Num artigo
recente, Vital Moreira (PÚBLICO, 04.01.2000) valorizou negativamente
a «poderosa influência da rádio e da televisão» na difusão por todo o país
dum sotaque lisboeta a que chamou, depreciativamente, o «lisboetês». Trata-se
de uma nova diabolização dos meios audiovisuais, bode expiatório habitual
dos males do mundo moderno. Segundo o professor de Coimbra, «o que é mais
grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes populares,
antes é compartilhada crescentemente por gente letrada e pela generalidade
do mundo da comunicação audiovisual».
Noutros países,
outras nações poderão dizer o mesmo. A capital - que a nação escolheu ou acolheu
como cidade primeira - impõe a sua forma de falar ao conjunto dos habitantes.
O francês do Norte da França esmagou o francês do Sul por causa de Paris.
Caberá aos linguistas dizer se esse sotaque «crescentemente compartilhado»
é de facto lisboeta e, já agora, se é «grave», como afirma Vital Moreira.
Já do ponto de vista empírico, ou até político, Vital Moreira terá dificuldade
em defender que um sotaque genuíno seja «grave» ou mais «grave» do que outro
sotaque genuíno.
Mas convém reflectir um
pouco sobre o papel da televisão neste processo. A forma identificadora do
falar tem uma importância enorme nas nossas vidas. Os sotaques não identificam
apenas a origem regional, identificam também a classe social e até a raça.
Um estudo realizado nos EUA em 1931 mostrou a capacidade dos ouvintes em caracterizar
com grande precisão quem estavam a ouvir, inclusive na profissão. Em My Fair
Lady, versão Broadway e cinema da peça Pigmaleão, de George Bernard Shaw,
o professor Higgins revela toda a intenção da obra logo na primeira cena:
«Olhem para ela, arrancada da miséria e condenada por cada sílaba que pronuncia.»
A «sua» Liza Doolittle será uma "lady", e não uma vendedora de flores com
sotaque "cockney", no preciso momento em que falar como uma "lady". Seria
absurdo que os jornalistas e a TV enquanto instituição não se preocupassem
com a forma de falar para o público.
Ao contrário do que sugere Vital Moreira, a televisão em geral revela bastante
cuidado na forma de falar dos seus principais protagonistas. Pode até dizer-se
que há nos seus noticiários uma lei não escrita que estabelece três níveis
de elocução da língua portuguesa, com fronteiras não tão fluidas quanto pode
parecer aos próprios intervenientes. A realidade da fala em televisão é diferente
nos três níveis que fazem a «verdade» da notícia: a elocução pelo pivot, pelo
repórter e pela testemunha circunstancial. Na última linha da notícia, a testemunha
é quem garante a confirmação da «verdade» enunciada pelo pivot e desenvolvida
pelo repórter. A testemunha fala geralmente no local onde ocorreu o acontecimento.
Quanto mais «regionalmente» falar, melhor para a «veracidade» da notícia.
É, aliás, conveniente para a «veracidade» que numa notícia sobre o Alentejo,
por exemplo, apareça um alentejano de falar cerrado.
O segundo nível da «verdade» da notícia é dado pelo repórter enviado ao local.
Ele é o intermediário entre a testemunha e o pivot. O repórter pode ter um
toque regionalista na voz, embora não seja necessário. Fica bem que o tenha:
mostra que a estação de televisão está implantada na zona; mostra que o repórter
entende e comunica com as testemunhas, isto é, que faz parte da «realidade»
local. Mas ao mesmo tempo, ele destaca-se dessa realidade, porque não fala
o regionalismo cerrado como as testemunhas. Ele tem elementos do falar dos
locais, mas não fala exactamente como eles. Ele «traduz» a realidade das testemunhas
para um nível «superior». Este estar a meio caminho na forma de falar é uma
realidade comprovável, por exemplo, nos telejornais regionais da RTP1 (dias
úteis, 19h00): os repórteres das delegações regionais têm eventualmente um
sotaque regional, mas muito ligeiro. Se ouvirmos com atenção os correspondentes
regionais verificaremos que um jornalista açoriano da RTP ou da SIC fala quase
da mesma forma que um repórter do Porto ou de Faro ou de Castelo Branco. É
conveniente para eles que assim seja pelas razões expostas acima.
É neste segundo
nível da elocução da notícia audiovisual que surgem os repórteres que falam
o tal sotaque que Vital Moreira refere como «lisboetês». São muitos, quer
nas rádios quer na televisão (especialmente na RTP). Trata-se de uma forma
de falar bastante afectada, não exactamente popular, mas de uma pequena-burguesia
que imita certa classe média de há 20 anos atrás. As «tias» falavam assim
há duas décadas; quando foram imitadas pela «gentinha», as «tias» mudaram
de modo de falar. É, portanto, um sotaque menos regional do que classista.
O que distingue esta forma de falar é a falta de clareza na emissão das palavras
e a «fonofagia», referidas por Vital Moreira. Os repórteres que assim falam,
em geral das sedes lisboetas da RTP e da TVI (e de muitas rádios), cometem
um erro grave, que é o de não controlarem o «sotaque» como fazem os repórteres
das outras regiões, que o mantêm a um nível mínimo, como disse acima. Uma
coisa é falar com um determinado sotaque lisboeta, que será tão legítimo como
outro qualquer, outra coisa é comer palavras e ser pouco claro na emissão.
Alguns repórteres receberam um microfone para a mão sem passarem por nenhum
teste «audio» das suas capacidades de comunicação na língua portuguesa.
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