O
telefilme da SIC "Monsanto"
e a série da RTP "A Raia
dos Medos" são projectos muito diferentes com pontos em comum. Ambos
os argumentos remeteram-nos para realidades recalcadas pelo regime de
Salazar e Caetano: momentos relacionados com duas guerras que, não sendo
combatidas em Portugal, deixaram marcas profundas. "A Raia dos Medos"
tem por pano de fundo a colaboração ilegal das autoridades portuguesas
com os revoltosos de Franco durante a Guerra Civil de Espanha; "Monsanto"
trazia à superfície os estigmas deixados pela guerra colonial nos combatentes
portugueses.
Há muitas estórias para contar do período do Estado Novo e estas ficções
têm o mérito de as trazer para o écrã de forma descomplexada e do ponto
de vista do cidadão vulgar. Ambos os projectos ficcionais fazem do Alentejo
a paisagem do écrã, a série da RTP porque assim foi a História há 60 anos
e o telefilme da SIC para fazer a integração da estória num país real
identificável pelo horizonte e pela pronúncia do Sul.
A série da RTP relata o autêntico estado de guerra que se viveu em algumas
zonas da fronteira, nomeadamente no Alentejo. Está lá tudo: refugiados,
perseguições do lado de cá, contrabando, solidariedade humana e política.
Eis o que nos faltava contar da Guerra Civil de Espanha: há dezenas de
livros de divulgação, há séries documentais, filmes e romances passados
nos anos de 36-39 de Espanha - só falta saber o que se passou em Portugal
em relação com a Guerra Civil.
A historiografia tem avançado neste campo e a recolha de testemunhos orais
(inclusive na "Crónica do Século", RTP) vem colmatando esta falha na nossa
história do século XX. Faltava a ficção televisiva. Francisco Moita Flores
empenhou-se com cuidado em arranjar uma trama com amores e acção. Há,
no entanto, muitas pequenas falhas na construção do fluxo narrativo e
dos próprios diálogos que facilmente poderiam ter sido evitadas. Num ou
noutro momento o produto televisivo aproxima-se do modelo da telenovela,
o que se evitaria com pouco mais trabalho.
Nos dois primeiros episódios notou-se o empenho em fazer «grande produção».
Estão lá os grandes espaços, as multidões, os meios. As falhas mais importantes
não foram graves: a iluminação nas cenas nocturnas (problema de todo o
audiovisual que "Monsanto" resolveu melhor) e as cenas com explosões (que
"Monsanto" também resolveu melhor). Já o telefilme da SIC teve por defeito
técnico assinalável a recolha de som, que tornou bastante difícil a compreensão
de muitas frases.
Quer a série quer o telefilme têm algo muito atractivo: a rua, o exterior,
o espaço, a grandeza da paisagem. Estamos longe da ficção - e não só das
"sitcoms" - feita em estúdios com «casas» falsas. Em geral, os «lares»
da ficção televisiva portuguesa parecem a casa da Barbie, seja ela versão
pobre, pequeno ou médio-burguesa ou até «aristocrática», como na "Lenda
da Garça".
"A Raia dos Medos" e "Monsanto" devolveram-nos ao mundo lá fora, o que
foi muito saudável e só podemos estar gratos às televisões generalistas
por não entregarem toda a paisagem aos documentarismo. Ao contrário do
que esperavam os mais pessimistas, a televisão generalista está a aumentar
e a melhorar, em todo o mundo desenvolvido, a oferta de ficção.
O telefilme da SIC tinha alguns aspectos notáveis: a realização de Ruy
Guerra, acima de tudo o que vemos na nossa TV e que nos deu uma sequência
de acção em quase toda a segunda parte inigualada no audiovisual português;
a interpretação de Vítor Norte no protagonista, mas também as de Paula
Neves e João Lagarto nos principais papéis secundários, num conjunto de
actores em que destoava Otelo Saraiva de Carvalho (o nosso Pequeno Otelo,
por antítese com o Grande Otelo, actor brasileiro). O destaque principal
vai para o argumento de Vicente Alves do Ó, com qualidades altamente invulgares
no panorama português: em poucos minutos os personagens principais estavam
à mostra por dentro e por fora e os dados estavam lançados desde o primeiro
momento. A força do destino, eis o que é a tragédia! Poderão outros argumentistas
conseguir o mesmo? Foi o argumento que proporcionou excelentes interpretações.
Quando são bons os actores podem cumprir o seu papel. Quando são maus
atribui-se as culpas aos actores, o que é injusto. Mas o argumento partia
de um pressuposto desajustado: acho altamente improvável que, 25 anos
após o termo da guerra colonial, haja ex-combatentes à beira de alucinações
como as do protagonista (mesmo que sob o efeito de álcool e medicamentos)
capazes de o fazerem matar.
Os americanos fizeram a psicanálise audiovisual sobre o Vietname quase
em cima do acontecimento, como é timbre da sua sociedade aberta e vibrante:
a guerra terminou em 1975 e "Coming Home" e "Deer Hunter" são de 1978,
"Apocalypse Now" do ano seguinte. Nos anos 80 e 90 já os filmes sobre
o conflito se situam ou na própria guerra ou na época, como "Born on the
Fourth of July", de 1989. Já o primeiro "Rambo", de 1985, por ser uma
estória pouco crível 10 anos depois de terminado o conflito, fez de Stallone
um herói de banda desenhada, o que deu uma credibilidade alternativa ao
filme que já nada tinha a ver com a própria realidade da guerra.
Desta forma, "Monsanto" sofreu por estar a ser feito décadas depois do
momento «natural» para ser realizado. Eis mais uma marca do famigerado
atraso estrutural da sociedade portuguesa: fazemos os nossos filmes com
20 anos de atraso! O argumento podia ter-se situado em 1980, mas os telemóveis
e as referências a programas da SIC remetiam-nos para o presente, com
o objectivo de tornar mais fácil a nosssa integração na estória. Foi o
desacordo com a realidade - compensado por uma fantástica unidade interna
da estória - que pôde afastar o espectador duma fruição mais completa
do telefilme.
|
A Raia dos Medos
Monsanto
|