Eduardo Cintra Torres

Três casos de propaganda e falsificação


Margarida Pinto, correspondente de El Pais em Portugal, foi afastada: terceira demissão e primeira vítima do jornalismo na compra da Media Capital pela Prisa.

Foi substituída por um redactor espanhol que, ingenuamente e com enorme falta de chá para com a colega despedida, revelou as instruções que recebeu (PÚBLICO, 04.10): Miguel Mora disse que a “nova prioridade” jornalística do jornal em Portugal é que a “imagem de Portugal deixe de ser inexistente ou catastrófica, que não tenha de ser apenas a má notícia”. Acrescentou que “vai mostrar mais aspectos positivos de Portugal, de âmbito cultural ou político”. São declarações espantosas. O jornalista traz um mandato político para cumprir: mostrar “aspectos positivos” da política. Isto é, fazer propaganda do Governo e do poder instalado em Portugal, não só porque o PS é da família política da Prisa como porque a Prisa tem que garantir em cada dia que passa ao Governo português e ao PS que, em ficando com a Media Capital, os “aspectos positivos” da governação do PS também serão dados a conhecer aos portugueses. Aqui está, tintim por tintim, o negócio Prisa-Media Capital que o Governo do PS quer apressar. A acção da Prisa já começou: despediu uma jornalista portuguesa por censura, por ela ter feito bem o seu trabalho. É importante frisar que as notícias de Pinto para El Pais eram equilibradas; no Verão, mostraram o país como os portugueses e toda a Europa o viram: a arder, com desalento. Mas as notícias de El Pais fizeram ricochete em Lisboa e desagradaram ao Governo PS. O resultado está à vista. Para fazer o frete ao governo de Lisboa, El Pais despede uma jornalista (o Sindicato dos Jornalistas, sempre atento, não se pronunciou) e coloca alguém que lhe garanta “jornalismo” com um programa político. Entretanto, em Lisboa o Governo só tem que lançar a passadeira vermelha para que o negócio da Prisa se concretize o mais depressa possível. * * * Ao mesmo tempo, na ilha do Doutor Moreau acontecem outras relações aterrorizadoras entre o poder político e a imprensa. O PÚBLICO divulgou uma carta pornográfica de Alberto João Jardim dando instruções ao director do Jornal da Madeira, o único jornal no país que pertence ao Estado. O caso é típico da relação entre o poder e a imprensa que dele depende economicamente. Acontece muito nas autarquias, como o é a ilha do Doutor Moreau: uma autarquia grande, rodeada de água por todos os lados. Acontece também nos centros de decisão, como se vê pelo caso do quadrilátero Prisa-Governo PS-Media Capital-Alta Autoridade. A situação na Madeira é escandalosa. Os órgãos de soberania, a começar pelo Presidente da República, calam-se perante o universo de pressão e silenciamento que existe na Região Autónoma e que atinge os 250 mil madeirenses, cerca de 2,5 por cento da população portuguesa. A RTP, empresa de serviço público, colabora no condicionamento do debate democrático na Madeira. O canal regional do Estado não fez um único encontro eleitoral por ser esse o interesse do PSD Madeira. A administração da RTP, apesar de ter toda a autonomia para nomear a direcção da RTP local, negociou com o Governo regional a nomeação do cessante director e está a negociar neste momento a sua sucessão. Sem debate democrático não há democracia completa. Jardim consegue de facto condicionar liberdades essenciais. É tempo de o Estado democrático agir, ou não é democrático também ele. * * * Continuemos na fronteira do jornalismo. A RTP1 apresentou o documentário Repórter X, sobre o jornalista e autor Reinaldo Ferreira (04.10). O canal tem apresentado reportagens vulgares a que chama “documentários” com presunção ou ignorância. Era o caso das duas que vi – sobre a atleta para-olímpica Leila Marques e sobre o director de fotografia Eduardo Serra. Já o Repórter X é um verdadeiro teledocumentário, um docudrama com qualidade. Este sub-género do documentário está em evolução constante e foge de uma definição, mas o Repórter X, com as suas reconstituições estruturando a narrativa não deixava margens para dúvidas. O actor João Reis representou a personagem com brio. A sua interpretação seguiu o conceito do documentário: fez de Reinaldo, com o exagero que se imagina, uma espécie de Balzac do jornalismo de massas da nossa 1ª República. O documentário foi construído com eficácia e ritmo como uma narrativa de vida, mas infelizmente sem contextualização histórica, sociológica ou literária. Reinaldo Ferreira (1897-1935) é uma figura curiosa. Assinou reportagens, investigações quase policiais, novelas, peças de teatro, filmes de ficção baseados em casos reais. Marcava a diferença e trabalhava muito. O documentário “reconstituía-o” em Paris escrevendo para 12 jornais diferentes. Estava fechado em casa e só ao fim da tarde saía à rua a “recolher elementos” para mais uma dúzia de crónicas no dia seguinte... Usou pseudónimos, como Repórter X. Inventou reportagens. A partir de realidades que conhecia ou apreendia ao de leve, usava a imaginação para criar reportagens sensacionais. Escreveu sobre os miseráveis da Baixa de Lisboa simulando ter passado por um deles. E escreveu de Paris sobre a Rússia soviética como se lá estivesse estado. Quando, no final da vida, escreveu as Memórias de um Ex-Morfinómano, já tinha adquirido o estatuto de mito, à custa de admiradores e detractores. Até hoje, Reinaldo Ferreira surge como uma grande figura do jornalismo. Mas tem faltado que o mito seja corrigido: porque ele também era um grande aldrabão. Este documentário poderia ter servido para estimular o debate acerca deste jornalismo sem escrúpulos que punha o êxito acima da verdade, mas preferiu insistir na mitologia do “Repórter X” imaginoso e “romântico”, eufemismo usado para adoçar a aldrabice jornalística. Houve contemporâneos que o condenaram por isso. O documentário dá conta, mas esse facto é apresentado apenas como mais um tijolo na construção do mito positivo. O que sobra hoje de Reinaldo Ferreira? Bom jornalismo? Não. Boa ficção ou drama? Nem pensar. Sobra esse mito de ousadia e desplante, de uso dos novos media de massas para se distinguir, para surpreender. Sobra o empreendedor hiper-activo. Sobra o pioneiro da sociedade do espectáculo, que fez de si mesmo personagem. O documentário de Alexandre Reina, ao adoptar como seu o ponto de vista narcísico de Reinaldo Ferreira, contribuiu para alimentar o mito de sempre mas não para contextualizar o indivíduo e o seu jornalismo entre o sensacionalista e a aldrabice, ao serviço de si mesmo e do aumento das suas audiências.