Eduardo Cintra Torres

A Televisão como religião


Há um anúncio da luta contra a sida em cartazes de rua que mostra um preservativo esticado longitudinalmente.

É o único reclame que mostra o preservativo tal como é usado. Os outros mostram a embalagem ou não mostram nada. E, no entanto, este anúncio é, digamos assim, “dessexualizado”. A cor de fundo, o azul, retira-lhe qualquer conotação de sensualidade. E o preservativo esticado mais parece um instrumento médico do que um objecto associado ao prazer sexual. O programa da TVI AB...Sexo segue o mesmo caminho desapaixonado (TVI, segundas). Qual o objectivo do programa? Captar audiências pelo tema e pela pormenorização dos assuntos. Não é um consultório amoroso, género actualmente reservado aos talk-shows. Para o espectador entender que a apresentadora é “especialista”, AB...Sexo e a sua promoção nomeiam Marta Crawford como “doutora”, grau académico que nunca identifica os apresentadores doutros programas. Nos anúncios de dentífricos, os publicitários põem os actores de bata e óculos para parecerem “doutores”. No AB...Sexo, prefere-se o tratamento por “doutora”. Sôfrega, Crawford não quer que falte nada aos espectadores nas explicações e detalhes sobre a fisiologia do aparelho reprodutor, formas de evitar doenças e melhorar performances sexuais (por exemplo: o uso de película aderente para alimentos na cozinha como forma de preservativo feminino no sexo oral). O sexo é, portanto, “desemocionado”: não amor, atracção ou paixão, mas ciência e técnica, carne, fluidos, mecânica dos movimentos corporais. Para quem quer saber tudo sobre prepúcios ou lábios vaginais (“o primeiro terço da vagina é muito importante”, informa Crawford), eis então a lição gratuita que a TV oferece sem a vergonha de se saber que se está a ver. Para quem apenas pretende usufruir do prazer inexplicável do sexo, este programa é uma grande AB... Seca. Ao contrário, Fiel ou Infiel (TV, sábados) faz do mais pequeno detalhe da relação amorosa uma peixeirada emocional sem limites. O programa encena armadilhas sexuais com actores amadores e mostra-as em estúdio a uma audiência popular desejosa de virar os polegares para baixo, como os romanos que votavam no Coliseu a morte de gladiadores em dia de azar. O apresentador trouxe do Brasil este modelo da mais reles forma de entretenimento heterossexual da nossa televisão, fazendo companhia, por contraste, ao imaginário gay do incendiado Senhora Dona Lady ou de Herman SIC. João Kléber não tem limites no estilo lumpen-televisivo que desenvolveu no Brasil. Numa das emissões, Kléber montou uma cena inimaginável em Portugal há cinco ou dez anos. Como de costume, mostrou um vídeo de estética pornográfica em que o “Pedro”, que “só quer dinheiro e mulheres boas”, simulava traição à “namorada” (“uma baleia”) com uma “actriz”, de traseiro aparelhado por fio dental, em cima do macho “cheio de tesão”. O apresentador pára aí a imagem do vídeo quase-porno e pede à audiência presente em estúdio e “a todos os homens de Portugal” para rezarem com ele a “oração da bunda”. Um letreiro apela: “Homens! Preparem-se! Vem aí a oração da bunda!” Kléber diz que “é o momento mais sublime” e ordena: “Atenção, todos os homens de norte a sul do país: ajoelhem-se.” A audiência no estúdio ajoelha e junta as mãos, como se virada para o altar na igreja. Um homem, de mãos na testa, parece imbuído da espiritualidade religiosa. E todos, ajoelhados, de mãos juntas, virados para o apresentador, rezam com ele a “oração da bunda”: Bunda nossa, que estais tão perto Adorados sejam os teus contornos Venha a nós o teu rego Seja feito ao teu gosto Assim na cama como no chão Alguns dos presentes dizem “ámen” e fazem o sinal da cruz. “Em que país católico se ajoelha para rezar ao deus das nádegas num sábado à noite na televisão?”, perguntava o ARTE promovendo “A Televisão dos Portugueses” (15/10). A cena foi reproduzida nessa edição da excelente série Todas as Televisões do Mundo (sábados, 09h10). A série, magnífica, mostra cada país através da sua TV. Faz o mesmo que um viajante quando chega ao quarto de hotel: através do zapping, situa-se no terreno. O episódio português tinha, como outros, enorme dinamismo e rigor na explicação do país através da televisão e vice-versa. A realização de Véronique Berthoneau conseguiu em 26 minutos mostrar extractos significativos, ouvir inúmeros depoimentos (Rodrigues dos Santos, Herman, Goucha, Luís Marinho, Mafalda Mendes de Almeida, Diana Andringa, Rui Cardoso Martins, Pedro Miranda, António Moura Mattos, eu), ouvir populares no bairro da Bica e uma família vulgar. A quantidade de informação em palavra e imagem é enorme. A rapidez da montagem é fantástica, algo a que nem os espectadores nem os técnicos portugueses estão habituados, num sinal de atraso do nosso audiovisual em relação às tendências dos países mais desenvolvidos. O ARTE passou dias antes (13/10) outro documentário de grande interesse, Viva a TV... ou Quase!, assinado por Serge Moati, autor, realizador, apresentador, director na TV francesa desde há 40 anos. Ao longo de 52 minutos, Moati mostra centenas de imagens expressivas das TV do mundo e tem tempo para reflexões rápidas e conversas com gente do meio mas também especialistas e pensadores, como o filósofo Michel Serres. Moati centrou em si mesmo a sua viagem sobre a TV, não por exibicionismo, mas porque se tratava de uma reflexão pessoal e por ser através de casos pessoais que a TV consegue audiências. Como exemplo da importância da televisão, o documentário mostrou a sua chegada de rompante ao Butão, onde o rei, pai do povo, decidiu em 1999 que, em vez de nenhum canal, passaria a haver 48 neste país perdido nos Himalaias. Como era viver sem televisão no Butão? E como é viver hoje sem televisão em França? Foi também o ARTE que apresentou recentemente (19-23/09), num dos seus “folhetins documentais”, um docudrama em que várias famílias se prestavam a viver um mês sem TV e depunham acerca da experiência. Eis televisão a sério: televisão que se questiona e questiona sobre si os especialistas e os cidadãos. Por cá, nada, nem mesmo a “oração da bunda” é debatida. Por cá, o “arrastão” inventado foi debatido num único programa, da SIC, em que Conceição Lino não permitiu que os convidados criticassem o papel da televisão. E nenhum canal se autodesmentiu ou pediu desculpa pelo “arrastão”. Ao ARTE, o director de informação da RTP disse que o “serviço público” não o fez porque não é costume.