Eduardo
Cintra Torres
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O share incendiário |
Dois meses depois, Francisco Ecrã retomou a ideia, certamente por ver nos incêndios uma concorrência desleal à sua própria presença televisiva (“ecrã meu, quem é mais mostrado do que eu? O quê?! Os incêndios?!”). A RTP disse-se interessada em promover um acordo entre os canais generalistas, e o actual ministro da Administração Interna, António Costa, sublinhou as diferenças da cobertura dos incêndios noutros países: menos duração, menos chamas (PÚBLICO, 15.08). Mas da SIC veio a lembrança de anterior tentativa de acordo por parte de Sevinate Pinto, ministro da Agricultura em 2004. Quando escrevi o meu artigo, eu desconhecia este episódio. José Gomes Ferreira, subdirector de informação da SIC, escreveu na SIC Online (04.08) que participou em 2004 numa reunião das três televisões generalistas com o ministro. Sentiu-se “indignado” porque o poder se preocupava com as imagens e não com os incêndios, o que, tendo uma ponta de verdade, é excessivo dizer-se, pois o governo, naquela reunião, só tinha de tratar do assunto das imagens televisivas e não doutras vertentes do combate aos incêndios. Mas, curiosamente, no mesmo artigo Gomes Ferreira tem imensas sugestões a dar ao governo actual no combate aos fogos e em nenhum momento aborda a necessidade de alguma decência na exibição das chamas. Julgo que o governo se poderia também sentir “indignado” com este artigo. Mais interessante é a justificação de Gomes Ferreira para a recusa da proposta governamental: nenhuma. Apenas diz: “Claro que o acordo não foi aceite”. O filósofo Fernando Gil, autor do Tratado da Evidência, poderia explicar-lhe que este “claro que” é tudo menos claro. A evidência é estabelecida pelo próprio que a usa e nem sequer a justifica. Por isso a interpreto: não mostrar excesso de chamas seria “censura”. O conceito serve para se rejeitar qualquer mudança, sugerida do exterior, no jornalismo praticado hoje. E hoje os canais mostram quantas imagens de incêndios querem mostrar, mesmo contra o interesse da maioria dos espectadores (ver PÚBLICO, 18.08, Local). Ninguém faz censura, nem eles fazem “auto-censura”. Já as decapitações e assassínios a sangue-frio de reféns (quase) não mostram. Fazem “auto-censura” porque fazer jornalismo é, entre outras coisas importantes, seleccionar. Há um debate a fazer. Evitar o excesso de imagens de incêndios poderia – deveria – fazer parte da selecção jornalística com boas regras éticas e profissionais. O fantasma da “censura” é um pretexto para os canais, incluindo a preocupada RTP, poderem explorar o sensacionalismo e procurar mais freguesia para si mesmos. Ao mostrarem chamas às meias horas, os responsáveis dos noticiários querem informar em liberdade ou querem aumentar a audiência? As duas coisas, mas principalmente a última. No âmago deste debate deve estar esta questão: para avaliar um acto também conta a finalidade da intenção. E, além da intenção, há-de considerar-se as consequências: por um lado, a ética deontológica diz que o valor do acto informativo pode ser intrínseco, estabelecendo-se pelo apego à verdade; por outro lado, podemos considerar que o valor do acto informativo resulta inteiramente do valor das suas consequências. No caso, entre as consequências do excesso de telechamas poderá estar o seu efeito reprodutor, como refere um inquérito a incendiários pelo psicólogo Rui Abrunhosa, da Universidade do Minho (PÚBLICO, 13.08). Não sei entrar aqui numa reflexão filosófica sobre deontologia versus consequencialismo – nem poderia, porque aqui há tempos, no Expresso, a preclara Ferreira Alves me acusou de citar filósofos em artigos sobre televisão, media desprezível que não merece nenhuma citação, nem sequer da Hola! que a preclara lê nas férias. Mas recordo que a influência da escrita e do jornalismo nos actos individuais e sociais era tema debatido muito antes de o século XX elaborar a teoria dos efeitos. Caso notável foi o do romance Werther, de Goethe, que não citarei, apenas digo que o suicídio do moço na obra literária terá levado muitos jovens românticos, e não só alemães, a cometerem contra as próprias vidas. Coisa muito falada. Os europeus do século XIX foram muito dados a esta prática de suicídio por sugestão. Um lorde inglês, farto da vida, atirou-se pela cratera do Vesúvio e uma data de ingleses toca de o imitarem. Em França houve uma caso patético de sugestão: num lar de inválidos, 15 deles enforcaram-se num curto período num gancho que havia num corredor escuro da instituição. O relato que li, de 1891, não refere por que razão ninguém se lembrou de retirar o gancho. Em Portugal houve na imprensa de finais do século XIX um caso semelhante ao das telechamas deste Verão. Na década de ‘80 verificaram-se imensos suicídios em Lisboa: espantava que os suicidas fossem gente anónima, identificada com as “massas”, pelo que os jornais falavam em “febre do suicídio”, “epidemia”, “monomania”. Com o objectivo de calar as notícias de suicídios, a maior parte da imprensa estabeleceu então uma “concordata” – o termo é da época – como aquela que agora se propõe para a televisão e que o subdirector da SIC dirá que é “claro” que recusa. Um jornalista contemporâneo da “febre do suicídio”, Eduardo Barros Lobo, que escrevia bem e assinava com o notável pseudónimo de Beldemónio, comentou com costumada ironia a “concordata” da imprensa: “O jornalismo, comovido, resolveu interpor o seu silêncio, a fim de obstar propagação do mal.” Logo a seguir, anotava dois pontos de vista utilitários sobre a – diríamos hoje – auto-regulação dos jornais a respeito do noticiário sobre suicídios: à primeira vista “duvida-se que seja eficaz o expediente. Logo em seguida, porém, a estatística vem provar que a publicidade é um incentivo à imitação.” Beldemónio terminava dizendo que o caso Werther apoiava a “determinação do jornalismo lisboeta”. Um século e tal mais tarde, o quase provado estímulo de alguns incendiários pelas imagens na TV não é, porém, suficiente para uma nova “concordata” entre os órgãos de informação. O share voa mais alto que as labaredas. |