Eduardo Cintra Torres

Entretenimento Militar Obrigatório


Quando fiz a tropa em 1979-80, fiquei com as opiniões contraditórias sobre a estrutura e as missões militares: por um lado, as Forças Armadas eram necessárias para o país e úteis para funções sociais; por outro lado, o desperdício era generalizado, a corrupção de “majores das batatas” era patente à vista (des)armada, e a imensa soldadagem justificava um corpo exageradíssimo de oficiais e sargentos herdado da guerra colonial.

O serviço militar tinha alguma coisa de serviço cívico ou público, dava a conhecer o país e os portugueses uns aos outros. Nos quartéis convivia-se com gente de todo o lado. Os ilhéus vinham ao continente pela primeira vez e vice-versa. Os pais do camponês, que realmente amavam a pátria, gastavam dois dias entre Bragança e Lisboa para assistir ao juramento de bandeira do filho. E na recruta os magalas aprendiam regras de higiene e meia dúzia de conhecimentos úteis para a vida. Mas não muitos, porque as elites, mesmo a militar, não gostavam de ensinar demasiado, não fosse o povo ficar a saber mais do que elas. Conheci a recruta nas duas situações: fui instruendo em Santarém e instrutor em Lisboa. A entrada na vida militar é muitas vezes traumática porque se acede a um universo simbólico diferente e porque os militares que dirigem as recrutas acentuam o choque da transformação exagerando na praxe, na disciplina, na gritaria. Integram os magalas no sistema. Feita a domesticação, tenta-se passar o tempo o melhor possível. Quando termina a tropa, sai-se de um período liminal de sonho-pesadelo que se sabe sem regresso. Depois de 1975, as Forças Armadas só chamavam à tropa a rapaziada necessária para encher quartéis, fornecer instrutores de recrutas, motoristas, criados e faxineiros e, também, para defender a pátria. No início dos anos 80, era então colaborador do Diário de Notícias, apontei num artigo o erro fulcral do nosso serviço militar que haveria de levar à sua morte: sendo obrigatório, não era universal. Só uma parte dos rapazes eram chamados, o que os colocava em desvantagem face aos que entravam logo no mercado de trabalho. Não sendo universal, o serviço militar era totalmente injusto e inconcebível politicamente, pois revelava que os ramos só chamavam a malta de que precisavam para os seus serviços e servicinhos e o Estado não cuidava de cumprir uma regra essencial dos ideais republicanos: a igualdade nos deveres dos cidadãos. O resto é história: os pipis das juventudes partidárias, essas súcias de parasitas do sistema político e do país, preferiam o bem-bom do parlamento aos rigores de Santa Margarida ou da Serra dos Candeeiros. O serviço militar obrigatório acabou. Desapareceu na juventude e nas famílias o vivido imaginário simbólico da farda; os traumazinhos da praxe, de que uma parte da sociedade não quer prescindir, passaram da tropa para a universidade. Tendo morrido o conceito social de “fazer a tropa” mas sem desaparecer um certo fascínio da disciplina e da farda, como não haveria a televisão de se apropriar deste imaginário? A ideia do programa 1ª Companhia (TVI) é interessante dentro do género dos espectáculos televisivos de realidade. Este reality show é mais um rito de passagem adaptado à sociedade do espectáculo. Fecham-se dez pessoas num território fechado como um quartel e sujeitam-se ao simulacro das agruras da recruta: disciplina, tarefas menores, hierarquia, esforço físico. Os indivíduos sofrem com uma “nova ordem” social, a da vida militar, que lhes parece irracional até (muitos deles) se domesticarem e apropriarem dela. O conceito da 1ª Companhia contraria o dos programas amaricados da SIC, sublinhando características consideradas viris como a resistência, a coragem, etc. Dentro da farda, as celebridades deixam de o ser, pois são igualizadas, o que lhes desperta, como a qualquer magala, quer o horror da desindividuação quer o conforto da partilha comunitária. O formato que a TVI importou de França – o país que modernamente inventou o serviço militar geral e obrigatório – reúne aqui dez celebridades, ora anónimas (passe o paradoxo), ora nem tanto. A televisão precisa de celebridades e fabrica-as: faz uma “gala”, mostra caras que nunca ninguém viu, ouve-lhes a voz, bate e palmas e já está, temos celebridades como sopas instantâneas. À 1ª Companhia regressam José Castelo Branco e Alexandre Frota. Eles tomam o lugar antigo, agora em versão vernácula e indigente, de Bucha e Estica ou de Jerry Lewis e Dean Martin: um palhaço, o outro semi-sério, um mais macho e outro mais para o lado de lá. Frota e Branco criam uma relação de amor-ódio que lhes permite manter-se o máximo tempo em jogo, pois os espectadores sabem que expulsar um deles seria eliminar o binómio. Os outros participantes são escolhidos pela sua proximidade a estereótipos que toda a gente conhece dos catálogos psicossociais que borbotam dos media populares. Semelhante na estrutura e funções ao Big Brother e à Quinta das Celebridades, a 1ª Companhia arrisca-se à monotonia e ao aborrecimento, duas características bem presentes na vida militar. Contrariando-as, a produção fabricou uma falsa recruta, com mais tempo de lazer do que de treino e aprendizagem: de esforço físico tem-se visto apenas alguns momentos, que iludem o espectador. A televisão tem que fazer da recruta um espectáculo, com as habituais “galas”, votações, público ao vivo, Júlia Pinheiro gritando mais do que nunca, as personagens estereotipadas cumprindo as suas funções cómicas ou sérias, etc. Em suma, entretenimento popular. O espectador diverte-se vendo celebridades transformadas em recrutas e tratadas como não-celebridades no rito de passagem militar. O programa promove o interesse pela tropa quando a tropa desapareceu do horizonte social. Promove o gosto pela farda numa altura em que uns militares são proibidos de a usar em manifestações e os outros militares se envergonham de a usar na rua. A TVI mantém vivo o mito do magala! A proibição imposta pelo Exército à produtora da 1ª Companhia de usar fardas verdadeiras no programa e a pressão para o ministro da Defesa “fazer alguma coisa” são patéticas, porque hoje este programa promove mais a imagem simbólica dos militares do que os próprios militares. Com um pouco mais de reflexão, as chefias militares talvez tivessem percebido que era melhor aproveitarem a boleia. É mais um exemplo da insegurança identitária que grassa nas Forças Armadas. Pelo seu lado, as audiências, isto é, o povo, tem uma opinião melhor da função militar do que a própria tropa: os 40 por cento de share não enganam. Quem faz hoje a aliança povo-MFA é a televisão.