Eduardo
Cintra Torres
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Aterrorizando as massas |
Estava-se em 1938, quando a guerra já se anunciava na Europa, quando a recessão económica iniciada em 1929 ainda se sentia, quando a rádio, o novo media, se transformara já num poderoso e amado meio de massas. A adaptação foi escrita por Howard Koch (1902-95). Ele escrevia uma novela radiofónica todas as semanas, para ser recriada em directo ao domingo à noite pelo Mercury nos estúdios da CBS. Koch recebeu o livro de Wells com instruções para escrever o guião em forma de noticiário. A Guerra dos Mundos, disseram-lhe, era o projecto preferido de Orson Welles (1915-85). Koch comprou um mapa do Estado de Nova Iorque e apontou sobre ele ao calhas a ponta da caneta: saiu-lhe Grover Mill, um lugarejo agrícola. Tal como o original de H.G. Wells, a adaptação de Koch previa o início e o principal extermínio nos subúrbios da maior cidade do país. A emissão foi realizada entre as 20h00 e as 21h00 de domingo, 30 de Outubro. Em apenas 45 minutos de tempo real e tempo ficcional, começaram explosões em Marte, os marcianos chegaram à Terra, mataram e destruíram, derrotaram o exército americano e ocuparam grande parte do país... Ao contrário do que diz o mito, o programa indicou claramente tratar-se de ficção. O programa começou com a voz de um locutor: “A Columbia Broadcasting System e as suas emissoras filiadas apresentam Orson Welles e o Mercury Theatre on the Air em A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells.” Depois do indicativo musical do Mercury, o locutor passou a palavra a Orson Welles, que leu um texto praticamente idêntico ao início do romance. Mas acrescentou-lhe uma referência às massas de ouvintes, uns supostos 32 milhões que estariam ouvindo rádio àquela hora. Segui-se A Guerra dos Mundos ficcionalizada em registo naturalista. Mas a meio houve uma pausa que repetiu tratar-se de ficção e no final, Welles, o protagonista da peça, dizia: “Fala-vos Orson Welles, senhoras e senhoras, já liberto da sua personagem, para assegurar-vos que A Guerra dos Mundos não tem maior significado do que a sua intenção festiva. Na sua versão radiofónica, o Mercury Theatre disfarçou-se, saltou detrás de um arbusto e gritou ‘Buuh!’ (...) É Halloween.” (30 de Outubro é o Dia das Bruxas). Entretanto, durante estes 45 minutos, a emissão provocara medo e até pânico. A razão, elementar, nunca é referida: o programa assustou massas de gente porque o seu conteúdo era o extermínio das massas. Isso explica a referência de Welles aos milhões de ouvintes. Os EUA tinham 132 milhões de habitantes e o Estado de Nova Iorque 13,4 milhões. Nos anos 30 o país conheceu um crescimento brutal dos subúrbios (60%, mais do dobro das cidades). Em Nova Iorque, o crescimento da subúrbia foi de 85%. Calculou-se na altura que A Guerra dos Mundos foi ouvida por seis milhões e que assustou ou inquietou um milhão (1/6 dos ouvintes e 0,7% da população do país). Desconhece-se quantos entraram em pânico, mas houve relatos de pessoas fugindo de casa, etc. Woody Allen comicizou alguns episódios em Os Dias da Rádio (1987). No dia seguinte, Orson Welles era uma celebridade mundial. Armou em ingénuo e disse que não esperava tal reacção popular. Mas o programa fora pensado como um noticiário da invasão da Terra. A utilização da linguagem jornalística enganou incautos. A transmissão tornou-se um mito da sociedade de massas e do espectáculo. Quando estreou agora o filme de Spielberg, vários media disseram mentiras a respeito da emissão de 1938, mentiras que se tornaram a sua verdade mitológica. A emissão inscreveu-se também nas preocupações dos estudiosos dos mass media, que era então campo novo de investigação. As reacções de pânico provavam que os mass media podiam influenciar muita gente no sentido que pretendessem. Ficava provada a teoria dos efeitos: os media passam mensagens para as pessoas como se as injectassem com uma agulha hipodérmica. Ao mesmo tempo, o caso serviu para uma nova teoria. Foi o que sucedeu com o estudo dirigido por Hadley Cantril, professor da Universidade de Princeton. Ele e a sua equipa usaram vários métodos de análise e entrevistaram 135 pessoas que tinham ouvido o programa. Uma primeira verificação foi a de que as pessoas confiavam muito na rádio. A emissão tinha traído essa confiança ao usar a linguagem jornalística para uma peça ficcional. Note-se que a literacia mediática dos ouvintes era muito menor do que a de hoje. Os consumidores mediáticos actuais estão habituados e sabem “ler” as sátiras e ironias da rádio e da TV. Mas na altura a rádio era um mass media recente e o único a que tinham acesso analfabetos e pobres. Foram, aliás, os de menos habilitações quem manifestou credulidade com a emissão. A análise da emissão pretendeu explicar por que acreditaram muitas pessoas na “realidade” da emissão apesar de terem ouvido no início que era ficção. Porquê? Porque outros os convenceram ou porque a insegurança das suas próprias vidas as tornava mais frágeis ao medo e propensas a sentir-se ameaçadas. Vários entrevistados relacionaram discretamente o seu medo ou pânico com a sua situação de desemprego ou o receio da Guerra Mundial (Hitler estava a 11 meses de invadir a Polónia). Estavam prontos para ser assustados, só faltava o estímulo. Cantril concluía: “o comportamento extremo suscitado pela emissão radiofónica deveu-se à enorme implicação do ego na situação criada, assim como à total incapacidade do indivíduo para aliviar ou controlar as consequências da invasão.” De facto, perante a invasão marciana, não havia nada a fazer. No momento mais dramático da emissão, um operador de rádio perguntava para o éter: “Ninguém me ouve? Ninguém me ouve? Ninguém…?” Segundo Cantril, “nesta situação o indivíduo enfrentava a perda simultânea de todos os seus valores. Nada se podia fazer para salvar algum deles. O pânico era incontornável.” O estudo provava que tinha havido quatro tipos de reacção, desde o usufruto total da ficção até ao pânico. A causa da interpretação errada da emissão encontrava-se na própria emissão, mas a situação psico-emocional prévia do indivíduo explicava em grande parte o seu comportamento, bem como o seu grau educacional e a influência de outras pessoas na ocasião. Esta abordagem sublinhava ser necessário tomar em conta os usos que cada pessoa ou grupo de pessoas retiram das mensagens mediáticas. Mas, entretanto, a teoria dos efeitos directos tinha, neste caso, alguma razão de ser. Esta Guerra dos Mundos ficou para a história como o maior “arrastão” de massas que um media realizou em democracia. |