A
partir deste mês, os três canais com mais audiências transmitem
programas de humor popular ao nível mais básico. São os herdeiros do defunto
teatro de revista. A RTP1 tem "Bacalhau com Todos" (quintas-feiras) e
"Senhora Ministra" (segundas). A SIC tem "A Loja do Camilo" (quintas)
e vai repondo "Os Malucos do Riso". A TVI inicia um programa de Carlos
Cunha produzido por Marina Mota e tem para estrear outro, esse da própria
Marina, que será recebida na estação depois de sair da SIC com festas
e foguetes num programa especial.
"A Loja do Camilo" ou "Os Malucos do Riso" são de uma ingenuidade que
já não se fazia quando Charlie Chaplin rodou as primeiras bobinas em 1914.
Torna-se difícil a alguém, com todo o cabedal de sofisticação adquirido
ao ver alguns episódios de Benny Hill, sorrir mais do que uma ou duas
vezes, a custo, com estes programas. Quanto a "Bacalhau com Todos", ganha
em, tal como "Residencial Tejo", ser gravado com uma audiência no estúdio
que a realização nos mostra bastas vezes. A empatia criada entre actores
e público, bem como as improvisações introduzidas na representação, deram
ao primeiro episódio desta ligeiríssima comédia um nível de risota superior
ao aborrecimento causado pela "Loja do Camilo".
Já "Senhora
Ministra" padece do facto de pôr parcialmente em desacordo o género popular,
revisteiro, em que se inscreve e algum do humor que pretende ter, um poucochinho
mais sofisticado. Não devia haver, neste campo, tergiversações: ou um
programa se assume plenamente popular ou corre sérios riscos de falhar
o seu próprio alvo, as suas potenciais audiências. Suponho que os leitores
do PÚBLICO nunca viram do princípio ao fim um programa destes. Isso é
muito natural porque aqueles programas não são feitos para pessoas como
os leitores do PÚBLICO, com outras exigências e gostos quanto ao humor,
à construção de personagens e de enredos, quanto a cenários e níveis de
representação. Para outra audiência, podem os actores da "Loja do Camilo"
ou do "Bacalhau com Todos" representar com os pés e podem os canais repetir
episódios que isso nada afectará nem a adesão nem a apreciação que dele
fazem centenas de milhar de pessoas.
Aqueles programas assentam que nem uma luva nos anseios e expectativas
televisivas de uma imensa parte da população. Conhecendo-se os níveis
de alfabetização, de escolaridade e de amadorismo de grande parte da população,
não podemos admirar-nos que a "Loja do Camilo" consiga várias vezes chegar
ao lugar cimeiro na audimetria, ultrapassando o "Jornal da Noite" e a
novela brasileira, entre os quais é transmitido. Quase se pode dizer,
perante a performance deste programa, que é ele que arrasta audiências
para a telenovela brasileira! Em 9 de Março, a "Loja do Camilo" teve a
impressionante audiência de 36,8% junto da classe D, com um "share" de
68,8%. A adesão dos portugueses a este programa aumenta à medida que diminui
a sua capacidade económica e académica (18,6% de audiência na classe A/B,
20,1% na classe C1, 24,9% na classe C2 e 36,8% na classe D). Estes programas
são populares apenas porque têm audiências, porque há muitos milhares
de pessoas que querem que sejam populares, e não por terem qualidades
manifestas em qualquer dos códigos de representação, técnicos e ideológicos.
Quando terminam, estes programas não deixam saudades nem nas suas próprias
audiências, como se verificou agora com o desaparecimento da grelha da
SIC dum programa deste género chamado "Clube dos Campeões". Mas isso nada
diminui a sua valoração para os seus espectadores e para uma análise crítica
completa.
Se os estudos sociológicos do fenómeno televisivo português não estivessem
ainda naquela fase que antecedeu o Paleolítico Inferior, já conheceríamos
o grau de identificação duma parte importante dos nossos concidadãos com
Camilo de Oliveira, Marina Mota e os outros bonecos da galeria revisteira
da TV. Não os havendo, só podemos adivinhar - e teorizar sobre adivinhas.
Eu julgo que as audiências dos TV-revisteiros se identificam com os seus
programas - mesmo que não lhes achem grande piada - porque sabem que aqueles
são os seus programas. A TV é um meio de massas que se destina a toda
a gente e que tem uma abertura bastante grande a géneros destinados a
audiências muito díspares e específicas. Praticamente 100% da sociedade
pode dizer que pelo menos um programa lhe agrada ou interessa. Os que
mais se afastam da TV (não por verem menos, que os há, mas por gostarem
menos do que vêem) são os que possuem alguma forma de poder na sociedade:
ou o poder político, ou o cultural, o económico, o académico, o mediático,
ou outro qualquer.
Há, porém, uma parte da sociedade totalmente destituída de poder. Totalmente?
Não. Tal como a Gáulia não estava toda ocupada pelos romanos, há uma não
pequena área - com uma poderosa poção mágica - que «pertence» aos destituídos
da sociedade: a TV e a rádio populares. Esses meios a que não por acaso
chamamos de massas fornecem aos destituídos o poder de resistirem aos
outros poderes, de manterem a sua identificação social e de assim «exporem»
os seus valores culturais contra os dominantes. A música pimba é a contrapartida
musical da TV revisteira. Os destituídos sabem que a música pimba é a
sua música e que a "Loja do Camilo" é o seu programa; sabem até que os
«outros», os que têm poder, odeiam os seus valores culturais. Isso, provavelmente,
fá-los identificar-se ainda mais com o seu Camilo, a sua Mónica Sintra
(«Na minha cama com ela...»).
Os destituídos sabem, sempre souberam, que têm o poder da multidão, e
exercem-no de formas não políticas e não violentas mesmo que não consciencializem
que se trata de uma forma de «exercício» de poder.
Desta forma, a televisão e a rádio populares têm tido um papel não negligenciável
de integradores dos destituídos nos esquemas - organizados ou não, institucionais
ou meramente pressupostos - da sociedade nunca nomeada, a sociedade burguesa.
Isso não significa que a TV o faça deliberadamente e por desígnio secreto
dum conciliábulo de magnatas donos do mundo capitalista. A verdade é que
não foi a TV que criou a ideologia dominante. A sociedade já a aceitava.
As audiências, mesmo as dos destituídos, partem para a sua posição de
espectadores como aceitantes ou até apoiantes da ideologia que a TV lhes
fornece. E é dentro do âmbito de conflitos culturais na sociedade estratificada
que os destituídos decerto sentem o prazer secreto de partilharem, aos
milhões, valores de que os "outros" não gostam.
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