Joaquim Letria
foi um dos jornalistas que marcou a televisão portuguesa a seguir ao 25 de
Abril. Desde então, o seu percurso inclui a rádio, a imprensa, a actividade
empresarial, a assessoria política, a escrita de livros e o ensino. Regressa
agora à televisão duas décadas após o seu último programa.
Dizer que os anos passaram é pouco, porque na televisão a evolução tem-se
medido em anos-luz. O que sobra fazer em televisão que outros não estejam
fazendo? O que poderia Letria, com o seu currículo, oferecer de novo? A irreverência.
De facto, desde que a SIC adoptou a «pose de Estado» e varreu da antena todos
os indícios de irreverência (Praça Pública, Noite da Má-Língua) não há na
televisão portuguesa nenhum programa que passe a fronteira do rodriguinho
e dê largas à crítica mais desbragada. Na RTP a irreverência está limitada
aos bonecos da Contra-Informação, mas com pessoas não parece possível.
A «domesticação» do humor de Herman José, recordêmo-lo, fez-se na RTP, televisão
de um Estado tão livre que não admite graças que envolvam a mulher de D. Dinis,
morta há mais de seis séculos e meio, nem humor com a Última Ceia, ocorrida
há quase 2000 anos. Se for feito pelos Monty Python, okay, agora irreverências
feitas cá na santa terrinha, nem pensar.
A irreverência está em Portugal associada à insolência, atitude social a que
o regime de 1926, de acordo com os ventos dominantes na sociedade da época,
partiu a espinha. Um decreto-lei previa o despedimento nas fábricas para os
trabalhadores que tivessem uma atitude de insolência para com um superior.
De forma que ser irreverente é muito complicado nesta terra.
Em Portugal, o irreverente não é um herói, é um proscrito. O respeitinho é
uma coisa muito bonita. Almada Negreiros escreveu o Manifesto Anti-Dantas,
mas mais tarde para dar de comer à família, ou emigrava ou trabalhava para
o Estado Novo. A situação está apenas ligeiramente diferente neste capítulo.
Nos últimos anos, Joaquim Letria assumiu a atitude do irreverente e foi afastado
sem justa causa da RDP, outra casa do Estado. Esteve proscrito de trabalhar
para o chamado «sector da comunicação social do Estado» e a situação só agora
parece que começou a mudar, desde que deu a cara (juntamente com Herman José,
aliás) na campanha de Jorge Coelho, cabeça-de-lista do partido do governo
em Setúbal.
Depois de uma falsa partida de várias semanas, o programa de Joaquim Letria
e José Paulo Fafe, "República & Bananas", propunha-se tomar o lugar cimeiro
na irreverência, que tanta falta faz à televisão. Mas as expectativas saíram
goradas (TVI, terças).
O programa não tem... programa. Não tem centro nem orientação. Os textos de
Letria são pouco televisivos; a dicção é má; nos dois primeiros programas
uma música de fundo aos gritos tornou impossível perceber em detalhe os textos,
chegou apenas para verificar que tinham pouco picante. As reportagens (chamemos-lhes
assim) não são carne nem peixe, nem a sério nem a brincar.
O Letria da televisão está limitado pelo Letria professor de comunicação social
e autor em 1998 de «A Verdade Confiscada. Escândalo - a Armadilha da Nova
Censura», livro de notas soltas onde se pode ler: «Qualquer semelhança entre
uma noite de televisão e a realidade é pura coincidência. Os modernos media
conseguem equalizar os factos, factóides, informação, desinformação, rumor,
cochicho e insinuação. A má-língua transveste-se de notícia, a malícia de
comentário, a ficção de facto, o preconceito de notícia impessoal.»
«A maior parte dos meios de informação portugueses [...] parecem retirados
dum manual de posições 'politicamente correctas'», escreveu Letria em 98,
«ninguém parece disposto a navegar contra o vento mediático». «Lamentavelmente,
a liberdade de imprensa já não é o que era. Vai sendo limitada por toda a
espécie de constrangimentos, desde os condicionalismos políticos, passando
pela censura e acabando na sofisticação dos interesses escondidos.».
Nada nos primeiros episódios de "República & Bananas" mostrou que a triste
realidade descrita por Letria no seu livro estivesse a ser contrariada. Nenhum
interesse foi beliscado, nenhum político saiu chamuscado, nenhum vento mediático
mudou de direcção. A realidade apareceu transvestida em «episódios» da vida
de um prostituto, numa entrevista com o actor David Almeida por ser anão,
noutra com Florbela Queirós sobre os pontapés que a vida dá, etc. Uma pergunta
irreverente, ou supostamente irreverente, termina o programa.
Do que se entende dos textos iniciais de Letria, a irreverência será pouca
e não teremos ali nenhum drama jocoso, apenas um divertimento em tom menor.
Letria, com uma displicência que se pretende confundida com fair-play («não
temos nada para vos dizer»), parece não saber bem o que o programa é. Onde
está a «República», isto é a irreverência para com a política? Ninguém a vê.
Onde estão as «Bananas», isto é, a realidade mostrada sem receio e com graça?
À parte a camisa tipo Ilhas dos Mares do Sul que Letria usou no primeiro episódio,
também ninguém viu essas «Bananas». Apenas factóides e cochichos.
Neste país há, de facto, muitos constrangimentos. A liberdade de imprensa
já não é o que era - tal e qual como os nossos padrões de apreciação da TV
estão mais exigentes. «A gente tem que fazer estas coisas», disse Letria para
a câmara.
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