Eduardo Cintra Torres
:A televisão revisteira


A partir deste mês, os três canais com mais audiências transmitem programas de humor popular ao nível mais básico. São os herdeiros do defunto teatro de revista. A RTP1 tem "Bacalhau com Todos" (quintas-feiras) e "Senhora Ministra" (segundas). A SIC tem "A Loja do Camilo" (quintas) e vai repondo "Os Malucos do Riso". A TVI inicia um programa de Carlos Cunha produzido por Marina Mota e tem para estrear outro, esse da própria Marina, que será recebida na estação depois de sair da SIC com festas e foguetes num programa especial.
"A Loja do Camilo" ou "Os Malucos do Riso" são de uma ingenuidade que já não se fazia quando Charlie Chaplin rodou as primeiras bobinas em 1914. Torna-se difícil a alguém, com todo o cabedal de sofisticação adquirido ao ver alguns episódios de Benny Hill, sorrir mais do que uma ou duas vezes, a custo, com estes programas. Quanto a "Bacalhau com Todos", ganha em, tal como "Residencial Tejo", ser gravado com uma audiência no estúdio que a realização nos mostra bastas vezes. A empatia criada entre actores e público, bem como as improvisações introduzidas na representação, deram ao primeiro episódio desta ligeiríssima comédia um nível de risota superior ao aborrecimento causado pela "Loja do Camilo".
Já "Senhora Ministra" padece do facto de pôr parcialmente em desacordo o género popular, revisteiro, em que se inscreve e algum do humor que pretende ter, um poucochinho mais sofisticado. Não devia haver, neste campo, tergiversações: ou um programa se assume plenamente popular ou corre sérios riscos de falhar o seu próprio alvo, as suas potenciais audiências. Suponho que os leitores do PÚBLICO nunca viram do princípio ao fim um programa destes. Isso é muito natural porque aqueles programas não são feitos para pessoas como os leitores do PÚBLICO, com outras exigências e gostos quanto ao humor, à construção de personagens e de enredos, quanto a cenários e níveis de representação. Para outra audiência, podem os actores da "Loja do Camilo" ou do "Bacalhau com Todos" representar com os pés e podem os canais repetir episódios que isso nada afectará nem a adesão nem a apreciação que dele fazem centenas de milhar de pessoas.
Aqueles programas assentam que nem uma luva nos anseios e expectativas televisivas de uma imensa parte da população. Conhecendo-se os níveis de alfabetização, de escolaridade e de amadorismo de grande parte da população, não podemos admirar-nos que a "Loja do Camilo" consiga várias vezes chegar ao lugar cimeiro na audimetria, ultrapassando o "Jornal da Noite" e a novela brasileira, entre os quais é transmitido. Quase se pode dizer, perante a performance deste programa, que é ele que arrasta audiências para a telenovela brasileira! Em 9 de Março, a "Loja do Camilo" teve a impressionante audiência de 36,8% junto da classe D, com um "share" de 68,8%. A adesão dos portugueses a este programa aumenta à medida que diminui a sua capacidade económica e académica (18,6% de audiência na classe A/B, 20,1% na classe C1, 24,9% na classe C2 e 36,8% na classe D). Estes programas são populares apenas porque têm audiências, porque há muitos milhares de pessoas que querem que sejam populares, e não por terem qualidades manifestas em qualquer dos códigos de representação, técnicos e ideológicos. Quando terminam, estes programas não deixam saudades nem nas suas próprias audiências, como se verificou agora com o desaparecimento da grelha da SIC dum programa deste género chamado "Clube dos Campeões". Mas isso nada diminui a sua valoração para os seus espectadores e para uma análise crítica completa.
Se os estudos sociológicos do fenómeno televisivo português não estivessem ainda naquela fase que antecedeu o Paleolítico Inferior, já conheceríamos o grau de identificação duma parte importante dos nossos concidadãos com Camilo de Oliveira, Marina Mota e os outros bonecos da galeria revisteira da TV. Não os havendo, só podemos adivinhar - e teorizar sobre adivinhas. Eu julgo que as audiências dos TV-revisteiros se identificam com os seus programas - mesmo que não lhes achem grande piada - porque sabem que aqueles são os seus programas. A TV é um meio de massas que se destina a toda a gente e que tem uma abertura bastante grande a géneros destinados a audiências muito díspares e específicas. Praticamente 100% da sociedade pode dizer que pelo menos um programa lhe agrada ou interessa. Os que mais se afastam da TV (não por verem menos, que os há, mas por gostarem menos do que vêem) são os que possuem alguma forma de poder na sociedade: ou o poder político, ou o cultural, o económico, o académico, o mediático, ou outro qualquer.
Há, porém, uma parte da sociedade totalmente destituída de poder. Totalmente? Não. Tal como a Gáulia não estava toda ocupada pelos romanos, há uma não pequena área - com uma poderosa poção mágica - que «pertence» aos destituídos da sociedade: a TV e a rádio populares. Esses meios a que não por acaso chamamos de massas fornecem aos destituídos o poder de resistirem aos outros poderes, de manterem a sua identificação social e de assim «exporem» os seus valores culturais contra os dominantes. A música pimba é a contrapartida musical da TV revisteira. Os destituídos sabem que a música pimba é a sua música e que a "Loja do Camilo" é o seu programa; sabem até que os «outros», os que têm poder, odeiam os seus valores culturais. Isso, provavelmente, fá-los identificar-se ainda mais com o seu Camilo, a sua Mónica Sintra («Na minha cama com ela...»).
Os destituídos sabem, sempre souberam, que têm o poder da multidão, e exercem-no de formas não políticas e não violentas mesmo que não consciencializem que se trata de uma forma de «exercício» de poder.
Desta forma, a televisão e a rádio populares têm tido um papel não negligenciável de integradores dos destituídos nos esquemas - organizados ou não, institucionais ou meramente pressupostos - da sociedade nunca nomeada, a sociedade burguesa.
Isso não significa que a TV o faça deliberadamente e por desígnio secreto dum conciliábulo de magnatas donos do mundo capitalista. A verdade é que não foi a TV que criou a ideologia dominante. A sociedade já a aceitava. As audiências, mesmo as dos destituídos, partem para a sua posição de espectadores como aceitantes ou até apoiantes da ideologia que a TV lhes fornece. E é dentro do âmbito de conflitos culturais na sociedade estratificada que os destituídos decerto sentem o prazer secreto de partilharem, aos milhões, valores de que os "outros" não gostam.