Eduardo Cintra Torres
:As bananas confiscadas


Joaquim Letria foi um dos jornalistas que marcou a televisão portuguesa a seguir ao 25 de Abril. Desde então, o seu percurso inclui a rádio, a imprensa, a actividade empresarial, a assessoria política, a escrita de livros e o ensino. Regressa agora à televisão duas décadas após o seu último programa.
Dizer que os anos passaram é pouco, porque na televisão a evolução tem-se medido em anos-luz. O que sobra fazer em televisão que outros não estejam fazendo? O que poderia Letria, com o seu currículo, oferecer de novo? A irreverência.
De facto, desde que a SIC adoptou a «pose de Estado» e varreu da antena todos os indícios de irreverência (Praça Pública, Noite da Má-Língua) não há na televisão portuguesa nenhum programa que passe a fronteira do rodriguinho e dê largas à crítica mais desbragada. Na RTP a irreverência está limitada aos bonecos da Contra-Informação, mas com pessoas não parece possível.
A «domesticação» do humor de Herman José, recordêmo-lo, fez-se na RTP, televisão de um Estado tão livre que não admite graças que envolvam a mulher de D. Dinis, morta há mais de seis séculos e meio, nem humor com a Última Ceia, ocorrida há quase 2000 anos. Se for feito pelos Monty Python, okay, agora irreverências feitas cá na santa terrinha, nem pensar.
A irreverência está em Portugal associada à insolência, atitude social a que o regime de 1926, de acordo com os ventos dominantes na sociedade da época, partiu a espinha. Um decreto-lei previa o despedimento nas fábricas para os trabalhadores que tivessem uma atitude de insolência para com um superior. De forma que ser irreverente é muito complicado nesta terra.
Em Portugal, o irreverente não é um herói, é um proscrito. O respeitinho é uma coisa muito bonita. Almada Negreiros escreveu o Manifesto Anti-Dantas, mas mais tarde para dar de comer à família, ou emigrava ou trabalhava para o Estado Novo. A situação está apenas ligeiramente diferente neste capítulo. Nos últimos anos, Joaquim Letria assumiu a atitude do irreverente e foi afastado sem justa causa da RDP, outra casa do Estado. Esteve proscrito de trabalhar para o chamado «sector da comunicação social do Estado» e a situação só agora parece que começou a mudar, desde que deu a cara (juntamente com Herman José, aliás) na campanha de Jorge Coelho, cabeça-de-lista do partido do governo em Setúbal.
Depois de uma falsa partida de várias semanas, o programa de Joaquim Letria e José Paulo Fafe, "República & Bananas", propunha-se tomar o lugar cimeiro na irreverência, que tanta falta faz à televisão. Mas as expectativas saíram goradas (TVI, terças).
O programa não tem... programa. Não tem centro nem orientação. Os textos de Letria são pouco televisivos; a dicção é má; nos dois primeiros programas uma música de fundo aos gritos tornou impossível perceber em detalhe os textos, chegou apenas para verificar que tinham pouco picante. As reportagens (chamemos-lhes assim) não são carne nem peixe, nem a sério nem a brincar.
O Letria da televisão está limitado pelo Letria professor de comunicação social e autor em 1998 de «A Verdade Confiscada. Escândalo - a Armadilha da Nova Censura», livro de notas soltas onde se pode ler: «Qualquer semelhança entre uma noite de televisão e a realidade é pura coincidência. Os modernos media conseguem equalizar os factos, factóides, informação, desinformação, rumor, cochicho e insinuação. A má-língua transveste-se de notícia, a malícia de comentário, a ficção de facto, o preconceito de notícia impessoal.»
«A maior parte dos meios de informação portugueses [...] parecem retirados dum manual de posições 'politicamente correctas'», escreveu Letria em 98, «ninguém parece disposto a navegar contra o vento mediático». «Lamentavelmente, a liberdade de imprensa já não é o que era. Vai sendo limitada por toda a espécie de constrangimentos, desde os condicionalismos políticos, passando pela censura e acabando na sofisticação dos interesses escondidos.».
Nada nos primeiros episódios de "República & Bananas" mostrou que a triste realidade descrita por Letria no seu livro estivesse a ser contrariada. Nenhum interesse foi beliscado, nenhum político saiu chamuscado, nenhum vento mediático mudou de direcção. A realidade apareceu transvestida em «episódios» da vida de um prostituto, numa entrevista com o actor David Almeida por ser anão, noutra com Florbela Queirós sobre os pontapés que a vida dá, etc. Uma pergunta irreverente, ou supostamente irreverente, termina o programa.
Do que se entende dos textos iniciais de Letria, a irreverência será pouca e não teremos ali nenhum drama jocoso, apenas um divertimento em tom menor. Letria, com uma displicência que se pretende confundida com fair-play («não temos nada para vos dizer»), parece não saber bem o que o programa é. Onde está a «República», isto é a irreverência para com a política? Ninguém a vê. Onde estão as «Bananas», isto é, a realidade mostrada sem receio e com graça? À parte a camisa tipo Ilhas dos Mares do Sul que Letria usou no primeiro episódio, também ninguém viu essas «Bananas». Apenas factóides e cochichos.
Neste país há, de facto, muitos constrangimentos. A liberdade de imprensa já não é o que era - tal e qual como os nossos padrões de apreciação da TV estão mais exigentes. «A gente tem que fazer estas coisas», disse Letria para a câmara.