Eduardo Cintra Torres
:Cada vez há mais mensageiros


Até que enfim, caramba!, que a televisão nos liga qualquer coisa, a nós, os dos jornais! Passamos nós os dias a a escrever sobre televisão, o nosso maior inimigo, e ela, arrogante, não nos liga nenhuma... Agora, Francisco José Viegas contribui para o nosso amor-próprio com Primeira Página (RTP1, segunda a sexta), mas faz-nos sofrer: o programa vai de madrugada e só mesmo os mais fanáticos quererão saber às três da matina o que poderão ler às sete nas bancas. Talvez este seja o único programa em que a questão do horário tardio se torna realmente um contra-senso, pois valendo ele pelo directo, pelo instantâneo, sendo o único programa que não tem sentido gravar, dificilmente poderá ter àquela hora um público fiel.
Em quinze minutos, Viegas passa em velocidade acelerada por dezenas de jornais e muitas dezenas de notícias, muitas mais do que as de um telejornal. É que nós, os jornais, temos muitíssimo mais informação escrita do que as televisões. O texto de um jornal é superior ao da CNN em 24 horas de emissão. Todavia, a televisão dá muita informação para além das palavras: o espectador apreende muita coisa pelos sons e pelas imagens, pelo movimento e pela cor, pelo silêncio e pela montagem. Sendo o jornal e a TV processos tão distintos de comunicar, o exercício de comparar a quantidade (e mesmo a qualidade) da informação que cada um transmite é provavelmente inútil e apenas exacerba oposições que não beneficiam nenhum dos meios. Como a TV não pode, pelo seu processo comunicativo, dar a mesma quantidade de informação por palavras que a imprensa, Viegas vê-se aos ombros com uma tarefa bem difícil para ler tantos títulos: falar, falar, falar. Vê-se que não tem tempo para respirar.
Ele optou por dar não apenas as manchetes dos maiores jornais como as dos jornais regionais e locais. O que sendo louvável - há realmente temas interessantes em todos os jornais! - sobrecarrega o nível discursivo do apresentador. Para acrescentar informação, o programa apresenta em rodapé uma faixa corrida com os títulos de muitos jornais. Esse seria um processo de evitar que Viegas tivesse de, sofregamente, passar por todos os títulos, mas, paradoxalmente, muitas vezes os títulos em rodapé são referidos também pelo apresentador, numa duplicação desnecessária.
Muitos telejornais de muitos canais apresentam os títulos dos jornais do dia seguinte, mas com mais parcimónia: assumindo a diferença radical dos meios de informação, evitam dar uma exaustão de temas que o telespectador (mesmo bom leitor) não está em condições de assimilar. No caso de Primeira Página, e até porque Viegas é também um homem da escrita, há tantos jornais, tantos títulos, tantas notícias interessantes (que a televisão não deu nem dará), que ou são a mais ou o tempo não chega.
O interesse da televisão pela actividade dos jornalistas da imprensa escrita prossegue com a sitcom "Não És Homem Não És Nada" (RTP1, terças). À semelhança de "Jornalistas" (SIC, quartas), esta série situa-se numa redacção da imprensa escrita. Poderia pensar-se «é assim porque vivemos na sociedade da informação», mas esta frase feita fim-de-século não daria o quadro completo: na verdade, vivemos também na sociedade dos informadores, dos mensageiros. Em qualquer das séries é irrelevante a mensagem (as notícias) que os personagens produzem, apenas conta a vida pessoal e profissional e as consequências do trabalho para as relações entre eles. No fundo, também o programa apresentado por Francisco José Viegas não dá notícias, apenas dá a notícia sobre as notícias dos jornais. O meio é de facto a mensagem, o meio sobrepõe-se à mensagem. E ainda há quem diga que Marshall McLuhan está desactualizado!
"Não És Homem Não És Nada" parte duma situação engraçada e possível: uma redacção só de homens vê-se na contingência de ter de escrever uma revista feminina. Daí resultam situações reais como as dos pseudónimos femininos, e poderia haver outras, como a das cartas de leitores inventadas, tão frequentes na nossa imprensa.
O que não esteve bem nos primeiros episódios da série foi o machismo exagerado, caricato, do chefe de redacção João Lagarto, a desadequação de Joaquim Monchique ao personagem que representa e, principalmente, uma evolução imediata do argumento para situações do cómico absurdo, em torno do fotógrafo da revista. A inspiração em "Moonlighting" ("Modelo e Detective"), com Cybill Shepherd e Bruce Willis, é evidente nesse recurso à integração do impossível no real, e também na própria relação de amor-ódio entre a «chefe» Lencastre e o «subchefe» Lagarto. Mas em "Moonlighting" essa desconstrução da realidade só aconteceu ao fim de muitos episódios, e teve por consequência um caminho sem regresso: porque a absurdização da realidade do argumento atinge no coração a própria essência da 'sitcom', comédia de situação realista. Pisar o risco do absurdo significa ousar um novo género televisivo ao mesmo tempo que se descredibiliza o próprio género que se abraçou.
Seria diferente se o fotógrafo da série fizesse coisas invulgares por ter uma personalidade invulgar, mas não, ele é um ser vulgar, apenas tem um comportamento invulgar porque os OVNIs existem e ele aparece nas fotografias sem estar à frente da objectiva. Pouco trabalhados, os personagens são pouco convincentes. Os autores facilitaram acentuando o lado caricatural de cada um. Além disso, os argumentos não desenvolvem o próprio cerne da questão, não pondo em jogo por episódio uma faceta da realidade na relação homem-mulher na sociedade, a forma como os sexos se vêem um ao outro.
Ainda estão a tempo de corrigir, se não gravaram todos os episódios. Têm um bom ponto de partida e têm a sorte de poder contar com Alexandra Lencastre e João Lagarto, que já deram mais aos seus papéis do que os papéis a eles. Mas, tendo em conta o desastre cómico e narrativo que foi o terceiro episódio, receio que seja difícil alguma melhoria sensível.

 

 


Francisco José Viegas

 

 

 

 

Não és homem não és nada com Alexandra Lencastre e António Lagarto