Até que enfim, caramba!,
que a televisão nos liga qualquer coisa, a nós, os dos jornais! Passamos nós
os dias a a escrever sobre televisão, o nosso maior inimigo, e ela, arrogante,
não nos liga nenhuma... Agora, Francisco José Viegas contribui para o nosso
amor-próprio com Primeira Página (RTP1, segunda a sexta), mas faz-nos sofrer:
o programa vai de madrugada e só mesmo os mais fanáticos quererão saber às
três da matina o que poderão ler às sete nas bancas. Talvez este seja o único
programa em que a questão do horário tardio se torna realmente um contra-senso,
pois valendo ele pelo directo, pelo instantâneo, sendo o único programa que
não tem sentido gravar, dificilmente poderá ter àquela hora um público fiel.
Em quinze minutos, Viegas passa em velocidade acelerada por dezenas de jornais
e muitas dezenas de notícias, muitas mais do que as de um telejornal. É que
nós, os jornais, temos muitíssimo mais informação escrita do que as televisões.
O texto de um jornal é superior ao da CNN em 24 horas de emissão. Todavia,
a televisão dá muita informação para além das palavras: o espectador apreende
muita coisa pelos sons e pelas imagens, pelo movimento e pela cor, pelo silêncio
e pela montagem. Sendo o jornal e a TV processos tão distintos de comunicar,
o exercício de comparar a quantidade (e mesmo a qualidade) da informação que
cada um transmite é provavelmente inútil e apenas exacerba oposições que não
beneficiam nenhum dos meios. Como a TV não pode, pelo seu processo comunicativo,
dar a mesma quantidade de informação por palavras que a imprensa, Viegas vê-se
aos ombros com uma tarefa bem difícil para ler tantos títulos: falar, falar,
falar. Vê-se que não tem tempo para respirar.
Ele optou por dar não apenas as manchetes dos maiores jornais como as dos
jornais regionais e locais. O que sendo louvável - há realmente temas interessantes
em todos os jornais! - sobrecarrega o nível discursivo do apresentador. Para
acrescentar informação, o programa apresenta em rodapé uma faixa corrida com
os títulos de muitos jornais. Esse seria um processo de evitar que Viegas
tivesse de, sofregamente, passar por todos os títulos, mas, paradoxalmente,
muitas vezes os títulos em rodapé são referidos também pelo apresentador,
numa duplicação desnecessária.
Muitos telejornais de muitos canais apresentam os títulos dos jornais do dia
seguinte, mas com mais parcimónia: assumindo a diferença radical dos meios
de informação, evitam dar uma exaustão de temas que o telespectador (mesmo
bom leitor) não está em condições de assimilar. No caso de Primeira Página,
e até porque Viegas é também um homem da escrita, há tantos jornais, tantos
títulos, tantas notícias interessantes (que a televisão não deu nem dará),
que ou são a mais ou o tempo não chega.
O interesse da televisão pela actividade dos jornalistas da imprensa escrita
prossegue com a sitcom "Não És Homem Não És Nada" (RTP1, terças). À semelhança
de "Jornalistas" (SIC, quartas), esta série situa-se numa redacção da imprensa
escrita. Poderia pensar-se «é assim porque vivemos na sociedade da informação»,
mas esta frase feita fim-de-século não daria o quadro completo: na verdade,
vivemos também na sociedade dos informadores, dos mensageiros. Em qualquer
das séries é irrelevante a mensagem (as notícias) que os personagens produzem,
apenas conta a vida pessoal e profissional e as consequências do trabalho
para as relações entre eles. No fundo, também o programa apresentado por Francisco
José Viegas não dá notícias, apenas dá a notícia sobre as notícias dos jornais.
O meio é de facto a mensagem, o meio sobrepõe-se à mensagem. E ainda há quem
diga que Marshall McLuhan está desactualizado!
"Não És Homem Não És Nada" parte duma situação engraçada e possível: uma redacção
só de homens vê-se na contingência de ter de escrever uma revista feminina.
Daí resultam situações reais como as dos pseudónimos femininos, e poderia
haver outras, como a das cartas de leitores inventadas, tão frequentes na
nossa imprensa.
O que não esteve bem nos primeiros episódios da série foi o machismo exagerado,
caricato, do chefe de redacção João Lagarto, a desadequação de Joaquim Monchique
ao personagem que representa e, principalmente, uma evolução imediata do argumento
para situações do cómico absurdo, em torno do fotógrafo da revista. A inspiração
em "Moonlighting" ("Modelo e Detective"), com Cybill Shepherd e Bruce Willis,
é evidente nesse recurso à integração do impossível no real, e também na própria
relação de amor-ódio entre a «chefe» Lencastre e o «subchefe» Lagarto. Mas
em "Moonlighting" essa desconstrução da realidade só aconteceu ao fim de muitos
episódios, e teve por consequência um caminho sem regresso: porque a absurdização
da realidade do argumento atinge no coração a própria essência da 'sitcom',
comédia de situação realista. Pisar o risco do absurdo significa ousar um
novo género televisivo ao mesmo tempo que se descredibiliza o próprio género
que se abraçou.
Seria diferente se o fotógrafo da série fizesse coisas invulgares por ter
uma personalidade invulgar, mas não, ele é um ser vulgar, apenas tem um comportamento
invulgar porque os OVNIs existem e ele aparece nas fotografias sem estar à
frente da objectiva. Pouco trabalhados, os personagens são pouco convincentes.
Os autores facilitaram acentuando o lado caricatural de cada um. Além disso,
os argumentos não desenvolvem o próprio cerne da questão, não pondo em jogo
por episódio uma faceta da realidade na relação homem-mulher na sociedade,
a forma como os sexos se vêem um ao outro.
Ainda estão a tempo de corrigir, se não gravaram todos os episódios. Têm um
bom ponto de partida e têm a sorte de poder contar com Alexandra Lencastre
e João Lagarto, que já deram mais aos seus papéis do que os papéis a eles.
Mas, tendo em conta o desastre cómico e narrativo que foi o terceiro episódio,
receio que seja difícil alguma melhoria sensível.
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Francisco José Viegas
Não
és homem não és nada com Alexandra Lencastre e António
Lagarto
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