Eduardo
Cintra Torres
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DEZ ANOS |
O mundo encheu-se de televisão. O media ganhou importância, mas os seus conteúdos específicos perderam-na. Há mais televisão e menos gente a ver cada programa. As horas de TV produzida em Portugal multiplicaram-se. No âmbito da sociedade do espectáculo, a indústria televisiva incentivou indústrias parasitas como a da imprensa sobre televisão. Nesta década, as elites, incluindo os jornalistas de imprensa, vergaram-se à televisão enquanto meio de comunicação. Longe vão os tempos em que o parlamento aprovava de urgência um voto de protesto contra um vulgar programa de entretenimento (A Máquina da Verdade, SIC, 1995) ou em que o conselho de ministros discutia durante duas horas outro programa de entretenimento (A Cadeira do Poder, SIC, 1997). Agora, tudo é aceite e até apreciado. Já quase não há apocalípticos. O chamado “lixo” televisivo incomoda pouco mais do que os “lixos” que se atravancam nas bancas de imprensa e nas livrarias. Mesmo nos jornais de referência como o PÚBLICO o espaço dedicado à televisão aumentou imenso nestes dez anos. A televisão “naturalizou-se” no ambiente quotidiano e também no horizonte intelectual. Quase todos os comentadores, políticos, colaboradores e os próprios jornalistas escrevem com regularidade sobre televisão e com a mesma “naturalidade” com que a televisão entra pelos olhos e ouvidos. Inscrita nos indivíduos, a televisão torna-se tu cá tu lá com toda a gente, pelo que se dá em boa parte a conhecer e a revelar na construção dos seus conteúdos: há uma literacia do media que quase toda a gente partilha e consegue descodificar, obrigando a análise profissional a procurar caminhos cada vez mais afastados dos argumentos já partilhados pelas opiniões pública e publicada. O interesse da universidade pelo estudo dos media, apesar de ainda pequeno e não organizado no que toca à televisão, aumentou de tal forma que existe hoje um número crescente de pessoas com trabalho nesta área e com capacidade de análise. A produção académica sobre os media e a televisão aumentou exponencialmente em todo o Ocidente, em particular no mundo anglo-saxónico, mas também em França e em Espanha, para além da Itália, onde há uma tradição antiga. Em Portugal, começou-se com o atraso habitual de duas décadas, mas já há mesmo assim um conjunto de académicos exigente e atento. Enquanto a televisão mudava com o mundo, também a mim ela me fez mudar. Quando comecei, não tinha formação específica para escrever crítica de televisão. Mas tive o impulso, difícil de explicar mas que julgo resultante da tentativa de relacionar certos programas com leituras que fiz na época. De então para cá, a minha vida profissional reorientou-se de novo para a escrita, especialmente sobre a televisão, a publicidade e os media em geral. Por causa da televisão, voltei aos bancos da escola: precisei de me especializar. Como a televisão não é estudada em Portugal como disciplina académica, escolhi os caminhos que permitem o acesso às chaves explicativas da televisão: a sociologia e os estudos mediáticos. Ao mesmo tempo, senti a necessidade de estudar aspectos relativos à construção das narrativas audiovisuais e tive de procurar ferramentas de outras matérias, nomeadamente em redor da crítica literária. São caminhos menos frequentes nos trabalhos académicos sobre televisão, dado que a maioria aborda o jornalismo televisivo, o que é redutor num media de tal forma entrelaçado com a realidade e o imaginário sociais. Por tudo isto, a crítica de televisão teve de evoluir e de se adaptar. Dado que o objectivo da crítica é dar pistas aos leitores para eles mesmos analisarem programas e factos televisivos, o desafio é dizer algo de novo sobre programas que toda a gente viu e muitos comentaram ou então dizer algo de inteligível sobre programas que nem mesmo os leitores viram. Quanto à ética da crítica, procurei reflectir sobre ela desde o início, como se pode ver no texto de introdução a Ler Televisão. O Exercício da Crítica contra os Lugares-Comuns (Celta, 1998), livro que reúne as minhas críticas de 1995 a 98. Desde então, nada mudou: a ética reúne valores dos mais imutáveis. O mais difícil ao crítico é ser independente e defender a sua independência. O universo mental de muitas pessoas está formatado para a dependência própria e alheia: a independência é para elas incompreensível, não está prevista nas relações profissionais, sociais e empresariais. E há mesmo pessoas no meio televisivo, jornalístico e político que não aceitam a urbanidade e o civismo do convívio com a crítica. Num país pequeno e com poucos empregos, a independência é uma loucura. As pessoas calam-se. Todos os dias há notícias que ficam por dar porque jornalistas temem, com razão, pelo seu futuro. E instituições como os partidos e as maçonarias são abrigos de fracos para quem ser forte é pisar. Os poderes, político ou mediático, abominam a independência por não poderem controlar pessoas independentes. Nestes dez anos, o que mais lamento foi não ter dado mais atenção à crítica de rádio, que deixei de fazer por colidir com outras colaborações profissionais. E também não ter feito mais ainda a crítica sistemática abrangente a todos os media, incluindo a imprensa, numa perspectiva não só mediática mas também política e sociológica. Mas isso foi apenas porque me pareceu necessário manter a primazia da crítica de televisão. * * * No sábado, 8 de Outubro, o PÚBLICO incluiu um texto do deputado do PS Arons de Carvalho em que, pela terceira vez desde 2001, ele, totalmente a despropósito, “denunciava” (a palavra é dele, em 2001) uma minha relação profissional com a Media Capital (a co-autoria de canais de música na internet); no dia seguinte e no mesmo local, voltei a esclarecer essa colaboração; e escrevi que ela não condicionava a minha opinião sobre o interesse do PS e do governo na compra da Media Capital pela Prisa. Seis dias depois da denúncia de Arons, a Media Capital interrompeu essa minha colaboração. Desta forma, ficou satisfeita aquela que era, na minha opinião, a intenção da denúncia. Não é a primeira vez que, em plena “democracia consolidada”, sou prejudicado na minha actividade profissional por “delito” de opinião. Mas não tenciono vergar-me a pressões e prejudicar com isso a minha consciência e a opinião que presto aos leitores. |