Eduardo Cintra Torres
:Jogos & negócios


Os concursos são o destino da televisão comercial, mesmo quando ela é do Estado. E longe vão os tempos das Cornélias! Agora, a sabedoria fica à porta do estúdio e já nem as perguntas interessam. Com o passar dos tempos, a parte do concurso tem perdido a importância e o clima do jogo fica na prática reduzido ao sonho que hoje comanda a vida como bola colorida entre as mãos de uma criança: o dinheiro. Os concursos são negócios. O povo está espertíssimo, quer lá ele saber das perguntas, quer é o dinheiro a que tem direito por ir lá «participar»!
No concurso "Quem Quer ser Milionário?" as perguntas e as respostas, embora constituam o eixo do programa, são irrelevantes. O que interessa é que o bagulho vai aumentando a ritmo logarítmico até aos 50 mil contos.
Com uma experiência ímpar de concursos, Carlos Cruz é a pessoa certa para a versão portuguesa deste concurso (RTP1, segunda a sexta). Ele tem uma excelente empatia com os concorrentes, é muito genuíno no contacto - e sabe não só pô-los a sofrer como ajudá-los (o que eles às vezes não percebem).
Mas as perguntas não interessam nada. Saber que Alfama é um bairro de Lisboa e não da Guarda vale 50 contos, mas também podia valer mil. E quem quer saber realmente se o realizador do Belarmino foi Manoel de Oliveira ou Fernando Lopes? Só interessa se o concorrente falha ou acerta, seguindo em frente.
Na versão do "Milionário" na Grã-Bretanha ainda nenhum concorrente chegou ao fim. Nos Estados Unidos, onde o capitalismo e a iniciativa individual são rei e rainha, um cobrador de impostos de 31 anos ousou subir até à última pergunta e levou para casa um milhão de dólares - 200 mil contos, se calhar livres de impostos. Como será cá? Se os concorrentes sabem tão poucochinho terão dificuldades em trepar pelos zeros à esquerda do cifrão. Até agora, os nossos candidatos a milionários parecem ter ainda menos ambições do que os britânicos. Os portugueses são contentinhos. Mais vale um pássaro na mão, etc. Por cá seria ainda difícil aplicar o formato dum concurso da Fox TV americana chamado Greed (cobiça, ganância, avareza): o factor cobiça aparece quando uma opção de jogo permite a um concorrente eliminar o seu próprio parceiro e ficar com os ganhos de ambos. Nada disso. Os nossos concursos ainda são pequeninos, à medida da nossa ambição. Mas ela vai crescendo. Já se vai notando por aí a existência duma classe de profissionais dos concursos de TV, mas é muito incipiente. Esses são os que estudam para participar, como acontece noutros países. E depois há os outros. É ver aqueles contentes dizendo a Henrique Mendes que 100 contos ou 200 contos é pouco e a preferirem ver um prémio escondido onde tanto pode estar um balde de plástico como um automóvel ("Negócio Fechado", SIC, sábados). É vê-los de olhos brilhantes quando sentem o calor das notas que saem do bolso de Henrique Mendes. Também neste concurso a prova em si é irrelevante, sendo pensada um pouco como as dos "Jogos sem Fronteiras": são tolices simpáticas só para divertir. Os prémios e a negociação com o apresentador, eis o chamariz.
Verifica-se, assim, que ambos os concursos vivem muito da capacidade dos apresentadores. Quer Carlos Cruz, quer Henrique Mendes, foram boas escolhas para estes programas populares. Basta imaginar "Quem Quer Ser Milionário?" apresentado por Isabel Angelino ou "Negócio Fechado" apresentado por José Figueiras. A televisão premeia os bons veteranos com carreiras iniciadas muito antes do 25 de Abril. Deixando para trás os casos humanos de "Ponto de Encontro", que no final já eram alguns casos quase mesquinhos, Mendes está na SIC não só no "Negócio Fechado" como no "Médico de Família" e Carlos Cruz está todos os dias da semana com "Quem Quer Ser Milionário?" e ainda com outros programas já na calha na RTP. Estranho é que o concurso da RTP1 se repita diariamente. Não só o formato tem todo o ar de ser semanal como aquela divisão em pedacinhos, tipo telenovela, destrói o enorme "stress" que o jogo - e principalmente Carlos Cruz - podem criar, "suspense" que é o elemento mais satisfatório do concurso (os espectadores adoram sofrer com "stress"). Quando nos preparamos para ver o concorrente a responder a uma pergunta de 1750 contos, eis que Carlos Cruz anuncia que fica para amanhã. Não são só os concursos que são um jogo. A própria televisão é que é um jogo.
Já o jogo Benfica-Sporting para a Taça se transformou num caso que dominou por completo a actualidade do país durante dois dias. Uma vez mais, ficou patente que não é possível lidar com o fenómeno futebol como um desporto. É um puro negócio, e à margem da economia normal. Pelo que vejo na televisão, o futebol português é um negócio em que falta decência, lisura, boa educação, hombridade (e bom futebol, já agora). O dinheiro que há parece que serve apenas estratégias de enriquecimento pessoal e não de engrandecimento dos clubes. Tudo porque o negócio do futebol português vive acima da lei. O governo tem mais medo dos clubes de futebol do que duma sondagem negativa. Ao fazer o que fez do seu noticiário na noite do jogo, a SIC prestou um mau serviço à dignidade da informação porque seguiu a mesma motivação dos negociantes do desporto: fez negócio à conta do jogo. Aquele "Jornal da Noite" não era informação, não era notícias: era negócio. Transformou o noticiário numa interminável chatice de duas horas e sete minutos, imprópria da sua habitual qualidade informativa, apenas para capitalizar audiências com extractos do jogo que mais ninguém estava a transmitir. A informação ficou ao serviço do relato do jogo. A ética habitual do "Jornal da Noite" ficou à porta do estúdio. Os jogos pertencem aos clubes. Eles que façam o que quiserem com o que é seu. Transmitir os jogos não é serviço público, é negócio. Mas fazer da transmissão do jogo um instrumento de cizânia e de violação das normas da informação, eis o que a SIC podia ter evitado. Não foi livre informação, foi capitalismo selvagem.
Para quem tem metade do "share" dos quatro canais generalistas, perder a dignidade informativa e até empresarial por um punhado de pontos percentuais é desnecessário. Ele há noites em que José Alberto Carvalho gostaria decerto de trocar de óculos - mas por um par de óculos escuros.