A produção de telefilmes
da SIC levantou um problema lexical: filmes ou telefilmes? Eduardo Guedes,
realizador de "Facas & Anjos", disse à PÚBLICA (12.03) que um telefilme
«é exactamente a mesma coisa que um filme para cinema». Mas é claríssimo
que não é a mesma coisa, muito para além dos diferentes orçamento e tempo
de rodagem. É certo que estes novos produtos do audiovisual são objectos
fílmicos realizados em 16mm transponíveis para a sala escura. Mas não
são filmes.
Esperamos menos dum telefilme do que dum filme. Neste, há um argumento
«redondo», sem falhas, há até um produto «literário», quer dizer, com
equivalência com a literatura: com pretensões a obra completa, eternidade,
com mistérios, com uma desejada variedade de leituras. Há personagens
completos, cheios, iguais aos seres humanos. O filme, tal como o romance,
cria «géneros» de pessoas e não se limita aos tipos que já conhecemos.
Num telefilme esperamos um conto, talvez uma novela, não um romance. Não
esperamos a mesma profundidade de análise nos personagens, que já nos
chegam tipificados. Pode até haver incongruências no argumento - o que
se verificou até agora nos três telefilmes da SIC - que não será grave.
Isto é assim porque a observação dum objecto mediático não pode ser separada
da consideração do público a que se destina: a aferição da «qualidade»
não é alheia à sociologia e à economia desse objecto. Os telefilmes são
criados a pensar num público que é o dos canais de televisão generalistas
(ou de cabo) e não são estranhos aos condicionalismos desse mercado: tomam
em consideração o "zapping", o intervalo, etc. Estes telefilmes foram
criados para a TV, para o público do maior canal generalista, para a máxima
audiência da SIC, parte da qual não frequenta salas de cinema. Ignorar
este facto é um equívoco negativo para os próprios criadores dos telefilmes.
Quer dizer: será melhor para Eduardo Guedes apresentar "Facas & Anjos"
como um telefilme do que como um filme. Porque "Amo-Te Teresa", "Monsanto"
e "Facas & Anjos" não são bons filmes, mas são bons telefilmes.
A estória de "Facas & Anjos" (SIC, 14.03) inspirava-se vagamente em vidas
autênticas que passaram no "Ponto de Encontro", também da SIC: Manuel
Sousa Tavares e a irmã são filhos de uma criada que caiu de paixão por
um palhaço quando o Circo Cardinali passou nos anos 30 por Montargil.
Ela abalou com o circo, a polícia nada pôde para devolver a rapariga aos
pais; casou-se com o palhaço mas morreu sendo os filhos crianças. O rapaz
ficou com o pai no circo, mas foi raptado aos quatro anos por um mendigo
que o queria obrigar a pedir. Recusando-se a mendigar, o vagabundo pontapeou-o.
As autoridades encontraram-no, internaram-no no Hospital D. Estefânia,
e aí foi ocupar a cama 38, onde esteve Jacinta, a de Fátima, razão por
que o local era já então visitado por padres. Foi criado pelas enfermeiras,
proibidas pelo salazarismo de se casarem, e ali passou 13 anos, até vir
a ser internado - por apelo do "Diário Popular" - num instituto juvenil
em Pedrouços, onde «se deseducavam» os rapazes, conforme disse.
A reportagem do "Ponto de Encontro", em 11 de Abril de 1995, mostrava-o
chegando à vivenda de BMW e à beira da piscina. No palco do programa,
encontrou a irmã que não via há dez anos e o primo que o quis conhecer
depois de meio século de desencontro. Happy end.
Eis algo de prodigioso que sucede com a vida e alguma ficção: a realidade
é mais inventiva do que a sua recriação. A estória do "Ponto de Encontro"
era mais assombrosa do que a de "Facas & Anjos", e no entanto os argumentistas
basearam-se nela apenas vagamente para criar uma estória menos extraordinária
e, paradoxalmente, menos crível.
No telefilme, o filho (Miguel Moreira) dum rigorosíssimo major do Exército,
personagem desajustada dos anos 80, foge de casa e do Colégio Militar
para se juntar ao Circo Soledad Cardinali, onde se torna palhaço e se
apaixona pela trapezista (Carla Bolito), de quem tem um filho que se vê
obrigado a criar sozinho quando ela, impossibilitada de continuar, desaparece.
Quando volta, dez anos depois, rapta o filho, mas um acidente de automóvel
mata-a e empurra a criança para o hospital. O major (José Mora Ramos),
que nunca mais vira o filho e desconhecia o neto, recusa a situação mas
deixa de ser «militar militarista» em 30 segundos descendo, também ele,
à arena do circo. Happy ponto de encontro.
Dos três níveis da narrativa - o núcleo central, o desenvolvimento e as
cenas dialogadas - "Facas & Anjos" acertou no primeiro e no terceiro:
o cerne da estória era atractivo e tinha, tal como "Monsanto", uma escrita
de diálogos muito boa. Já o desenvolvimento da estória tinha fraquezas:
a figura do major demasiado estilizada para irromper em segundos com humanidade
desconhecida; a ex-trapezista morre «desenquadrada» (para quê o empenho
nesta personagem se desaparece sem «objectivo» na forma da narrativa?);
o palhaço (Raul Solnado) não chega a referencial. A figura interpretada
por Ana Bustorff também se «esvaziou», tal como as de Bolito e de Solnado.
Mas, como disse, era um bom telefilme. Os telefilmes são muito superiores
na sua «portugalidade» às "sitcoms" e formatos traduzidos. Em "Jornalistas"
ou "Médico de Família" não há «enquadramento» para o circo Soledad Cardinali
ou para a terra de Alcochete.
"Facas & Anjos"
cria um ambiente: o do circo que, se não erro, surgiu no cinema português
com "Saltimbancos", de Manuel Guimarães (1951), uma tentativa neo-realista.
Os actores cumpriram, tendo sido dada a Solnado a oportunidade de regressar
à ficção do entretenimento itinerante, ele que criara o fantocheiro em
"Dom Roberto" de Ernesto de Sousa (1962). Nesse filme, «o fantocheiro,
sem lar, (...) encontra uma rapariga desiludida da vida», mas «aceita
a miséria com espírito de sorridente resignação e fair play, ela com um
dramatismo de quem deseja refugiar-se na morte». Há uma semelhança com
o telefilme, mas "Dom Roberto" tem um final chapliniano adaptado ao neo-realismo,
enquanto "Facas & Anjos" tem um final de "Ponto de Encontro" sem o ser.
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