A tragédia «quer» que os poderosos caiam – reis na tragédia grega, políticos eleitos nas tragédias de realidade dos dias de hoje: Guterres caiu com a Ponte, Aznar com o 11 de Março, agora quer-se que Bush caia com o Katrina.
Veio o tufão Katrina e os nossos media descobriram com espanto que no sul dos Estados Unidos há muitos negros. E que há pobres na América. Como não costumam ver assim tantos deles nos filmes de Hollywood, logo evoluíram para uma ignorância superior: só os negros é que sofrem, o Bush é um racista do Katrina! Sendo os EUA uma superpotência estratégica e cultural, muita gente alimenta a ilusão de que toda a América vive como os Ewing da série Dallas. Ora a pobreza nos Estados Unidos e sua eventual relação com as origens rácicas e nacionais da população estão registadas nas estatísticas públicas. Mas lá e em todo o mundo desenvolvido (incluindo Portugal) a ideologia dominante com origem no ideário burguês esforça-se por ocultar as divisões sociais, incluindo no jornalismo. Roland Barthes chamava «ex-nomeação» a esta ocultação das classes. Num artigo no New York Times chamado «In Fiction, a Long History of Fixation on the Social Gap» (08.06), Charles McGrath fala da «repressão» da representação dos conflitos ou sensibilidades sociais nos media, pois a «cultura pop tem conseguido em grande medida enterrar algo que antes estava bem à vista.» É certo que as classes sociais e a sua representação ideológica e política já não são como antigamente, quando o proletariado irrompeu no mundo industrial e espantou a sociedade. O proletariado teve entrada de leão e saída de sendeiro: morreu. Hoje tudo é mais complexo. O inchar da «classe média» tornou possível pretender-se que as divisões classistas deixaram de existir: a democracia não tolera reconhecer classes porque isso significaria aceitar que a acção política pode obedecer a interesses económicos e classistas. Além disso, nas democracias desenvolvidas os pobres são uma minoria e, portanto, não decidem eleições. Nos meus artigos tenho espelhado a existência de divisões ou classes sociais e a sua expressão ideológica, sociológica e mediática. Houve leitores que me disseram que as classes não existem, muito menos na América. Não existem? O New York Times publicou este Verão um conjunto magnífico de reportagens aprofundadas precisamente com os nomes de «Class in America» e «Class Matters» (ver http://www.nytimes.com/pages/national/class/index.html; a série sairá em livro este mês). Ali se mostram as diferenças entre ser rico e ser pobre quando se quer entrar na escola, arranjar trabalho ou até quando se tem um ataque de coração. Recomendo a sua leitura, nomeadamente ao crescente universo da esquerda que não quer ouvir falar dos pobres, essa maçada. Pessoas como uns certos managing socialists ou os pipis do Bloco de Esquerda para quem a política é apenas interessante para debater a globalização ou a criação de novos públicos culturais, para quem debater os problemas sociais portugueses é sempre muito menos bom que trocar umas ideias sobre o assunto das novas tendências das «curtas» do cinema finlandês. Esta coisa das classes tem consequências directas, indirectas, longas e breves, históricas e actuais nos conteúdos televisivos. Seria injusto dizer que o cinema e a TV escondem a América pobre, violenta, difícil. Programas de realidade como o Jerry Springer Show mostram (mas não debatem) ,a pobreza em todo o seu esplendor histriónico. Milhares de programas e filmes têm presentes as questões sociais. Só que muitas pessoas reprimem o que vêem habitualmente para não encherem a cabeça com os problemas dos outros e também para poderem alimentar livremente um ódio à América em geral: é mais fácil odiar a América se se imaginar que todos os americanos são ricos. Os que agora vêem negros e pobres desprezados pelo Bush do Katrina deveriam entender que com Clinton a incúria do Estado teria sido a mesma (o Estado é o mesmo, a sociedade e as classes são as mesmas), mas as lágrimas do anterior Presidente teriam efeitos mais que mediáticos, teriam efeitos médicos de apaziguamento dos complexados de esquerda. Os mesmos que lançam bombinhas anti-América por causa da realidade esventrada pelo Katrina, realidade que já lá estava antes, serão também os que entram em «ex-nomeação» e evitam a análise e o comentário classista quando os acontecimentos ocorrem em Portugal. Como ironizou o leitor A. Monteiro Pais (08.09), os comentários de «especialistas» em classes na América resultam de «já termos conseguido construir um país (...) onde não há pobres». O caso dos «nossos» incêndios – uma espécie, não de tufão, mas de «Fogão Katrina» – evidencia essa duplicidade de análise. Para haver coerência, quem fala dos negros e pobres de Nova Orleães deveria também explicar a incúria do Estado português nos incêndios pelo facto de serem pobres os que vivem no meio da floresta, os mais pobres de todos: simultaneamente velhos, despossuídos, sem voz nos media, rurais, sem meios tecnológicos de trabalho, comunicação ou lazer. São esses a quem ardem casas, meia dúzia de cabras, alfaias medievais, uns pinheiros inúteis. Alguém os comparou aos negros de Nova Orleães? Ainda há dias, a propósito da criança violada e agredida até à morte em Caxias vimos o que é a incúria do Estado para com os pobres. O miúdo estivera um monte de vezes no hospital. Entrevistada na TVI, a responsável pela protecção de menores, Dulce Rocha, fez um discurso muito politicamente correcto sobre a temática da problemática. Mas quando José Carlos Castro lhe perguntou directamente o que tinha ela feito para mudar a situação ela respondeu: «Repare, eu fiz uns ofícios». Quando caiu a ponte de Entre-os-Rios, esta tensão pobres-ricos foi evidente. O autarca de Castelo de Paiva desde o primeiro momento estabeleceu poderosa e inesperada «agenda» política para a tragédia: a ponte caíra porque a região era pobre e interior – do mesmo interior que arde agora por incúria do Estado. A tragédia foi politizada e trazida para uma luta de classes actualizada pelo autarca e pelos populares nas TVs (mas não pela comunidade jornalística-comentadora). Foi um caso único em que a luta de classes actualizada dominou o espaço público, embora na tragédia, seja no Katrina ou no Rei Édipo de Sófocles, a tensão entre os governados e os governantes esteja sempre presente. A tragédia «quer» que os poderosos caiam – reis na tragédia grega, políticos eleitos nas tragédias de realidade dos dias de hoje: Guterres caiu com a Ponte, Aznar com o 11 de Março, agora quer-se que Bush caia com o Katrina. Ocorrendo uma tragédia, desencadeiam-se movimentações para derrubar um poder fragilizado. Que se queira fazê-lo por razões políticas fundamentadas é natural e como deve ser; mas causa impressão que se comente com imagens e palavras uma realidade com base na ignorância e no preconceito. P.S. – Este artigo sai hoje excepcionalmente na secção Espaço Público
