Eduardo Cintra Torres
:...E o globo vai para o mais forte


Os Globos de Ouro e a sua Gala têm vários méritos: os juris são representativos e independentes; as escolhas são colocadas ao escrutínio público e conhecidas apenas na cerimónia; os processos de escolha e eleição são totalmente transparentes; o espectáculo é muito profissional e tem vindo a melhorar de ano para ano, tendo o deste ano sido francamente superior, menos aborrecido; Catarina Furtado também cresceu.
Todavia, fica um amargo de boca quando, por força da votação popular, ganha o mais forte, quer dizer, o mais «conhecido». As escolhas do público revelaram este ano de forma ainda mais nítida que, dentre a escolha dos juris, o público tende a escolher o que tem mais «audiências»: no desporto, ganhará facilmente o futebolista em desfavor do jogador de andebol ou do nadador; no cinema, o mais mediático, na televisão o do canal de mais audiência ou o do programa de mais audiência.
Os Globos de Ouro são, nas nomeações dos juris, prémios de mérito mas, nas escolhas dos preenchedores de cupões, são referendos de popularidade.
Daqui resulta uma ambiguidade. É como se houvesse duas escolhas contraditórias: o juri puxa para o lado do mérito do trabalho realizado no ano anterior, o público puxa para o lado mais fácil, o da popularidade e notoriedade. É claro que os prémios de popularidade fazem parte duma sociedade de entretenimento massificado em que tudo se quantifica - até pareceria mal se não se «medisse» a notoriedade dos «conhecidos»!
Mas há uma outra ambiguidade nos Globos de Ouro. É que as entidades promotoras estão ligadas, no caso da televisão, a uma das partes. Os prémios são atribuídos por uma revista do grupo empresarial de Francisco Pinto Balsemão, a "Caras", e são transmitidos num canal liderado por Pinto Balsemão. Outras publicações ligadas ao mesmo grupo empresarial publicam cupões.
Apesar de o processo ser transparente e sério e de a iniciativa ser muito louvável, aquele facto favorece os candidatos da televisão e do cinema ligados à SIC. Basta lembrar que, quando nos anos passados havia os galardões "Nova Gente", mais ligados à RTP, os prémios divergiam na exacta tendência da entidade promotora: havia mais globos da "Caras" para a SIC e mais galardões "Nova Gente" para a RTP. Nada mais natural: durante as 52 semanas do ano, as revistas puxam para o canal a que estão mais ligadas; a "Caras" mostra todas as semanas preferencialmente as caras da SIC, assim como a "TV Guia" e a "Nova Gente" se inclinam para a gente da RTP.
Toda a promoção dos prémios é efectuada nas publicações mais ligadas ao canal e no próprio canal. Desta forma, o público das revistas ligadas ao grupo SIC terá mais tendência em votar nos produtos ou pessoas ligados à SIC, tal como nos anos anteriores o público das revistas ligadas ao grupo RTP e "Nova Gente" votava mais facilmente nos produtos e pessoas ligados à RTP. Neste processo, a TVI ficava naturalmente de fora de qualquer consideração.
Agora que a RTP se mostrou incapaz de organizar um sucedâneo para a Gala Nova Gente, o campo ficou todo entregue a um conjunto de entidades ligadas à SIC. Claro que já nos anos anteriores sucedia o mesmo, mas, existindo também a Gala da Nova Gente, criava-se um equilíbrio - um pouco saloio, reconheço - compensador da inexistência de prémios totalmente independentes.
Porque, nesta altura, é de prémios de mérito totalmente independentes que se sente a falta. Como sempre, o exemplo americano é uma referência exemplar: há os globos, atribuídos pela crítica, e há os óscares, atribuídos pelos membros da Academia nas categorias em que o podem fazer.
Nada comparável com uma situação em que leitores de revistas votam, por hipótese, em personalidades do teatro sem nunca terem ido nesse ano ao teatro, ou escolhem entre quatro desportistas de que só conhecem um. Há aqui, como sempre, um poderoso conflito entre a qualidade - aquilo que os juris pretenderam escolher - e a quantidade - a popularidade dos nomeados votados por um público não directamente interessado na maior parte das matérias.
A beleza americana dos óscares tem a sua fundação num edifício totalmente inabalável, simples, eficaz, ligado a uma instituição de toda a indústria nas suas várias vertentes. E a beleza americana dos globos atribuídos pela crítica reside exactamente na mesma pureza de processos: só os críticos é que votam e pronto. Em Portugal, os principais, se calhar os únicos, prémios do espectáculo são promovidos por uma revista de gente "guapa". É da sociedade em que vivemos: pobre, com uma indústria do entretenimento fraca e dependente. Se não houvesse Globos, não haveria prémios nenhuns, pelo que se recomenda a virtude da resignação.