Eduardo Cintra Torres
:O espelho do Parlamento


O Canal Parlamento
não funciona. Há dois anos que o canal de televisão da Assembleia da República ocupa inutilmente uma frequência de TV (sendo as frequências "um bem escasso", conforme se diz sempre).
Este canal é uma inutilidade total para a TV Cabo Portugal, que generosamente assinou um acordo para a sua retransmissão com o parlamento em Setembro de 1997 (há 30 meses), para os seus assinantes, espectadores em geral e todos os cidadãos.
Em tempos, o parlamento já deitou cá para fora umas desculpas esfarrapadas sobre a vacuidade do canal, quer dizer, sobre o seu desprezo para com a sociedade civil. O caso é este: o parlamento eleito por todos nós foi incapaz de construir o seu próprio canal durante dois anos e meio! Se não consegue resolver um assunto que lhe diz respeito, como há-de o parlamento debruçar-se sobre os problemas graves de todos nós?
O Canal Parlamento é um canal "de serviço público" que tem escapado ao escrutínio da sociedade. As baterias da crítica voltam-se apenas para a RTP e o governo que a segura, quando o parlamento também tem um canal próprio, de alguma forma financiado por dinheiros públicos, pois é alimentado pela própria Assembleia. Só que enquanto a RTP presta um mau serviço público mas existe, o Canal Parlamento não presta nenhum serviço porque não existe. É uma anedota.
E é assim porque o parlamento não só se achou capacitado para o fazer como para o fazer com independência. Acontece que também ele, por maioria de razão, está sujeito à manipulação política. É por essa razão que está actualmente emperrado no parlamento. Em vez de clareza de processos, os partidos entregaram-se a fórmulas para o canal que originam suspeitas. Todo o processo está errado. A proposta da sua reformulação que está há meses em discussão foi preparada, não se percebe porquê, pelo gabinete do Presidente da Assembleia, Almeida Santos: quais as competências destas pessoas para formularem o que deve ser um canal de televisão?
As suspeitas da oposição, todavia, não passam por aí, porque não é a incompetência que preocupa a oposição. Só se levantaram protestos porque neste processo amadorístico Almeida Santos nomeou um colega do PS e ex-colega de bancada, José Niza, para dirigir o inexistente canal. A oposição não quis. Almeida Santos nomeou-o então "assessor" seu para o canal: perfeito!
Todo este indecoroso processo de 30 meses exemplifica como o serviço público muitas vezes está pior nas mãos do Estado do que dos privados.
O caso poderia servir de pedagogia para o restante serviço público de TV em Portugal se, alguma vez nas nossas vidas, o parlamento fosse visitado pela pomba do Espírito Santo e ela lá deixasse uma centelha de inovação e de coragem em aplicá-la.
Imaginemos o seguinte: o parlamento decide ter um canal de TV, mas, como não percebe nada do assunto, entrega-o a quem sabe fazê-lo: os profissionais da sociedade civil. Querendo preservar o que entende que deve ser o conteúdo do canal, o parlamento estabelece um rigoroso contrato de concessão aberto a concurso público. Ganha quem o parlamento achar que cumprirá melhor e pelo preço justo as condições do contrato.
Feito o concurso e iniciado o processo, alguém imagina que o processo parava? Claro que não. Os privados quereriam, no seu próprio interesse, que o canal tivesse emissões e que fossem cumpridas as condições do contrato, a começar pela independência.
Como deveria ter sido óbvio desde o início (excepto para aquelas cabecinhas eleitas), um canal parlamentar não pode ser apenas a mera reprodução das sessões do plenário ou das comissões. É isso que o Canal Parlamento tem feito quando emite todos os dias 30 de Fevereiro.
Ora a televisão é a reconstrução da realidade através de meios próprios; tem a sua linguagem; tem os seus processos de transmitir mensagens informativas. Limitar o canal a mostrar os momentos altos da vida parlamentar - que os outros canais já transmitem - é um convite a que ele não sirva para nada. Mesmo um canal parlamentar é um canal de TV e tem que seguir as regras da sua linguagem. Se não entenderem isto, mais vale os deputados desistirem.
O que poderia ser a grelha de programas dum verdadeiro canal parlamentar? Tudo o que o Canal Parlamento não tem sido.
Para já, emitiria diariamente, ou pelo menos 6 dias por semana. As sessões do plenário e das comissões seriam dadas ou em directo ou em montagem alargada com características jornalísticas. O canal teria os seus próprios jornalistas, que acompanhariam com especialização os trabalhos parlamentares.
Haveria cobertura das conferências de imprensa, que, por inércia, se tornariam mais frequentes. Haverias conversas, debates, entrevistas - com jornalistas e perguntas dos cidadãos pelo telefone. Haveria canais de comunicação entre os cidadãos e os "seus" deputados distritais (o que só desagradaria a parlamentares confortavelmente instalados no anonimato).
Haverias moradas, telefones e faxes e endereços electrónicos para os quais os cidadãos pudessem comunicar directamente com os "seus" deputados distritais (um pesadelo para muitos). Haveria formas expeditas de se mostrar como podem os cidadãos pressionar democraticamente o parlamento.
Haveria programas de informação que traduzissem o conteúdo da legislação em linguagem acessível e que informassem todas as novas leis. Haveria um serviço de teletexto com centenas de informações úteis do parlamento para os cidadãos.
Tudo isso se poderia fazer com profissionalismo e sem um grão de propaganda.
Numa era em que a TV se transformou na forma mais usual da praxis política, o Canal Parlamento poderia ser uma alavanca da reforma do sistema político para uma maior democratização da informação política e do contacto entre os cidadãos e os "seus" eleitos. Seria uma forma interessante de começar essa reforma por não implicar qualquer alteração do sistema e por servir de teste aos anseios dos cidadãos na amplificação das formas de participação no processo decisório.
Serviria, enfim, para os cidadãos controlarem - através da informação - esse processo decisório. Provavelmente é isso que os deputados não querem. Eles estão muito bem assim como estão, graças a Deus. Preferem o Canal Parlamento como está, que é como quem diz, estão arrependidos de que ele exista.