Eduardo Cintra Torres

A guerra dos subúrbios


G. Wells descarregou nas ficções os seus impulsos de extermínio, e, desde logo, da gente dos subúrbios. Havia aí algum ódio pessoal.

Ele vira a sua terra natal de Bromley, Kent, transformar-se em mero subúrbio de Londres: “Todo o seu encanto e beleza foram destruídos”. Havia gente a mais. O descontrole do crescimento populacional de Inglaterra e do mundo eram uma preocupação política e intelectual desde que Thomas Malthus escrevera, em 1798, Um Ensaio sobre o Princípio da População. Era evidente para elites da época que a rápida reprodução dos pobres só por si ameaçava a ordem estabelecida. Os pobres tomavam conta de todo o espaço e, como mostrava o novo proletariado urbano, eram desobedientes e insolentes. Wells era da mesma opinião: “A enorme multidão de nascimentos foi o principal desastre do século XIX”, escreveu ele em Kipps. “O homem é uma catástrofe biológica.” Em 1898, os marcianos de A Guerra dos Mundos vieram do espaço para de alguma forma aliviar o problema no final do século XIX... Mas era apenas ficção. Num texto panfletário de 1901, Anticipations, Wells chama “Povo do Abismo” às “grandes massas inúteis” e prevê a ascendência da “nação que mais resolutamente escolher, educar, esterilizar, exportar ou envenenar o seu Povo do Abismo”. Wells defende o extermínio como parte da “nova ética”, pois para os inaptos a morte será apenas “o fim da amargura do falhanço, a obliteração misericordiosa de coisas fracas e idiotas e inúteis”. Wells desenha com rigor em vários textos a sua visão de uma sociedade utópica, uma “Nova República”. Os que forem inúteis terão de morrer, é tudo. Os eleitos “terão um ideal que fará com que essas mortes valham a pena”. É claro que, como D. H. Lawrence, ele não deseja que os inúteis sofram ao morrer: “Todo esse extermínio será feito com ópio.” Neste quadro, há povos ou raças com mais propensão para serem exterminados. Wells antecipa o genocídio de populações inteiras na China ou em África: as “multidões de povos pretos, e castanhos, e branco sujo, e amarelos” que não sejam necessários “têm que ir”, “é sua obrigação morrer e desaparecer”. E isto era em ensaios, coisas sérias. Como vimos, na ficção, Wells espraiou-se. Só em A Guerra dos Mundos ele aliviou a Inglaterra de um milhão de habitantes. Entretanto, passou um século. E não só “as massas” controlaram o seu crescimento através da prevenção de nascimentos como controlaram... a indústria do entretenimento. Embora as elites económico-políticas continuem a dominar os centros de decisão, nunca a sociedade foi tão de massas como é hoje. A adaptação de A Guerra dos Mundos ao cinema por Steven Spielberg (2005), situa-a no nosso tempo mas é extremamente fiel ao original literário. Começa, aliás, com imagens de multidões de seres humanos enquanto a voz off lê o início do romance de Wells: “Nos últimos anos do século XIX, ninguém teria acreditado que este mundo estava a ser aguda e estreitamente observado por seres mais inteligentes do que o homem, e, no entanto, tão mortais como ele; que, enquanto se ocupavam com os seus múltiplos problemas, os homens eram examinados tão pormenorizadamente como são, sob a lente do microscópio, as criaturas efémeras que abundam e se multiplicam numa gota de água. Com uma complacência infinita, os homens moviam-se de uma lado para o outro do seu globo, tratando dos seus pequenos negócios, serenamente, na certeza do eu poder sobre a matéria.” Alguns comentadores já chamaram a atenção para algumas alterações a que Spielberg procede no enredo, como a do tema familiar e a referência ao terrorismo. Falta referir um aspecto no âmbito da inscrição do argumento na sociedade americana: enquanto Wells despreza o subúrbio, Spielberg faz, como sempre, o elogio do subúrbio. A América é um subúrbio de si mesma e aqui os arredores são destruídos, é certo, mas é deles que sai o protagonista e herói. O protagonista que guia o nosso olhar no filme (Tom Cruise) é muito diferente do narrador de Wells. Este é um “escritor declarado e reconhecido de temas fisiológicos” que tem como “ramo de conhecimento a filosofia especulativa”. Quando começa a guerra, ele achava-se “muito ocupado a aprender a andar de bicicleta e a escrever uma série de ensaios literários acerca da provável evolução das ideias morais em relação ao progresso da civilização”. No filme, a primeira imagem de Cruise mostra-o como manipulador de um guindaste de contentores num porto sem nome. Ele recusa-se a fazer horas extraordinárias porque a ex-mulher vai deixar os filhos de ambos na sua casa pobre de subúrbios para mais um fim-de-semana relacionalmente desastroso. Ao contrário dos desprezíveis seres dos ensaios e ficção de Wells, o homem dos subúrbios (Tom Cruise) ganha uma razão de viver: salva a filha. O filho, péssimo estudante, revela-se um herói também, e a guerra é o ritual que faz dele um homem. No final do romance, Wells dá a entender que a regeneração do mundo se fará pela cidade, não pelos subúrbios: “Em redor do fosso, salva como que milagrosamente da destruição eterna, estendia-se a grande Mãe das Cidades. Aqueles que apenas viram Londres envolta nas suas sombrias vestes de fumo mal podem imaginar a claridade límpida e a beleza do número atordoante de casas silenciosas (...) esta minha querida e imensa cidade morta voltaria, poderosa, à vida”. O filme de Spielberg também acaba na cidade. Mas tem outro tom. Cruise entrega a filha à ex-mulher em Boston (entrega-a na ou à cidade?), mas não fica, ele voltará para o subúrbio onde poderá refazer a vida como homem renovado, com sentido de vida. A ex-mulher, grávida do novo companheiro, também voltará ao subúrbio e aí dará à luz. No filme, as massas reproduzem-se, a humanidade é salva pelos subúrbios. Não quero terminar sem fazer justiça a Wells no que toca à sua posição face ao Outro, o anónimo das massas: se é um facto que ele propõe inúmeras vezes o seu extermínio, também é certo que há nele uma ambivalência, em especial quando dá nome às personagens, fá-las viver, quando as retira do anonimato que prevalece em A Guerra dos Mundos. Essa duplicidade exprime-se em Os Primeiros Homens na Lua quando um dos astronautas ataca violentamente os Selenitas e o outro, fascinado pela sua inteligência, fica para trás e não regressa à terra. Claro, essas massas inteligentes eram então massas do outro mundo. Hoje essas são as massas dos subúrbios dos filmes de Spielberg, as que os protagonizam e as que os vão ver ao cinema. (o próximo artigo aborda a adaptação radiofónica de A Guerra dos Mundos.