Eduardo Cintra Torres

OS BELOS E O MONSTRO


Quando fizerem a sua história, os movimentos gay olharão para 2005 como um dos seus anos-chave: a notoriedade da condição gay deu um salto qualitativo.

Em 2005, um caso em Viseu serviu para quebrar o enguiço da publicidade da condição gay em meios sociais mais conservadores; uma novela brasileira na SIC e duas portuguesas na TVI tratam a homossexualidade de forma positiva, permitindo em todos os meios sociais um debate fácil através da reinvenção ficcional, como nos mitos; no teatro, uma peça, Gay Solo dá “lições” para se “compreender o gay português”, peça que o crítico Paulo Trindade afirma afastar-se da transcendência artística para ser apenas um “manifesto de glorificação do gay português” (PÚBLICO, 14.09); dois programas da SIC, Esquadrão G e Senhora Dona Lady, utilizam transformismo e condição gay como elemento fundamental; na TVI, a Quinta das Celebridades permitiu que um assexuado de maneirismos identificados com um subgénero gay se tornasse a namoradinha dum certo Portugal; etc. A “naturalização” da homossexualidade passa pela TV e outros media. A “identidade gay” tornou-se socialmente correcta. Homens “conhecidos” apenas por serem gays pousam para as revistas rosa e dizem: “Sou gay, e depois?” Para um novo silêncio dos conservadores contribui a mudança de atitude da Igreja católica, que incorporou a condição gay na sua definição da condição humana. Só fascizantes ou fascistas vocalizam oposição à nova atitude face à homossexualidade. A radical mudança de atitude na sociedade pode ter efeitos perversos a prazo, se originar uma espiral de silêncio que leve a maioria a reprimir as suas opiniões e sentimentos sobre o assunto. Quando se inverte a espiral de silêncio pode ocorrer uma forte libertação de recalcamentos. O tempo de antena gay nos media, que muita gente percepciona como superior à sua presença na sociedade, poderá ser perigosamente contraproducente para a tolerância da sociedade. A reacção de um povo tolerante como o holandês após o assassinato de Theo van Gogh a respeito da imigração revela os limites da tolerância das comunidades. A TV tem, entretanto, escapes para os heteros que não aceitam facilmente o que vêem como um ascensão gay: é o caso da notoriedade do patético gigolo Zézé Camarinha em 2005 e dos programas populares de humor, como os das anedotas, tipo Malucos do Riso, ou do Levanta-te e Ri, também da SIC, que é neste domínio mais politicamente incorrecto do que todos os programas humorísticos do Portugal machista de décadas passadas. Mas ao abordarem a homossexualidade esses programas “machistas” também contribuem para a naturalização da condição gay. Essa naturalização prevalece no programa Esquadrão G (SIC, domingos). Os cinco “especialistas” não escondem a sua orientação gay (“revistas com mulheres? Ai, que horror!”), sem exagerarem no exibicionismo. Os espectadores podem interrogar-se: porquê gays e porquê todos gays? A resposta é simples: porque a condição gay é aceite e desperta curiosidade; porque estabelece uma diferença que, na versão exibicionista que convém à TV comercial, é explorada comicamente; porque permite ao programa a sua característica essencial: pôr à prova o concorrente heterossexual num rito de passagem. O fundamento do Esquadrão G é a “transformação” de um heterossexual. Com a ajuda da mulher, o motard Rui, gordo, com cabelo pela cintura e barba por fazer, vestido de roupa preta e com uma casa despida de conforto e gosto, quer “transformar-se”: o “esquadrão” chega de rompante, como chegava o Capitão Gay no sketch de Jô Soares, e num ápice muda o visual do indivíduo e da casa. Os candidatos, neste caso o Rui e a mulher, utilizam a televisão de forma genuína (querem mudar) mas também interesseira. A TV precisa de pessoas vulgares para fazer este tipo de programas e lucrar com eles. Um contrato tácito entre concorrentes, espectadores e indústria televisiva diz que as pessoas vulgares se submetem a estas transformações a troco de alguma coisa: dinheiro, remodelação da casa, roupa, emprego, notoriedade. No caso, verificou-se que o Rui tinha acabado de perder o emprego, pelo que a mudança de visual através da TV era um recurso à sociedade do espectáculo para procurar nova solução de vida. A transformação do motard é cosmética, mas verdadeira. E que mudança é esta? O Rui corta a longa cabeleira; usa uma camisa (nem mesmo sabia vesti-la) e um fato; reaprende a comer legumes (só comia carne) e algumas maneiras; e remodela a casa para a tornar socialmente aceitável. Esse foi o segredo da primeira edição: o Rui era um marginal aparente, pelo aspecto exterior e comportamento, e havia que torná-lo igual a toda a gente, “normalizá-lo”. A mulher, os pais e amigos disseram isso mesmo para a câmara: o que desejavam era que ele deixasse de ser motard por fora. A normalização do Rui viu-se quando o Esquadrão G o prendeu à sociedade ensinando-lhe a dar o nó da gravata. O Rui tornou-se “normal”. Como disse um dos cinco gays no final, “ele já se rendeu” aos novos hábitos. E, na verdade, pareceu que ele se rendeu à sociedade. Desta forma, o Esquadrão G serviu ao Rui como ritual de passagem de marginal para integrado, de membro da minoria para a maioria socialmente correcta. Os cinco gays não conquistam heteros para o campo gay, transformam-nos em pessoas aceitáveis para a sociedade maioritária, heterossexual, tendencialmente conservadora, enfim pessoas a que se chama “normais”. Que essa transformação seja levada a cabo por gays é que é o génio da lâmpada televisiva. Ao mesmo tempo que integra um “marginal” na sociedade, o programa eleva a condição gay: são os cinco elegantes gays quem sabe estar, vestir, socializar e quem transforma o heterossexual gordo e morcão. The beauties and the beast. Os cinco do Esquadrão são as fadas-madrinhas televisivas de gente que precisa de melhorar a sua apresentação e a sua vida numa sociedade de espectáculo em que o exterior e as relações interpessoais “correctas” são fundamentais para o êxito. Tecnicamente, o Esquadrão G é de lamentável qualidade. Péssima recolha de som, má montagem, qualidade de vídeo caseiro e interpretação medíocre pelos cinco “apresentadores”. A superficialidade e a negligência dos cinco durante o processo de transformação contribuem para reforçar o entendimento de que nestes programas de realidade o fulcro está no momento a que os anglo-americanos chamam the reveal, o momento de revelação, quando a mulher do Rui chega a casa e vê, feliz, o seu sonho concretizado: ele sem cabeleira e prisioneiro num fato e gravata.