermináveis, nos telejornais do nosso
dia-a-dia.
Em primeiro lugar, as reportagens da Loja do Cidadão têm um título, que é
porta de entrada para uma entidade com estrutura interna. Depois, há os textos,
curtos ou muito curtos, escritos com tempo, apenas introdutores e não intrusivos,
bem lidos, sem gritos nem imposições de palavras. Ao contrário das reportagens
onde os jornalistas quase se substituem aos entrevistados, aqui os textos
não substituem o Outro, dão-lhe tempo para nos falar directamente.
A realização de Margarida Moura Guedes recorre a alguns artifícios técnicos
para criar a linguagem da diferença, mas sem fugir à estética televisiva.
Também a realização tem tempo para se fazer: ou pela montagem, ou pelo recurso
ao still video, ou pela forma de encenação dos depoimentos ou pela bem escolhida
banda musical.
As reportagens são curtas, algumas muito curtas, e a duração de cada uma é
a que estabelece o seu conteúdo e não a rigidez dos formatos televisivos.
Tudo junto não resultam reportagens presunçosas mas, pelo contrário, pequenos
trabalhos rigorosos que assumem humildade perante as vidas dos outros. A questão
fundamental parece ser a da atitude informativa, a da busca das notícias que
passam ao lado das manchetes e a de saber contar em televisão as estórias
de pessoas. Nas notícias normais dos telejornais as câmaras como que são atiradas
para cima dos interlocutores. Aqui, são as pessoas que entram pelas câmaras
porque se entregam.
A principal falha de Loja do Cidadão é a ausência de um elemento unificador
forte, mesmo que se evitasse o habitual e estafado pivot. É certo que as reportagens
se bastam a si mesmas e a sua sucessão lhes dá uma unidade estilística. Mas
um indicativo e um separador entre as reportagens com mais força daria uma
personalidade mais imediata ao programa, o que é necessário num meio tão competitivo
como a televisão e onde, mais a mais, o ruído consegue tantas levar a melhor
por captar a atenção dos olhos e ouvidos que vagueiam no zapping.
Quando a sua informação tem tempo para pensar e parar de gritar, a televisão
pode ser um meio de nos aproximar do nosso semelhante sem demagogia, sem mensagem
política, sem mensagem nenhuma, afinal. Se estabilizar numa linguagem televisiva
própria de magazine independente de direcções de informação apressadas ou
comprometidas, se se afirmar como olho que procura a humanidade que se liberta
do vizinho que ignoramos, a Loja do Cidadão poderá tornar-se um formato em
permanente renovação.
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