A RTP2 apresentou
nos últimos meses em Artes & Letras mais três documentários televisivos dedicados
a artistas portugueses: o fotógrafo Jorge Molder, o artista plástico Bernardo
Marques e o arquitecto Raul Lino.
Jorge Molder tem um universo muito original, especialmente baseado na exploração
da sua própria imagem. Ao escolher-se como modelo, Molder facilitou o seu
trabalho em várias formas, mas em especial artisticamente, porque ele não
se quer mostrar a si mesmo mas construir formas e ficções com um ser humano
lá dentro. De tanto o vermos, deixamos de o ver e passamos de facto a ver
essas formas e ficções.
O documentário da Rosa Filmes realizado por José Neves mostrou-o trabalhando
no estúdio, entrevistou-o no estúdio e aproveitou a sua participação na Bienal
de Veneza para o revelar numa exibição dos seus trabalhos.
A explicação da obra coube ao próprio fotógrafo, que é muito autoconsciente.
Ao mesmo tempo, pudemos ver amplas sequências de trabalhos seus. Desde há
50 anos, a televisão tem sido melhor a mostrar outras artes do que a criar
o seu próprio conteúdo. A fotografia sai bem em televisão. O mesmo já se verificara
com o documentário de Fernando Lopes dedicado a Gérard Castello Lopes e com
a série das 100 Fotos do Século. A televisão gosta da fotografia - ou então
é o nosso olhar que recebe com agrado as imagens fixas, imagens que fixaram
e que ficaram, em vez da televisiva, ininterrupta mudança de imagens em movimento
que não fixam nem ficam.
Era precisamente de Fernando Lopes, e de novo com a participação de Maria
João Seixas, o documentário «Bernardo Marques - o Ar de um Tempo». Este caricaturista,
desenhador, aguarelista e ilustrador (era, afinal, um «decorador», na perspectiva
do artista virado para o exterior dos anos 20 e 30) já fora alvo de uma curta-metragem
de Armando Silva Brandão no início dos anos 60.
Desta vez, a oportunidade surgiu a propósito da retrospectiva que lhe dedicou
o Museu do Chiado. É aí que o programa começa, numa fugaz imagem de Maria
Elisa Marques, viúva do artista, percorrendo as salas de exposição. Mas o
«ar de um tempo» foi dado pela conversa de Seixas com Elisa Marques, senhora
daquela rara elegância dos que podem dizer tudo, e tudo é bem. A obra do artista
foi surgindo no écrã por sugestão de temas abordados nesse diálogo. Nada nos
foi imposto, tudo surgiu naturalmente em resultado da narrativa da conversa.
Fernando Lopes, cuja experiência no documentário de cinema começou também
no início dos anos 60 (As Pedras e o Tempo, As Palavras e os Fios, Cruzeiro
do Sul e Era Uma Vez... Amanhã) deu a este trabalho televisivo uma conseguida
concepção plástica. Para ela contribuiu poderosamente uma simples mas excelente
banda sonora, uma montagem em blocos temáticos dos desenhos de Marques e ainda
o recurso a alguns efeitos digitais para acentuar o «ar do tempo» ou provocar
surpresa. Por exemplo, um boneco desenhado por Marques entrou na sala de Maria
Elisa Marques no final da conversa. Outro exemplo: os desenhos de Marques
de Berlim no final dos anos 20 foram mostrados ao som do tema «Wilkommen»,
do musical da Broadway «Cabaret», e, tal como no final do filme de Bob Fosse
do mesmo nome, a Berlim dos anos loucos desapareceu sob a presença atemorizante
da cruz gamada.
A simplicidade do programa, produzido por Rogério Ceitel Audiovisuais, resultou
não apenas do conseguido trabalho do realizador (o que é bem feito sempre
parece simples) como da própria obra do artista, ela própria isenta de qualquer
dificuldade de abordagem.
O documentário sobre Raul Lino, produzido pela RTP, foi outro dos bons trabalhos
apresentados pela RTP2 nesta área. O guião de António Silva conseguiu não
só perspectivar a obra do arquitecto como narrar a sua vida. Na parte inicial
contou com os depoimentos de duas filhas, e na parte final, em contraponto,
com uma conversa de análise entre dois arquitectos.
Em vez de se espraiar pela obra imensa de Lino, o autor escolheu alguns trabalhos
mais significativos, que a realizadora Cristina Antunes mostrou com destreza.
O carácter inovador do arquitecto nas primeiras obras do século ficou bem
mostrado e explicado, em contraste com o trabalho de Ventura Terra. O documentário
ficou ainda valorizado por largos extractos duma entrevista de arquivo a Raul
Lino de surpreendente qualidade.
A questão da «casa portuguesa», que Lino teorizou e levou à prática, poderia
ter sido mais desenvolvida (valia um documentário em si mesma), mas ficou
explicado que Lino inventou uma «casa portuguesa» que era dele mas ao mesmo
tempo a sua casa portuguesa teórica transformou-se, nessa prática pessoal,
numa arquitectura portuguesa...
Raul Lino viveu o suficiente para conhecer a oposição duma nova geração de
arquitectos, que se manifestou contra a consagração «nacional» do seu trabalho
durante o período marcelista. Hoje, à distância, compreende-se que não é que
Raul Lino estivesse errado, apenas era o tempo que trazia coisas novas. As
novas gerações precisam de respirar, precisam de comandar o seu próprio tempo,
não podem esperar pelo tempo da geração seguinte.
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