A
actual multiplicação de canais de TV proporcionada pela tecnologia
leva também à multiplicação de "conteúdos" mesmo nas áreas que eram antes
as mais desprezadas, como os documentários.
Em poucos anos, surgiram no mercado milhares de horas de teledocumentários,
muitos deles de fraca qualidade e visando aproveitar as novas janelas
de exibição para "encher chouriços". Começa a tornar-se insuportável ver
no ecrã até algumas das obras cimeiras da humanidade, como as pirâmides
de Gizé ou o Taj Mahal. As coisas belas banalizam-se quando nos são mostradas
a toda a hora e com a superficialidade de muito turista perante a Mona
Lisa.
Nem sempre, porém, isso acontece. A série Mar das Índias tem como primeira
recomendação a busca de novas formas de mostrar o já visto noutros teledocumentários
sobre o mesmo tema mas, principalmente, a busca de novas imagens e de
lugares nunca dantes filmados. Alguns momentos dos primeiros episódios
surpreendem não pela sua evidente beleza mas porque ainda ninguém nos
mostrara aqueles lugares e daquela maneira: por exemplo, os castelos no
planalto da Etiópia, o porto de Zanzibar, o santuário copta, sítios fantasmas
no Norte de Moçambique.
Embora abusando do zoom e do efeito de telefoto (que nos dá a ideia de
estarmos perto estando longe), Mar das Índias tem um rigor formal do enquadramento
muito satisfatório visualmente. Alguns planos são mesmo duma beleza plástica
rara nestes tipo de documentos. Havendo tantos teledocumentários, deveria
haver mais imagens belas e surpreendentes - mas isso é o que distingue
esta série dos teledocumentários vulgares. Mar das Índias tem mesmo alguns
planos de paisagens que sugerem superfícies planas (pintura), matéria
que quase convida a um debate filosófico: é a arte que imita a natureza
ou é a natureza que imita a arte? À beleza plástica, junta-se um ritmo
de montagem que se adapta ao panorama revelado e uma boa banda sonora.
Claro que os aspectos técnicos só fazem sentido quando se adequam ao projecto
e isso sucede nesta série. Ao começar o primeiro episódio, o espectador
sentirá um desacerto de Mar das Índias com o género habitual dos teledocumentários.
A participação do apresentador, Miguel Portas, e a narrativa implícita
na voz off não se sobrepõem à narrativa das próprias imagens, deixando
que pareça que são estas que comandam o fluxo dos programas: este facto
não é nada fácil de conseguir em TV. O apresentador e a voz off não nos
pressionam com informação ou opinião nem têm demasiadas coisas para nos
dizer: o texto-palavra remete-nos para a imagem-texto.
Os programas não nos forçam a aceitar o seu ponto de vista (que está lá,
naturalmente). Ao contrário de outros teledocumentários que renovam para
a era democrática e pós-colonial o ponto de vista nacionalista, etnocêntrico,
estes programas levam-nos ao ponto de vista do "outro" sem ofenderem o
ponto de vista nacionalista. O que vemos são antigos lugares dos portugueses
em África abandonados porque a aculturação dos povos não chegou ao ponto
de eles viverem aquela arquitectura como sua.
O que vemos da "nossa" passagem pelas terras swahilis e coptas é que sobram
apenas ruínas, algumas palavras e uma ou outra lenda. Passámos por lá,
fossem dezenas ou centenas de anos, como uma suave maré ou uma tormentosa
monção do mar índico... Passámos. Os povos por lá ficaram, como nós por
cá ficámos depois da dominação espanhola, ou francesa - ou inglesa - na
nossa terra. Acontece que temos querido ater-nos à imagem dos bons descobridores
a quem os povos teriam pedido para os colonizarmos. É uma memória reconfortante,
como o é para os de lá a memória contrária, segundo a qual nada de positivo
haveria na passagem portuguesa.
Esta série mostra que as imagens da memória são diferentes conforme o
oceano que as banha E que ainda há imagens novas para colher com todo
o cuidado.
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