Eduardo Cintra Torres
:As guerras e os medos


O telefilme da SIC "Monsanto" e a série da RTP "A Raia dos Medos" são projectos muito diferentes com pontos em comum. Ambos os argumentos remeteram-nos para realidades recalcadas pelo regime de Salazar e Caetano: momentos relacionados com duas guerras que, não sendo combatidas em Portugal, deixaram marcas profundas. "A Raia dos Medos" tem por pano de fundo a colaboração ilegal das autoridades portuguesas com os revoltosos de Franco durante a Guerra Civil de Espanha; "Monsanto" trazia à superfície os estigmas deixados pela guerra colonial nos combatentes portugueses.
Há muitas estórias para contar do período do Estado Novo e estas ficções têm o mérito de as trazer para o écrã de forma descomplexada e do ponto de vista do cidadão vulgar. Ambos os projectos ficcionais fazem do Alentejo a paisagem do écrã, a série da RTP porque assim foi a História há 60 anos e o telefilme da SIC para fazer a integração da estória num país real identificável pelo horizonte e pela pronúncia do Sul.
A série da RTP relata o autêntico estado de guerra que se viveu em algumas zonas da fronteira, nomeadamente no Alentejo. Está lá tudo: refugiados, perseguições do lado de cá, contrabando, solidariedade humana e política. Eis o que nos faltava contar da Guerra Civil de Espanha: há dezenas de livros de divulgação, há séries documentais, filmes e romances passados nos anos de 36-39 de Espanha - só falta saber o que se passou em Portugal em relação com a Guerra Civil.
A historiografia tem avançado neste campo e a recolha de testemunhos orais (inclusive na "Crónica do Século", RTP) vem colmatando esta falha na nossa história do século XX. Faltava a ficção televisiva. Francisco Moita Flores empenhou-se com cuidado em arranjar uma trama com amores e acção. Há, no entanto, muitas pequenas falhas na construção do fluxo narrativo e dos próprios diálogos que facilmente poderiam ter sido evitadas. Num ou noutro momento o produto televisivo aproxima-se do modelo da telenovela, o que se evitaria com pouco mais trabalho.
Nos dois primeiros episódios notou-se o empenho em fazer «grande produção». Estão lá os grandes espaços, as multidões, os meios. As falhas mais importantes não foram graves: a iluminação nas cenas nocturnas (problema de todo o audiovisual que "Monsanto" resolveu melhor) e as cenas com explosões (que "Monsanto" também resolveu melhor). Já o telefilme da SIC teve por defeito técnico assinalável a recolha de som, que tornou bastante difícil a compreensão de muitas frases.
Quer a série quer o telefilme têm algo muito atractivo: a rua, o exterior, o espaço, a grandeza da paisagem. Estamos longe da ficção - e não só das "sitcoms" - feita em estúdios com «casas» falsas. Em geral, os «lares» da ficção televisiva portuguesa parecem a casa da Barbie, seja ela versão pobre, pequeno ou médio-burguesa ou até «aristocrática», como na "Lenda da Garça".
"A Raia dos Medos" e "Monsanto" devolveram-nos ao mundo lá fora, o que foi muito saudável e só podemos estar gratos às televisões generalistas por não entregarem toda a paisagem aos documentarismo. Ao contrário do que esperavam os mais pessimistas, a televisão generalista está a aumentar e a melhorar, em todo o mundo desenvolvido, a oferta de ficção.
O telefilme da SIC tinha alguns aspectos notáveis: a realização de Ruy Guerra, acima de tudo o que vemos na nossa TV e que nos deu uma sequência de acção em quase toda a segunda parte inigualada no audiovisual português; a interpretação de Vítor Norte no protagonista, mas também as de Paula Neves e João Lagarto nos principais papéis secundários, num conjunto de actores em que destoava Otelo Saraiva de Carvalho (o nosso Pequeno Otelo, por antítese com o Grande Otelo, actor brasileiro). O destaque principal vai para o argumento de Vicente Alves do Ó, com qualidades altamente invulgares no panorama português: em poucos minutos os personagens principais estavam à mostra por dentro e por fora e os dados estavam lançados desde o primeiro momento. A força do destino, eis o que é a tragédia! Poderão outros argumentistas conseguir o mesmo? Foi o argumento que proporcionou excelentes interpretações. Quando são bons os actores podem cumprir o seu papel. Quando são maus atribui-se as culpas aos actores, o que é injusto. Mas o argumento partia de um pressuposto desajustado: acho altamente improvável que, 25 anos após o termo da guerra colonial, haja ex-combatentes à beira de alucinações como as do protagonista (mesmo que sob o efeito de álcool e medicamentos) capazes de o fazerem matar.
Os americanos fizeram a psicanálise audiovisual sobre o Vietname quase em cima do acontecimento, como é timbre da sua sociedade aberta e vibrante: a guerra terminou em 1975 e "Coming Home" e "Deer Hunter" são de 1978, "Apocalypse Now" do ano seguinte. Nos anos 80 e 90 já os filmes sobre o conflito se situam ou na própria guerra ou na época, como "Born on the Fourth of July", de 1989. Já o primeiro "Rambo", de 1985, por ser uma estória pouco crível 10 anos depois de terminado o conflito, fez de Stallone um herói de banda desenhada, o que deu uma credibilidade alternativa ao filme que já nada tinha a ver com a própria realidade da guerra.
Desta forma, "Monsanto" sofreu por estar a ser feito décadas depois do momento «natural» para ser realizado. Eis mais uma marca do famigerado atraso estrutural da sociedade portuguesa: fazemos os nossos filmes com 20 anos de atraso! O argumento podia ter-se situado em 1980, mas os telemóveis e as referências a programas da SIC remetiam-nos para o presente, com o objectivo de tornar mais fácil a nosssa integração na estória. Foi o desacordo com a realidade - compensado por uma fantástica unidade interna da estória - que pôde afastar o espectador duma fruição mais completa do telefilme.

 


A Raia dos Medos

 

 


Monsanto