Eduardo Cintra Torres
:RTP: Coragem política, precisa-se


1. Ao mesmo tempo que terminava em 30 de Novembro na Fundação Gulbenkian o encontro sobre Serviço Público de Televisão promovido pela RTP, terminava também o pior mês de sempre em audiências para o canal «popular» da televisão do Estado: 26,6% de share. Com 100 milhões de contos de passivo, com uma relação custos-benefícios próxima de zero, a RTP já não é tolerada pela sociedade.

2. O governo e a Administração da RTP pretendem associar «serviço público de televisão» e RTP, como se fossem teimosamente indissociáveis. Mas nem o serviço público é todo feito pela RTP, nem a RTP tem feito grande serviço público. A RTP é, ou deveria ser, uma empresa, e serviço público pode resultar da acção de qualquer entidade e não de uma entidade específica pertencente ao Estado e controlada pelo Governo.

3. É preciso romper com a ditadura axiomática da identificação de serviço público com a RTP. É possível serviço público sem a RTP. Também é possível serviço público de imprensa sem os jornais nacionalizados, serviço público de comunicações com a PT privatizada, serviço público de distribuição de água ao domicílio por empresas privadas.

4. O espectáculo que o governo deu, entre Outubro e Novembro, de intervenção directa e abusiva na escolha dum novo director de Antena para a RTP, indicou que o executivo de Guterres não pretende abrir mão do controlo da televisão do Estado e que as autocríticas de Arons de Carvalho ao Expresso sobre essas intervenções abusivas não passaram de lágrimas de crocodilo. O governo não largará o controlo político da Administração e da RTP no seu conjunto, custe o passivo que custar. (O dinheiro não é do governo, pode gastá-lo sem ninguém ser preso, como se viu na Saúde.)

5. As empresas são entidades não-ideológicas. Pela mesma razão que as empresas não devem financiar partidos, também à RTP deveria ter sido dada a oportunidade (desde há mais de 40 anos) de ser apenas uma empresa. O controlo ideológico da RTP pelos governos é impeditivo de que alguma vez no futuro a RTP possa ser gerida e viver internamente como uma empresa. A RTP nunca poderá vir a ser apenas uma empresa e, mesmo que agora o tentassem (hipótese matematicamente impossível), era tarde demais.

6. O serviço público de televisão é necessário, mas não tem que ser feito da maneira como está, que consegue o pior dos mundos: é mau e é ruinoso. O actual «serviço público de televisão» não agrada nem às maiorias nem às minorias, nem aos «esclarecidos» nem às «massas».

7. Há vários anos que o governo e a RTP defendem a RTP e o seu projecto (?) de RTP1 na base do «entretenimento popular de qualidade». Todavia, até hoje, ainda ninguém conseguiu explicar o que isso é nem por que razão só poderia ser feito pela RTP. Também ainda não se apresentou um único exemplo prático de «entretenimento popular de qualidade» apresentado pela RTP nos últimos anos.

8. Não há voltas a dar: serviço público é aquele que os outros não podem ou não querem fazer: serviço público de televisão - actualmente - é programação cultural, científica, documental, de informação/debate e de desporto alternativo ao futebol. A ideia de serviço público de televisão exclusivamente cultural e de debate horroriza o governo (e grande parte da própria RTP) porque está associada a baixas audiências e o governo quer a RTP exclusivamente para passar as suas mensagens, como instrumento de poder, para o que precisa de grandes audiências.

9. O ministro da tutela, Armando Vara, no encontro promovido pela RTP sobre serviço público, disse abertamente que se os canais privados podem ser utilizados politicamente pelos seus proprietários, também o governo tem de poder dispor da RTP. Olho por olho, dente por dente - neste caso sendo o olho e o dente da propaganda do governo pagos pelos contribuintes.

10. Não fornecendo a RTP uma programação boa de serviço público na RTP1 (e a RTP2 poderia ser muito melhor), servindo de muleta do poder, e não podendo ser empresa (logo resvalando para os 100 milhões de défice), a RTP não deve existir.

11. As empresas têm, como todas as coisas, um tempo de vida. Não são eternas. Se já não servem, fecham. Os governos já fecharam, venderam ou tentaram vender muitas das empresas obsoletas e falidas pertencentes ao Estado. A RTP não tem emenda. O governo sabe-o muito bem, e por isso é que foi à Gulbenkian justificar que é preciso injectar na RTP mais dinheiro dos contribuintes - mais défice, mais passivo, mais milhões de contos de juros para a banca, mais programas de má qualidade, mais tempo de antena para o governo. A RTP devia fechar - não por razões exclusivamente contabilísticas, mas para bem dum verdadeiro serviço público de televisão.

12. Há muitas soluções alternativas à actual para salvaguardar os interesses de audiências minoritárias, regionais, elitistas, de emigrantes, de africanos, de brasileiros, de macaenses e de timorenses. Há que reformular de alto a baixo o processo de serviço público de televisão através de consenso nacional no Parlamento e com a sociedade civil. Para isso basta coragem política, mas, infelizmente, a coragem tem sido um bem raríssimo no Grande Centro de Nada que é a política portuguesa, no governo e na oposição.

 

 

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